publicado dia 26 de julho de 2019
O acesso à educação para população trans e a importância de políticas de permanência
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 26 de julho de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
O presidente Jair Bolsonaro anunciou, em julho, em suas redes sociais a suspensão de um vestibular específico para população transexual, não-binária e intersexual.
O edital da Universidade da Integração Internacional da Lusofobia Afro-Brasileira (UNILAB) que ofertava 120 vagas ociosas em 19 graduações sofreu intervenção do Ministério da Educação (MEC), que questionou a legalidade do processo, afirmando que a Lei de Cotas não prevê vagas específicas para transgêneros e intersexuais.
O posicionamento foi alvo de críticas por parte de organizações que trabalham com direitos humanos e população LGBTQ+.
“Isso mostra que a educação brasileira é pensada dentro de uma heteronormatividade compulsória. Qualquer corpo que não corresponda a ela não está apto a ocupar espaços educativos”, explica Andreia Lais Cantelli, professora de história, presidenta do Instituto Brasileiro Trans de Educação (ITBE), e responsável por uma nota de repúdio à ação e a declaração presidencial.
Para a cientista social Leona Wolf, a postura do poder executivo não surpreende, pois faz parte do mesmo jogo ideológico que elegeu Jair Bolsonaro.
“A forma como o presidente se impôs contra a UNILAB é para reafirmar uma base eleitoral dentro de um escopo ideológico que acabou elegendo-o. Quando ele aparece com discurso para conseguir apoio de uma parcela evangélica ou fundamentalista para se manter dentro do poder, ele acaba negando uma política afirmativa importante”.
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Procurada pelo Portal Aprendiz, a UNILAB não se manifestou, mas declarou em nota para o Portal G1 Ceará que anularia o edital por ele não estar de acordo com a Lei de Cotas.
O Brasil é o país com o mais alto índice de morte de população trans no mundo, segundo estudos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Não é possível analisar a exposição à tamanha violência sem emparelhá-la a muralha social que impede o acesso à educação: 82% da população trans sofre com a evasão escolar, de acordo com estudo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Somente 0,1% do estudantes de universidades federais são pessoas trans.
“A negação de direitos básicos como a educação faz com que a população trans procure meios alternativos de sobrevivência e acabe caindo para a marginalização, prostituição e drogas”, sentencia Andreia.
“Com a possibilidade de inserção e de reconhecimento da pessoa trans como uma pessoa de direito e que deve estudar, ela pode ter uma vida mais ativa dentro da sociedade”.
Políticas públicas foram instituídas na tentativa de reverter esse quadro. Em 2016, a presidenta Dilma Rousseff sancionou o decreto de número 8.727, garantindo o direito ao nome social, que se refere à designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida. Em 2018, uma portaria do MEC autorizou o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares da educação básica.
Também existem universidades públicas no Brasil que adotam um sistema de cotas para população trans em seus vestibulares, garantindo uma reparação histórica a essa população.
Mas, segundo as entrevistadas, embora tenham facilitado o acesso, as políticas públicas não dão conta de garantir a permanência dessa população dentro do ambiente escolar que, em geral, as recebe de maneira violenta: “O assédio, a não aceitação do nome social usado pela pessoa, o uso do banheiro e a invalidação do conhecimento acadêmico são alguns dos desafios enfrentados”, relata Andreia.
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Tendo experiência na coleta de informações tanto de estudantes quanto de educadores trans, o ITBE nota que a permanência é aviltada por uma falta de infraestrutura ética dentro dos espaços escolares:
“O assédio vem da comunidade educacional e parte tanto dos educadores quanto dos que trabalham na parte administrativa das instituições. A produção acadêmica da população trans sempre é colocada em cheque. Se as pessoas que são referência dentro desse espaço não ofertam o mínimo de respeito, o restante dos estudantes também não, e a violência transfóbica se intensifica”
Leona ainda adiciona: “o trabalho de inclusão não termina por garantir acesso ao banheiro ou ao nome social. Ele está ligado ao exercício contínuo de formação e educação das pessoas quanto à entrada da população trans na universidade. Não adianta colocar cadeira, tem que ser algo trabalhado com toda a comunidade. Mas como fazer isso, se com os cortes financeiros nas universidades elas não estão conseguindo organizar nem serviço de limpeza?”.
Embora o direito ao nome social e de cotas em vagas universitárias sejam conquistas importantes, para ambas as educadoras, ainda é necessário políticas de acesso e de permanência mais contundentes para essa população vulnerável.
Umas das políticas pela qual o ITBE advoga é pela regulamentação e implementação dos cursinhos populares voltados para população trans. “O Rio Grande do Sul já tem cursinhos que foram regularizados e se transformaram em processos escolares, o que pode ser uma modelo para outras cidades”.
São necessárias políticas de formação continuada dentro dos espaços formativos de educadores, e algumas iniciativas foram iniciadas neste sentido. Ainda no governo Roussef, foi estruturado o Escola sem Homofobia, material que circularia em escolas para combater preconceitos e esclarecer dúvidas com relação à gênero, sexo biológico e orientação sexual.
O projeto sofreu intensa repressão parlamentar e de setores religiosos e foi vetado. Em 2018, ele voltou a ser debatido quando campanhas ligadas ao atual presidente criaram uma fake news chamando-o de “kit gay”.
“O que temos são políticas de corda bamba. Precisamos de uma formação continuada: o ideal seria que todos os cursos universitários tivessem uma matéria sobre estudos de gênero e diversidade sexual”, sinaliza Andreia.
Para Leona Wolf, atitudes como a da exclusão de políticas afirmativas ou ausência de políticas fortes são demonstrações da necropolítica, conceito do sociólogo camaronês Achille Mbembe, onde o Estado adota políticas de determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status político dos sujeitos, dando margem a todo tipo de arbitrariedade.
“Não é só matar diretamente, como a polícia faz. A partir do momento que o Estado não oferece e não consegue garantir educação ou diga que a população trans tem direito mas não cria condições para que ela possa se manter, isso se constitui numa política de morte. Estamos dentro de um governo que decide que setor da população vai ser abandonado”.
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*A foto de capa é de Felipe Goldenberg.