publicado dia 3 de dezembro de 2019
A escola indígena que está unindo saberes tradicionais e tecnologia
Reportagem: Redação
publicado dia 3 de dezembro de 2019
Reportagem: Redação
Imagine aprender matemática, biologia e artes por meio de uma cultura indígena unindo tecnologia e inovação? Essa é a proposta da Escola Indígena Municipal Kanata T-Ykua, localizada na comunidade ribeirinha de Três Unidos, em Manaus (AM). Por lá, mais de 50 alunos da Educação Infantil e Ensino Fundamental I seguem o currículo convencional das demais instituições do país, unindo os conhecimentos tradicionais da etnia Kambeba para promover a educação indígena.
Raimundo Cruz da Silva é diretor da escola e um dos idealizadores da pedagogia Kambeba, com 26 anos de atuação na região. Seus pais fundaram a comunidade Três Unidos, no baixo Rio Negro, e ele trouxe para a comunidade o ensino intercultural, combinando as matérias do currículo convencional com a base cultural dos Kambebas.
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Raimundo explica que a educação indígena se baseia muito no exemplo, no compartilhamento de conhecimentos e no aprendizado com os mais velhos.
“Tudo isso se reflete no jeito como trabalhamos em sala de aula. Os conteúdos que ensinamos não são decididos apenas pelo professor ou o diretor, mas sim por toda a comunidade”, afirma.
A melhor forma de estimular a comunidade, segundo o diretor, é convidá-la a fazer parte do projeto pedagógico desenvolvido na escola de maneira ativa. Para isso, a escola reúne os pais dos alunos e escolhe o tema a ser trabalhado durante o semestre ou ano letivo.
“Associamos esse tema ao sistema de ensino regular e isso faz com que os pais fiquem mais felizes porque eles veem que os conhecimentos tradicionais não ficam esquecidos”, garante Raimundo.
Para que a prática seja mais interativa, familiares são convidados a acompanhar os filhos no processo de ensino-aprendizagem. São abertos espaços para que eles compartilhem seus conhecimentos sobre a língua e demais temas como músicas, alimentação, formas de pescar e de plantar.
Atualmente, existem cinco comunidades Kambebas no Brasil, além de algumas outras no Peru. O primeiro registro foi feito pelo padre Samuel Fritz no século XVII, mas o povo já habitava as terras brasileiras antes disso. Os processos de colonização fizeram com que, na década de 1970, os Kambebas fossem considerados extintos.
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A partir dos anos 1980 o movimento indígena ganhou força e esse cenário mudou. Assim, nasceu a comunidade Três Unidos, pioneira no trabalho de revitalização da língua e da cultura Kambeba por meio da educação. Com o crescimento da comunidade, em 1993, havia mais de 30 crianças e surgiu a necessidade de alfabetizá-las e instruí-las, mas não havia escola ou professores.
A comunidade se mobilizou e construiu um espaço com 50 metros quadrados, feito de madeira, com duas salas de aula. Em 2013, após diversas mobilizações, a prefeitura de Manaus construiu uma nova sede com salas de aula, banheiros, cozinha, merendeira, telecentro e todo o aparato necessário para educar as crianças da região.
Estima-se que no Brasil existam 3.085 escolas indígenas com um total de 285 mil estudantes e 20 mil professores, que atendem cerca de 305 etnias e falam 274 línguas diferentes. Esses dados pertencem ao Censo Escolar de 2015, última pesquisa realizada no país para mapear esse tipo de instituição.
A nomenclatura indígena abrange grupos diversos, com diferentes valores, hábitos e crenças. Uma escola com essa temática precisa equilibrar elementos do currículo nacional com as especificidades da cultura na qual está inserida.
De acordo com a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a coordenação nacional das políticas de Educação Escolar Indígena é de competência do Ministério da Educação (MEC), cabendo aos Estados e Municípios a execução para a garantia deste direito aos povos indígenas. Eles têm direito a uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária, conforme define a legislação nacional. Isso quer dizer que a educação indígena está inserida no sistema nacional, mas respeita a diversidade e as especificidades das culturas dos povos nativos.
O desafio de alinhar o currículo tradicional com a pedagogia Kambeba é uma constante no dia a dia da escola. “Preparamos os alunos tanto para viver aqui na aldeia quanto em qualquer lugar do mundo, fazendo com que as crianças tenham acesso a uma educação intercultural e orgulho de ser indígena”, afirma Raimundo.
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As matérias tradicionais são encaixadas na pedagogia Kambeba na sala de aula. Pensando nisso, são desenvolvidos projetos pedagógicos como contação de histórias que falam sobre o Boto, a Mãe do Mato, Curupira e outras crenças regionais. Além disso, são trabalhados os conhecimentos de utensílios de caça, pesca e plantas medicinais. O arco e flecha, por exemplo, foi um dos destaques na escola. Alguns alunos entraram em um projeto e, no final, acabaram fazendo parte da Seleção Brasileira de Arco e Flecha. “Diziam que seriam necessários oito anos de prática para atingirem esse nível, e em oito meses eles chegaram lá”, comenta Raimundo.
Para suprir a falta de material didático, os educadores são estimulados a se tornarem pesquisadores da cultura. Eles conversam com as pessoas mais velhas, estudam a língua e depois levam esse conhecimento adquirido e sistematizado para a sala de aula em forma de conteúdo.
Tecnologia como aliada
Mário dos Santos Cruz é professor do Ensino Fundamental I da Escola Indígena Municipal Kanata T-Ykua e conhece bem a rotina dos alunos. Ele estudou na escola quando criança e hoje faz uma especialização em educação indígena na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Atualmente, escreve um trabalho sobre as memórias do povo e como isso interfere na identidade.
A escola integra desde 2018 a rede de instituições que recebem o projeto Aula Digital, uma iniciativa do ProFuturo, programa de educação global da Fundação Telefônica e Fundação “la Caixa”, que visa criar melhores oportunidades para crianças, jovens e educadores, incorporando a inovação nas escolas por meio da tecnologia e de novas metodologias de ensino e aprendizagem que promovam o desenvolvimento das competências do século XXI.
“Os materiais da plataforma do Profuturo são muito ricos em conteúdo. O avanço foi muito significativo em todas as áreas temáticas”, conta Raimundo. “A tecnologia expande os conhecimentos da nossa cultura para outros povos indígenas, para pessoas que não são indígenas e para mais escolas trabalharem o tema. Ter um espaço para deixar toda essa pesquisa e criação registrada e sistematizada é fundamental”, acrescenta.
Como a plataforma permite que os professores elaborarem suas aulas e armazenem materiais de forma organizada, os conteúdos podem ser arquivados para o futuro, facilitando a transmissão dos conhecimentos tradicionais da educação indígena de geração para geração.
Publicado originalmente no site da Fundação Telefônica Vivo
Imagem de capa gentilmente cedida por Alicia Fox