publicado dia 11 de outubro de 2019
Sertãopunk: as culturas do Nordeste como força motriz para uma ficção científica brasileira
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 11 de outubro de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
“Juciara molhou os dedos dos pés na água do mar. A água chegava calma, com as casas e prédios mais adiante servindo de quebra-ondas. No final da sua rua, tinha uma casa amarelo vivo, onde ela gostava de brincar quando era pequena. Estava vazia. E, agora, submersa. Ao longo dos anos, o mar avançou, engolindo o asfalto e as casas, até que Juciara e sua família não tiveram mais escolha. Teriam que ir embora.”
No Ceará imaginário da escritora Gabriele Diniz, a água chegou farta no sertão e o futuro é protagonizado por duas mulheres sertanejas fortes lutando contra o coronelismo. O conto “O Sertão Não Virou Mar” mistura elementos da cultura nordestina com pitadas de futurismo e é um bom exemplo do conceito e movimento narrativo sertãopunk.
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Conceituado pela própria Gabriele e pelos também escritores Alan de Sá e Alec Silva, o sertãopunk parte do princípio de que os nove estados nordestinos, em toda sua pluralidade de culturas, saberes e cenários são fonte de inspiração para ficções científicas e fantasias que reimaginam os territórios com a legitimidade literária de quem neles vive.
“O termo sertãopunk nasce da junção de duas palavras: do sertão, que é maior subregião do Nordeste, englobando oito dos nove estados. O punk vem da palavra contravenção, de criticar a ordem estabelecida”, explica Alan de Sá, que também é jornalista.
O termo punk faz ainda mais sentido se explicada uma das causas do nascimento do movimento. Ele é uma resposta contundente ao termo cyberagreste, que começou a ganhar notoriedade com as ilustrações de Vítor Wiedergrun.
As imagens do artista gaúcho, com cangaceiros robôs montados em camelos atravessando desertos, acenderam um alerta nos escritores nordestinos que se viram ante a elementos reducionistas da complexidade da cultura nordestina, comumente associada ao cangaço, à seca ou à violência.
“Quando você cria imagem, você cria realidade. Quando essas pessoas olharam para o Nordeste, é sério que elas só conseguiram pensar em projetar uma estética futurística seca e cangaceira? Os escritores do sudeste tem um poder grande propagação e de espaço na mídia. Se o cyberagreste se populariza sem crítica, nós do Nordeste que já temos pouquíssimo espaço dentro do meio literário sufocamos dentro de uma realidade que não condiz com a nossa”, sentencia Alan.
O escritor cearense Zé Wellington complementa sobre o quão rasa é uma narrativa baseada em estereótipos de locais que têm muito mais a oferecer: “Retratar o Nordeste com um ar exótico, de pessoas morando em uma casa de taipa, carregando um balde na cabeça, pode atrair até um público, mas nós que somos daqui sabemos bem que essas situações, além de raras, estão longe de sintetizar o que o Nordeste é. Temos grandes cidades, economias diversas, culturas plurais.”
Para que erros conceituais ou estereotipados não ocorram, Gabriele defende a ampliação de um mercado literário para pessoas fora do eixo sul e sudeste:
“É preciso dar autonomia e protagonismo para que os autores nordestinos falem sobre sua própria experiência e possam retratar o Nordeste de forma fidedigna e respeitosa, mesmo que para fantasiar.”
Soluções tecnológicas mirabolantes para levar as chuvas às subregiões nordestinas; personagens folclóricos e mitológicos de uma cultura mesclada indígena, afro-brasileira ibérica; protagonistas sertanejos nas suas mais diversas formas: no sertãopunk a porção Nordeste do país é chão para uma ficção científica utópica.
Gabriele, que além de escritora é também formada em Química, trouxe para o conceito ideias do solarpunk, movimento de ficção científica que imagina o futuro eco tecnologicamente desenvolvido. Essas conquistas podem ter resolvido problemas ambientais, mas não necessariamente os sociais.
“Temos melhorias, mas elas não beneficiam todas as pessoas igualmente. O Nordeste é uma região cheia de conflitos internos, com uma mistura de coronelismo, povos indígenas e povos negros. Se em uma ficção científica houver o desenvolvimento de uma tecnologia, onde tivesse água abundantemente por exemplo, não chegaria, provavelmente, como não chega hoje, para populações tradicionais ou as pessoas pobres.”
Alec, que é também especialista em mitologia brasileira e simbolismo, trouxe o realismo fantástico, gênero literário de expressão forte em países como a Colômbia com Gabriel García Marquez e na Argentina com Silvina Ocampo, para compôr o sertãopunk: “Realismo mágico é um gênero que no Brasil poucos ainda usam, mas temos exemplos bons como o Murilo Rubião e o José J. Veiga.”
O conceito do afrofuturismo completa o caldo do sertãopunk. Movimento cultural, estético e filosófico que nasceu nos anos 1960, o afrofuturismo olha para a ancestralidade e religião como forças narrativas, como explica Alan:
“O afrofuturismo liga com questões muito presentes na vida do nordestino: a ancestralidade e a religiosidade, seja ela católica, do candomblé ou da umbanda. O Alec vai lançar um conto sobre o Alizuvia, um espírito de luz que vive no sertão. Esse não é o tipo de coisa de uma grande cidade como São Paulo. E o afrofuturismo também dá conta de medos da população negra, que não tem necessariamente medo do sobrenatural, mas do olhar preconceituoso, do racismo.”
Quando se pensa em ficção científica, geralmente a associação imagética é feita com filmes e narrativas da cultura estadunidense. Mas de acordo com os autores, o Brasil possui uma tradição em ficção científica que tem se fortalecido. O HQ Cangaço Overdrive, de Zé Wellingon, é finalista ao Prêmio Jabuti.
Para o escritor, o que tem acontecido é que as autoras e autores brasileiros perceberam que a cultura do lugar onde nasceram encerra em si elementos perfeitos para se criar uma ficção científica e, portanto, uma literatura embebida de território:
“O Brasil são vários Brasis. Cada região, cada estado, cada cidade. No Ceará eu consigo fácil delimitar três Cearás diferentes que têm histórias que podem ser usadas. Fazemos isso já há muito tempo, mas estamos ficando mais fortes. Vejo leitor ou espectador comprando quadrinhos sobre orixás, histórias sobre monstros da própria cultura nordestina.”
Alec concorda, acrescentando que olhar para o Brasil por um viés de suas potências também pode ajudar na hora de desenvolver uma ficção: “Grande parte da pesquisa científica brasileira vem do Nordeste, temos aqui grandes polos industriais. Por que não sonhar e imaginar ficção a partir disso? Eu moro no oeste da Bahia, tem tanta tecnologia que é usada no plantio de algodão. Por que não pegar isso, ficcionalizar e elevar? A gente está tão acostumado a achar que o outro – o estrangeiro – é melhor do que a gente, o que não é verdade. O sertãopunk está brigando para falar ‘ó, o Nordeste tem coisas legais, deixa a gente te mostrar’.”
Alan espera que o sertãopunk, enquanto movimento, cresça e se espraie para outros territórios:
“Tudo que hoje se pode construir em termos de visão de futuro, ou visões fantásticas, a gente tem no Brasil. Idiomas ricos, uma cultura incrível. O sertãopunk vem pra isso. Ele não é uma caixa delimitadora, que diz o que o Nordeste tem que ser representado de tal forma. Ele abre uma série de possibilidades para que fora dele possam acontecer narrativas de forma mais criativa e lúdica. Ele pode ser um caminho para outras ideias. Adoraria vem um pampa punk, ou uma São Paulo cyberpunk.”