publicado dia 31 de março de 2020
Livro “Heroínas Dessa História” relembra luta de 15 mulheres contra a ditadura militar
Reportagem: Redação
publicado dia 31 de março de 2020
Reportagem: Redação
Luta permanente por Memória, Verdade e Justiça. Essa é a bandeira das mulheres que perderam familiares assassinados e desaparecidos por agentes do Estado durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Sua força e protagonismo — de mães, esposas, filhas e irmãs de homens e mulheres que morreram nas mãos da repressão — é tema do livro “Heroínas Dessa História”.
A iniciativa, organizada pelo Instituto Vladimir Herzog, joga luz sobre a caminhada de 15 mulheres que, até hoje, atuam em busca de esclarecimentos das mortes de seus parentes. Para Tatiana Merlino, jornalista e coordenadora do projeto, a ode do presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), à ditadura militar e à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra — primeiro militar reconhecido como torturador pela Justiça — transforma o extermínio em política de Estado.
“Ele não só reivindica a ditadura como ele nega que foi uma ditadura militar e que existiu. Quer dizer, não é só o Bolsonaro. O Bolsonaro e uma série de pessoas e de instituições. A gente viu o [Dias] Toffoli, presidente do STF [Supremo Tribunal Federal], negar que houve golpe, que foi um movimento de 1964. Primeiro, que é incomparável a violência que se comete contra um governo opressor da violência do Estado, de força, mas também porque a violência do Estado é inaceitável. O Estado torturou, matou, desapareceu e estuprou pessoas”, protesta Merlino.
Durante os anos de chumbo, as mulheres atuaram em diversas frentes na resistência ao regime e na luta por democracia. É o caso de Ana Maria do Carmo Silva Dias que, há quase 40 anos como viúva, persiste para que a história do marido, o operário Santo Dias da Silva, não seja esquecida.
O assassinato dele ocorreu em 30 de outubro de 1979, dois meses após a aprovação da Lei da Anistia e regulamentada um dia depois do crime. A partir de então, Ana Dias firmou a responsabilidade de manter viva a semente de Santo, militante da oposição metalúrgica em São Paulo, morto pela Polícia Militar durante piquete na fábrica da Sylvania, em Santo Amaro, zona sul da capital.
Na época em que o direito de greve ainda não era reconhecido, os grevistas lutavam por melhores condições de trabalho e salário e pela livre expressão de suas reivindicações. O assassinato de Santo Dias causou uma reviravolta na greve, que estava prestes a terminar e acabou ganhando novo fôlego: em uma assembleia, seis mil operários decidiram manter o movimento.
Ana Dias enfatiza que a resistência não é de dias, semanas, meses nem anos, mas de uma vida inteira. “Tem muita gente que quer que acabe, como foi quando o Santo morreu. Quanta gente queria que eu calasse a boca: ‘se você não calar de um jeito, vai calar à bala’. Mas, nem por isso, eu fechei a boca, fui ameaçada, fui escondida… Amanhã eu posso não estar mais aqui, porque isso a gente sabe que é a vida. Ele foi com 37 [anos], eu com 76 ainda estou aqui respondendo por essa luta, tentando manter viva a memória e a história, e tentando contar para os que estão chegando e para os que ainda vão vir que a luta não terminou, que a luta é essa: da mulher e do homem. E a mulher tem muita garra, eu acredito muito na mulher guerreira”.
Por meio de um trabalho ligado à emancipação feminina na política, Ana Dias e outras mulheres contestaram as políticas econômicas do regime militar, reivindicando a diminuição do custo de vida na campanha popular de massa que ficou conhecida como Movimento Contra a Carestia.
Ana Dias, também liderança da zona sul paulistana, mobilizou outras mulheres na reivindicação por uma vida mais digna e justa dentro das fábricas. Ela e o marido também militavam nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica ao lado de trabalhadores rurais e urbanos. No final da década de 1960, afetados pelo êxodo rural, ambos migraram do interior de São Paulo para a capital, onde fixaram moradia na periferia do Jardim Ângela.
“Um monte de gente do bairro não sabia que meu marido foi assassinado por uma ditadura, porque naquela época era tudo censurado. Hoje, a gente não ouve isso nem na escola, nem na Rede Globo, nem no rádio, nem na televisão, nem com os vizinhos. Hoje, se escuta que o Bolsonaro vai salvar, vai mudar, que ele é um militar. Então quem não viveu isso não acredita. Eu falo com algumas vizinhas, não acreditam que isso aconteceu no nosso país, acha que isso é uma coisa de fantasia.”
Segundo levantamento da Human Rights Watch (HRW), a ditadura torturou 20 mil pessoas e matou ou desapareceu com pelo menos 434 pessoas. Ana Dias afirma que as posturas do novo governo são “muito tristes para quem conviveu com a ditadura e a desgraça”, já que a ferida continua aberta. Para ela, a luta por Memória, Verdade e Justiça é como brasa acesa debaixo da cinza.
“Não dá para descrever o quanto é o sofrimento da gente que está e acredita em uma luta e é julgado como um comunista, terrorista, vagabundo, perigoso. E, por tudo isso que eu passei, que eles quiseram sumir com o corpo… Da ditadura, a gente só recebeu repressão e violência.”
Ana Dias participa ativamente do Comitê Santo Dias e, anualmente, organiza atos públicos no local onde o marido foi assassinado. Ela também integra o Clube de Mães de Santa Margarida na zona sul, movimento de mães que se disseminou por diversos bairros da periferia. Nas trincheiras de luta, Ana Dias conta com o engajamento da filha Luciana Dias e do filho Santo Dias da Silva Filho.
“Três anos [de idade] e eles não podiam falar onde o pai estava, com quem o pai andava, que horas e em qual firma ele trabalhava… Então, a gente saia de casa e eles bem pequenininhos já tinham que estar se comprometendo a conhecer que a vida não era fácil, porque a gente já era perseguido desde aquela época. E eles, com 12 anos a menina e 13 anos o menino perderam o pai. Quando a gente entra na luta, a gente acha que vai ser difícil. Mas, depois que a gente encara todos esses problemas e sabe que não vai ser fácil, mas é mais difícil ainda você abandonar a luta no meio do caminho.”
A trajetória de Ana Dias e de mais 14 mulheres, até hoje protagonistas de batalhas cotidianas por Memória, Verdade e Justiça aos seus familiares, compõem o primeiro livro do projeto “Heroínas Dessa História”. A iniciativa é uma maneira de homenagear a determinação feminina que possibilitou não só recontar parte da história das vítimas, mas também conquistar algumas vitórias na Justiça.
Escritos inteiramente por mulheres, os perfis tocam em diferentes aspectos do regime e abrangem as diversas regiões do país. O objetivo do Instituto Vladimir Herzog é que o projeto seja permanente, com edições bianuais. “A nossa luta como mulheres acaba sempre sendo secundarizada, escondida ou relativizada. Então esse olhar para as mulheres é muito importante”, ressalta Tatiana Merlino.
Ana Dias: Liderança da Zona Sul de São Paulo que organizou a luta de mulheres por direitos e viúva do operário Santo Dias, assassinado pela ditadura. Participa ativamente do Comitê Santo Dias e anualmente organiza atos no local onde Santo foi morto.
Carolina Rewaptu: Cacica Marawatsede, virou professora para entender a perseguição sofrida por seu povo no Mato Grosso, expulso de sua terra pela ditadura. Ela foi uma das lideranças na investigação das mortes provocadas pelo deslocamento forçado e na retomada das terras.
Clarice Herzog: Publicitária, Clarice tem travado uma luta contínua para esclarecer as circunstâncias e os responsáveis pela morte de seu companheiro, o jornalista Vladimir Herzog, preso, torturado e assassinado no DOI-Codi. Recentemente conquistou a condenação do Estado brasileiro pela omissão em elucidar o crime e punir os torturadores.
Clara Charf: Foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Ação Libertadora Nacional (ALN), fundada por seu companheiro de vida e militância Carlos Marighella, morto em em 1969. Clara se exilou em Cuba, onde viveu até 1979. Desde o retorno tem lutado para manter viva a memória do companheiro.
Crimeia Schmidt de Almeida: Ex-guerrilheira do Araguaia, companheira de Andre Grabois, desaparecido em 1973. Aos seis meses e meio de gravidez, foi sequestrada e torturada. Uma das fundadoras da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos. Em 2005, ela e familiares foram vitoriosos em ação movida contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, primeiro agente da ditadura a ser declarado torturador.
Damaris Lucena: Operária maranhense, atuou na militância sindical e de oposição à ditadura. Foi companheira de Antônio Raymundo Lucena, morto em 1970. Damaris foi presa junto com os filhos e torturada nas dependências da Oban. Banida do país, foi para o México com os filhos e de lá para Cuba, onde ficou até a Anistia. Desde então luta por Justiça pelo marido.
Diana Piló Oliveira: Mãe de Pedro Alexandrino Oliveira Filho, o “Peri’, desaparecido em 1974. A casa de seus pais foi várias vezes invadida por policiais à sua procura. Não suportando as constantes invasões, Diana, mudou-se para o Rio de Janeiro para tentar ter notícias do paradeiro do filho, o que aguarda até hoje, aos 95 anos.
Elizabeth Teixeira: Liderança camponesa, militou nas Ligas Camponesas e até hoje é grande uma referência. Presa várias vezes, perseguida pela ditadura e por jagunços, teve que ir para a clandestinidade após o assassinato do marido, João Pedro Teixeira, em 1962. Fugindo da perseguição, Elizabeth e os 11 filhos não conseguiram seguir juntos para escapar da morte, indo cada um para um canto diferente do Brasil.
Elzita Santa Cruz: Um século de vida, metade dedicada à luta pela memória. Ela ainda espera estar viva para receber notícias do filho, Fernando Santa Cruz, desaparecido nas mãos do Estado, em 1974. Sua busca inspirou outras famílias Brasil afora e ela tornou-se um símbolo da luta pela memória dos anos de chumbo.
Eunice Paiva: Foi casada com o deputado Rubens Paiva, desaparecido pela ditadura em 1971. Ficou 12 dias presa no DOI-Codi do Rio de Janeiro com a filha de 15 anos. Eunice passou a exigir a verdade sobre o paradeiro do marido, o reconhecimento de sua morte e a revelação de onde o corpo estaria enterrado, o que jamais descobriu. Formou-se advogada aos 47 anos e passou a militar pela verdade e direitos civis dos desaparecidos e de seus familiares.
Genivalda Melo da Silva: Foi casada com José Manoel da Silva, cabo da Marinha morto pela ditadura na ação conhecida como Massacre da Chácara São Bento, em 1973, e enterrado como indigente. Após a morte do marido, foi presa e estuprada. Depois de solta, não desistiu até conseguir enterrar as ossadas do marido em sua terra natal, em 1995.
Maria José Araújo: mãe de Luiz Almeida de Araújo, desaparecido em São Paulo numa ação até hoje não esclarecida. Foi à sede do DOI-CODI/SP com seu outro filho, Manoel, onde sofreram uma série de constrangimentos. Dona Maria José ainda aguarda respostas do Estado sobre o paradeiro do filho.
Marli Pereira Soares: Ficou conhecida como Marli Coragem, pois em 1979 testemunhou o assassinato de seu irmão, Paulo, pela polícia militar, no Rio de Janeiro. Enquanto estava na delegacia para fazer a denúncia, reconheceu e apontou um dos assassinos de seu irmão, que nunca foi preso. Ao contrário, passou a sofrer ameaças e se manteve escondida por muito tempo. Anos mais tarde, seu filho Sandro, de 15 anos, também foi assassinado pela polícia.
Ilda Martins da Silva: Viúva de Virgílio Gomes da Silva, o primeiro desaparecido da ditadura militar. Em 1969, Ilda foi presa com três de seus quatro filhos. Ficou detida por nove meses, permanecendo incomunicável por todo o período. Depois de solta e sem conseguir emprego, exilou-se no Chile e depois em Cuba, com os quatro filhos. Ilda segue lutando para saber onde está o corpo do marido.
Zuzu Angel: Estilista internacionalmente conhecida, procurou incansavelmente o filho, Stuart Edgard Angel Jones, morto pela ditadura, abordando autoridades nacionais e internacionais e concedendo entrevistas à imprensa, tendo alcançado grande repercussão. Morta em circunstâncias suspeitas, acredita-se que possa ter sido também vítima dos agentes da repressão.
*Matéria publicada originalmente no site Brasil de Fato, com o título Conheça Ana dias e outras 14 heroínas do tempo da ditadura militar. A autoria é de Emilly Dulce. Algumas modificações no texto foram feitas, porque agora o livro já está finalizado.