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publicado dia 31 de julho de 2019

Urbanismo daltônico: por que direito à cidade precisa ser pensado sob uma perspectiva racial

Reportagem:

As megalópoles sofrem de uma verticalização violenta. Isso não está somente expresso na fastígio dos prédios, como também na não horizontalidade do planejamento urbano e do direito à cidade: as áreas nobres concentram mais serviços, equipamentos culturais e possibilidades de deslocamento. A quem não dispõe de bens ou é histórica ou socialmente marginalizado, restam as periferias e ausência de políticas públicas. 

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A construção de uma cidade mais democrática só é possível a partir de uma perspectiva racial e de gênero. Esse foi o insumo do mini-documentário Geografia das Desigualdades (2019), uma conversa entre a cineasta Day Rodrigues e a arquiteta e urbanista Joice Berth sobre um urbanismo que considere como as desigualdades socioespaciais brasileiras impactam a malha urbana. 

“O filme trata da geografia de uma cidade desigual (São Paulo) a partir de suas perspectivas raciais. Ele convida a pensar: quais são os nossos projetos de mundo para quebrar com essa cidade violenta e dura, principalmente com a mulher negra?”, explicou Day Rodrigues no lançamento do documentário, ocorrido em São Paulo, dia 30 deste mês. O evento convidou também Joice Berth e a ativista Eloá Rodrigues como mediadora. 

Direito à cidade e urbanismo daltônico 

Durante o filme, a cineasta e a urbanista dialogam caminhando sobre o Elevado João Goulart, popularmente conhecido como Minhocão. Esse viaduto que corta como uma cicatriz zona oeste e leste da cidade é simbólico de como o planejamento urbano pode ser segregador: sua construção em 1970 impactou os moradores, e hoje sua possível demolição pode levar a um processo de especulação imobiliária, além da indeterminação no destino das pessoas em situação de rua que se acomodam em sua longitude. 

A discussão de direito à cidade, que ganhou força no Brasil com as manifestações de 2013, sozinha não dá conta das inúmeras facetas que compõem a malha urbana. Joice explica isso com a expressão urbanismo daltônico. 

Na periferia e nas áreas de favela, quem pode ocupar ali são as pessoas negras – é o lugar físico da subalternidade. Agora, se você vai para regiões centrais, a área nobre, é uma região ocupada por pessoas brancas. O urbanismo, o planejamento urbano, ele pode até olhar as desigualdades, mas dificilmente olhar a cor. Temos um urbanismo daltônico.” 

A construção do urbanismo daltônico se dá porque quem constrói a cidade ou pensamento urbanístico é, em sua maioria, homens brancos: “Resolver as desigualdades urbanas e a segregação socioespacial é entender como ela acontece. Quem está segregado e porquê está segregado. Os urbanistas e suas discussões dão um breque nesse momento. Por que quem está fazendo esse tipo de trabalho é privilegiado. Não quer mexer no seu privilégio de morar em Pinheiros (zona oeste da capital paulista). Não quer questionar porquê o bairro tem toda infraestrutura e a periferia não.” 

Para construir qualquer tipo de pensamento de cidade que considere as relações de gênero e raça, Berth insiste no olhar agudo para o que é produzido por pensadoras, arquitetas e urbanistas negras, cujo trabalho enxerga as lógicas de hierarquia e poder e sua reprodução nas cidades. Para citar alguns, ela evoca Virgínia Bicudo, Lélia Gonzales e Milton Santos

A popularização da discussão sobre urbanismo 

Em 2019, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo completa cinco anos. O mecanismo legal que regulamenta a distribuição e uso do solo urbano, e também elenca as diretrizes para que a cidade seja mais igualitária, foi sancionado em 2014 pelo então prefeito Fernando Haddad. 

Berth demonstra que, dentro do próprio plano, já há diretrizes que pensam raça e gênero na construção de políticas públicas da cidade. O parágrafo 1 do artigo 308 diz das diretrizes setoriais cabíveis à prefeitura: 

O combate à exclusão e às desigualdades socioterritoriais, o atendimento às necessidades básicas, à fruição de bens e serviços socioculturais e urbanos, à transversalidade das políticas de gênero e raça, e destinadas às crianças e adolescentes, aos jovens, idosos e pessoas portadoras de necessidades especiais, devem ser objetivos a serem atingidos pelos planos setoriais de educação, saúde, esportes, assistência social e cultura.

Para além do recrudescimento de pautas conservadoras na gestão urbana, como a revisão do zoneamento da malha urbana, Berth ainda acredita que o desconhecimento da população sobre o Plano Diretor ou sobre o urbanismo em si é um entrave na mudança de relação com à cidade. 

“As pessoas se preocupam com discussões políticas mas quando chega a parte do espaço físico, a distribuição do espaço, que são condicionantes de outras políticas, as pessoas se afastam. É necessário popularizar a discussão do urbanismo. As pessoas precisam saber o que significa um plano diretor, o que significa planejamento urbano, como é o trabalho de uma urbanista. Saber identificar quando um plano de urbanização atende as expectativas raciais e as de gênero, porque nos espaços da cidade a gente têm espelhamentos do racismo e do machismo.” 

A desarticulação da discriminação racial e o seu impacto no combate à segregação socioespacial, complementa a urbanista, “só vai ser concretizada se a questão do espaço onde a gente vive for pensada”. E, para além desta tarefa ser uma missão da população negra, são aos pensadores brancos de arquitetura e que ainda tomam decisões no que concernem o direito à cidade, que cabe o dever de trabalhar dobrado para reparar e começar a pensar a cidade de maneira mais igualitária.

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