publicado dia 17 de julho de 2019
Terreiros são alvo de intolerância religiosa e racismo no Brasil
Reportagem: Redação
publicado dia 17 de julho de 2019
Reportagem: Redação
Matéria publicada originalmente no site Gênero e Número, com o título “Terreiros na Mira”. A autoria é de Fernanda Távora, Jordan Sousa, Pedro Lira e Vitória Régia da Silva.
Há um ano, o terreiro Asé Ojú Oyá, da ialorixá (mãe de santo) Claudia Rosa, na Zona Leste de São Paulo, foi invadido. Durante a madrugada, pessoas entraram no local e roubaram utensílios domésticos e eletroeletrônicos. Mas o mais grave, segundo a ialorixá, foi o ingresso nos roncós (quartos específicos para recolhimento dos filhos de santo), onde os agressores quebraram louças, pertences e mexeram em objetos sagrados. “Quando você percebe que foi roubada, a sensação de violência é muito forte. Mas quando percebe o desrespeito a uma casa de axé, é desolador”, ela define. Claudia chamou a polícia diversas vezes, mas nenhum agente compareceu ao local. Ela nunca conseguiu fazer o boletim de ocorrência.
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Seu caso, portanto, sequer entra na alarmante estatística que mostra que a maioria dos casos de intolerância religiosa registrados pelo governo federal diz respeito a religiões de matriz africana. Segundo dados do Disque 100 acessados pela Gênero e Número e pelo DataLabe, 59% do total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 eram referentes a religiões como a umbanda e o candomblé; 20% a religiões evangélicas; 11% a espíritas; 8% a católicos; e 2% a ateus. O Disque 100 é um canal para denúncias de violação de direitos humanos, criado em 2011 pela então Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Entre 2011 e 2017, as denúncias de discriminação por motivo religioso no Brasil cresceram de 15 para 537. Os dados mais recentes do Disque 100 totalizam apenas o primeiro semestre de 2018, quando foram registradas 210 denúncias. Quase 60% dos casos de intolerância religiosa contra adeptos de religiões de matriz africana foram registrados no Rio de Janeiro (117), São Paulo (95), Bahia (56) e Minas Gerais (51). No entanto, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, onde está localizado o terreiro de Claudia, 6.324 boletins de ocorrência com casos de intolerância religiosa foram registrados no estado nos dois últimos anos.
A imensa discrepância entre informações federais e estaduais mostra a total falta de uniformidade entre os dados no país, que não ajuda na elaboração de políticas públicas a respeito. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, atual responsável pelo Disque 100, não respondeu às perguntas da reportagem sobre suas ações para combater os ataques contra religiões de matriz africana, e tampouco comentou os números levantados pela Gênero e Número e pelo DataLabe.
As estatísticas que baseiam esta reportagem são vivenciadas com medo e apreensão por muitos praticantes dessas religiões e se refletem com frequência no noticiário de várias regiões do país. Na cidade de Nova Iguaçu (RJ), o terreiro de candomblé de Ogunzinho foi invadido no Dia das Mães deste ano. Segundo testemunhas, homens armados de fuzis arrombaram a porta lateral do imóvel e fizeram um churrasco no local para comemorar a data. Esta é a terceira vez que o terreiro, existente há 15 anos, é atacado. Em Camaçari (BA), o terreiro Ilê Axé Ojisé Olodumare foi invadido em janeiro deste ano, e o pai de santo da casa agredido com uma coronhada no rosto. Em Ceilândia (DF), o terreiro Axé Ode Iboalama foi invadido por homens armados com foice e facão no dia 1o de maio. Segundo os relatos, no momento da invasão os homens disseram que o espaço não era lugar de “macumbeiros”.
“As religiões de matriz africana enfrentam uma perseguição sistemática. A intolerância religiosa não vem de hoje. O que muda é o cenário e os personagens, mas a discriminação e a perseguição à cultura africana sempre aconteceram, muitas vezes de maneira institucional”, destaca Rodney de Oxóssi, antropólogo, doutorando em Ciências Sociais pela PUC de São Paulo e babalorixá (pai de santo) do terreiro Obá Ketu Axé Omi.
Para Ivanir dos Santos, babalaô (sacerdote relacionado ao jogo de búzios) e pós-doutorando em História Comparada, o Brasil é racista e as instituições foram construídas de forma racista e intolerante com relação às religiões de matriz africana. “As ações de intolerância religiosa, racismo e preconceito estão relacionadas ao interesse dos homens, a partir do seu lugar de poder e dominação. A intolerância religiosa é uma questão mais política do que espiritual”, pontua.
“Nossa religião foi formada por mulheres negras, sequestradas e escravizadas”, sintetiza mãe de santo que teve terreiro atacado em São Paulo
Quando a ialorixá Claudia Rosa teve seu terreiro, na Zona Leste de São Paulo, invadido, roubado e depredado no ano passado, ela chamou a polícia. Oito horas depois, ninguém havia aparecido. Ela fez um segundo contato, e novamente nenhum oficial foi ao local. “Fiquei três dias com a casa em desordem, esperando que a polícia viesse. Na época, muitas pessoas do axé me apoiaram e me levaram ao Ministério Público. Um promotor que recebeu nossa queixa, mas nunca conseguimos fazer boletim de ocorrência”, ela conta.
A intolerância religiosa no Brasil tem gênero e raça. De 2011 ao primeiro semestre de 2018, 59% das vítimas eram negras e 53%, mulheres, segundo denúncias recebidas pelo Disque 100. Entre agressores/suspeitos, 56% são brancos e 43% negros. Em relação ao gênero, a proporção é mais equilibrada, com mulheres na maioria (52%).
“Não há intolerância religiosa, há racismo religioso”, atesta o historiador e pesquisador Luiz Antonio Simas, autor de diversos livros sobre cultura popular, entre eles “Dicionário da história social do samba”, vencedor do Prêmio Jabuti em 2016. Essa é também a opinião de outros estudiosos e lideranças religiosas ouvidas pela Gênero e Número e Datalabe. Simas menciona a reflexão do filósofo Frantz Fanon [pensador francês que discute descolonização e racismo] sobre o racismo simbólico, expresso na depreciação dos saberes que a população negra construiu ao longo da história. “Quando se deprecia a religiosidade, é o racismo que entra em cena”. O pesquisador ainda destaca que nessas religiões, que ele chama de “afro-ameríndias” [uma provocação à ideia de América], a herança do índio é muito forte, mas invisibilizada.
Claudia Rosa concorda que a discriminação contra religiões de matriz africana não pode ser apenas descrita como intolerância: “Você pode ter intolerância ao leite, mas o que acontece contra as religiões de matriz africana realmente é racismo. Tudo o que tem acontecido em relação a invasão, violência e desrespeito ao nosso sagrado não é por ser uma religião apenas, mas por ser uma religião trazida por mulheres e homens negros. O racismo religioso é uma tentativa de retorno à escravidão e temos sofrido isso na pele diariamente”.
Segundo Simas, todos os saberes afro-ameríndios foram vítimas do racismo simbólico: “Isso sempre aconteceu, porque esses saberes são deslocados para o campo da barbárie, do primitivismo”. Ele ainda destaca que o racismo religioso também se expressa de uma forma menos aparente, no campo da simpatia cordial. “Muitas vezes as pessoas são simpáticas porque acham que há uma dimensão pitoresca e folclorizada, mas ao fazer isso, mesmo sem intenção, podem estar sendo racistas.”
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Desde criança, a fotógrafa e candomblecista Clara Nascimento passou por diversos casos de racismo religioso. Dois a marcaram especialmente. Quando estudava em um colégio católico, escutou de uma professora que ela fazia parte de uma seita, por ser do candomblé. Em 2016, já adulta, passou por uma situação de violência: “Um homem correu atrás de mim na rua e tentou arrancar meu fio de contas. Ele puxou, mas não arrebentou, só me arranhou. Lembro que as pessoas não fizeram nada, porque elas não se importam. Claro que depois que aconteceu, percebi que tem relação com o machismo também. Por eu ser mulher, a pessoa se sentiu no direito de encostar em mim. Se fosse um homem, não sei, seria diferente”, aposta.
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Para Cláudia Rosa, o fato de sua casa ser de candomblé e chefiada por mulheres negras é um dos motivos para a invasão e falta de resposta da polícia: “A religião de matriz africana tem como base a mulher, mas como o patriarcado toma conta do mundo, sofremos com racismo e machismo. Nós, mulheres, temos que nos posicionar a cada dia e ter consciência de que nossa religião foi formada por mulheres negras sequestradas da África e escravizadas. Elas trouxeram seus costumes, hábitos e fé para essa terra”.
Luiz Antonio Simas lembra que a mulher nessas religiões possui diversas funções rituais de liderança, e a discriminação contra as religiões de matriz africana não pode ser dissociada da discriminação de gênero:
São religiões com protagonismo feminino. Somos criados em um imaginário patriarcal, profundamente machista e em uma tradição judaico-cristã em que as mulheres surgiram como apêndice do homem. Por isso, a discriminação dialoga com a questão de gênero. Incomoda ser uma religiosidade de preto, de índio e, em larga medida, centralizada no poder espiritual e comunitário da mulher.
Em março deste ano, a 5oª edição do Encontro de Mulheres de Axé do Recôncavo Baiano e o primeiro Encontro de Mulheres de Axé do Brasil, nas cidades de Cachoeira e Muritiba, na Bahia, tiveram entre seus principais objetivos ampliar a voz das mulheres nas religiões de matriz africana. Juçara Lopes, do terreiro Axé Obá Lajá, no Recôncavo baiano e uma das coordenadoras de ambos os eventos, conta que cerca de 50 lideranças de 16 estados do Brasil se reuniram para discutir o assunto: “Ser uma liderança dentro do terreiro é diferente para mulheres e homens. Por sermos negras, já sofremos vários tipos de violência no Brasil. E quando somos de matriz africana, sofremos muito mais devido à discriminação religiosa”. A partir do encontro foi criada a articulação nacional Mulheres do Axé, para enfrentar o racismo religioso e o machismo, e foi proposta a criação de uma sede para o grupo no Recôncavo Baiano.
Como a evangelização e tráfico cristãos pressionam as religiões de matriz africana
Apenas em 2018, 72% dos casos de intolerância religiosa registrados no estado do Rio de Janeiro tiveram como alvo religiões de matriz africana. Desses, quase um quarto tem ligação com terreiros ou barracões (21%). Os registros vão desde depredação dos locais de rito a invasões, passando por discussões motivadas pelo barulho dos atabaques. Os dados foram fornecidos pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e de Direitos Humanos.
Os ataques a terreiros no Rio não são novidade. Em 2015, uma criança de 11 anos levou uma pedrada quando saía de uma festa em um barracão na Zona Norte da capital. Em 2017, uma ialorixá foi obrigada a quebrar os objetos dentro de seu próprio terreiro em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, enquanto era filmada por traficantes convertidos ao neopentecostalismo. A região é a que mais reúne casos de ataque ligados à liberdade religiosa: 24,3% segundo a secretaria.
Nos últimos anos, o avanço da pauta evangélica cresceu no Brasil a olhos vistos e chegou ao seu ápice com a eleição de um presidente da República que nunca se assumiu evangélico, mas foi ungido pelas águas do Rio Jordão em cerimônia de batismo e teve neste setor apoio crucial para sua vitória. Não à toa o avanço territorial evangélico – seja ele político, midiático ou efetivamente espacial – ganhou fôlego nos últimos anos. Segundo o pesquisador Luiz Antonio Simas, a característica evangelizadora associada a um projeto de poder político, delineada por vertentes dos segmentos neopentecostais, pode ser perigosa. “A ideia da evangelização está presente no Atos dos Apóstolos, nos escritos de São Paulo: ‘leve a palavra a todo mundo’. Isso pode ser bonito por um certo aspecto, mas pode flertar com uma tirania muito perigosa”, analisa.
No estado do Rio, a cidade de Nova Iguaçu concentra a maioria dos ataques e também aparece em segundo lugar no total de denúncias reportadas à Secretaria, atrás apenas da capital. Conhecida entre pesquisadores como Pequena África, a Baixada concentra uma grande quantidade de terreiros, principalmente de candomblé. Em todo o Rio de Janeiro, entre 2017 e 2018, foram pelo menos 56 casos, que nos registros de boletim de ocorrência da polícia são classificados como “ultraje a culto”.
A alta concentração destes espaços também é observada nas periferias de outras grandes cidades brasileiras. A Universidade de Brasília (UnB) fez um mapeamento dos terreiros em parceria com o Instituto Palmares e também observou essa tendência no Distrito Federal: quase metade dos 212 terreiros da unidade federativa está nas cidades-satélites de Planaltina, Ceilândia, Gama e Sobradinho, fora do centro político e econômico de Brasília.
O relatório aponta ainda que a localização desses terreiros é influenciada tanto pela perseguição às religiões de matriz africana, quanto pela especulação imobiliária. De acordo com o mapeamento da UnB, Ceilândia concentra o maior número de terreiros, e também é o distrito com mais alta concentração de boletins de ocorrência: 21,4% dos registros feitos entre 2017 e 2018.
Luiz Antonio Simas afirma que o aumento do número de ataques é visível há pelo menos 40 anos, junto com o avanço das religiões neopentecostais, e é a expressão violenta de uma disputa de mercado religioso. Segundo ele, enquanto as religiões neopentecostais operam pela lógica da teoria da prosperidade e da conversão, as religiões de matriz africana estão mais ligadas à vocação e à ancestralidade. “Religiões de matriz africana não são religiões de conversão. Já as religiões monoteístas têm essa tendência. Se partimos do princípio de que há um único Deus, eliminamos todos os outros. Um dos fundamentos da ideia da evangelização é que aquele que não é fiel tem que ser convertido”, explica.
As disputas pelo território e pelo público religioso atingem camadas políticas ainda mais profundas, chegando a outra vias de poder: quando o tráfico passa a agir em nome de seu Deus cristão para expulsar ialorixás e babalorixás de seus terreiros em favelas e periferias.
Para o babalorixá e pós-doutorando em História Comparada Ivanir dos Santos, a influência neopentecostal não passa apenas pela conversão e é preciso entender o que está por trás do discurso de dominação do território pela retórica religiosa: “Nos presídios, por exemplo, virar evangélico é significado de bom comportamento. O papel de alguns pastores dentro do sistema prisional é garantir a relação de tranquilidade com o poder local, com o diretor do presídio”.
Ivanir explica como a “dívida” de ex-detentos com pastores e igrejas respinga nas religiões de matriz africana quando eles saem das penitenciárias: “A igreja também é uma ponte com a família, pois concede cestas básicas e assistência jurídica enquanto a pessoa está presa. Então, ao sair da prisão, ela tem que pagar o benefício que recebeu. Como paga? Continua no tráfico e acaba expulsando a umbanda e o candomblé dos territórios.”
Ele observa ainda que o crescimento dessas igrejas dentro das favelas e periferias faz parte da disputa de poder político entre religiões neopentecostais e que a conversão de quem domina o território é uma forma de se manter no local. “Esses espaços também se tornaram currais eleitorais. É uma engenharia social complicada”, analisa.
Mesmo em um cenário difícil, as religiões de matriz africana são sinônimo de resistência e acolhimento. Segundo Simas, os terreiros costumam formar uma rede de apoio no território em que se localizam: “Ao se fazer uma geografia do candomblé do Rio de Janeiro, percebe-se que nunca há um terreiro isolado, sempre há outro na mesma área.”
Essa estrutura de união passa uma sensação de segurança para os praticantes das religiões de matriz africana. A fotógrafa candomblecista Clara Nascimento conta que no bairro de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, sente-se mais tranquila. “É um bairro com muitos terrenos baratos, quase não tem transporte e nem saneamento. O sonho de todo terreiro é ter muito espaço e lá isso é possível. Por isso há muitos nessa área. É comum ver pessoas na rua com ‘roupa de santo’ e todos se conhecem”, conta.
Para Pai Rodney de Oxóssi, babalorixá e antropólogo, a vivência dos seguidores das religiões de matriz africana passa por dois territórios: o de segregação e o de resistência. “O território de segregação é onde a gente é confinado de um jeito ou de outro por uma série de fatores. Eu sofro com o racismo e com a intolerância religiosa todos os dias. Mas claro que há casos em que a questão religiosa fica mais evidente. As pessoas denunciam o barulho dos atabaques em uma região em que há muitas festas que duram a noite inteira. Se eu tocar tambor, certamente a polícia vai aparecer na minha porta”, conta o babalorixá.
Problemas com vizinhos são os mais recorrentes nas denúncias levantadas Disque 100: eles são maioria (28%) entre os agressores, seguidos por desconhecidos (21%) e irmãos/ãs (5%). Por trás de um suposto incômodo, há sempre o peso maior do preconceito com a religião: “Tem desde o vizinho que joga pedra no momento em que a casa está cheia ao vizinho que se acha no direito de bater na nossa porta, invadir o nosso ritual e questionar o que está acontecendo”, ele relata.
No entanto, o religioso ressalta a força dos praticantes destas religiões. “Desde sempre somos resistência nesse país. Todos os nossos territórios e espaços se configuram desta forma – desde os quilombos, passando pelos terreiros de candomblé, escolas de samba e rodas de capoeira”, conclui Pai Rodney de Oxóssi.
Em 2012, o templo Pai Antônio de José de Benguela, na Zona Norte da cidade do Rio, conseguiu uma licença para distribuir vacinas, função desempenhada por uma igreja evangélica local por muitos anos. Segundo Marcos José, dirigente do espaço, a igreja demonizou o lugar para que perdesse a licença de distribuição, e muitas pessoas se recusaram a tomar vacinas, ao saberem que se tratava de um terreiro. No ano seguinte, o espaço perdeu teve a licença revogada.
O caminho para resolver o problema ainda é longo. Segundo Gilbert Stivanello, delegado da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), o medo de retaliação por parte dos violados é uma barreira para que denúncias sejam feitas. “Mesmo que a polícia opere naquele espaço, mesmo que prendamos o criminoso, alguém pode assumir o lugar dele, e quem denunciou fica com esse receio”, ele conta.
O delegado reforça que questões sociais devem ser levadas em conta, bem como segurança pública. “A pessoa chega aqui vitimizada e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos oferece abrigo, programa de proteção a testemunha. Mas a vítima muitas vezes não quer, porque ela é dona do local e paga IPTU. Não é simples ser afastado do local onde muitas vezes a pessoa também mora”, explica. “Além disso, muitos falam ‘Eu posso até sair de lá. Mas e meus parentes, que moram na mesma comunidade?’”
Leis existem, mas falta de políticas públicas não garante liberdade religiosa
Mesmo após o fim da escravidão, a perseguição às religiões de matriz africana pelo Estado se manteve na sociedade brasileira. Criada em 1941, durante o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas, a Lei da Vadiagem foi usada para criminalizar manifestações da cultura afro-brasileira no país, como as rodas de samba, a capoeira e as religiões de matriz africana. A lei até hoje é vigente na Constituição, embora raramente aplicada. O texto considera vadiagem “entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência”.
Com o fim da ditadura de Vargas, a Constituição de 1946 assegurou a descriminalização das religiosidades de matriz africana e indígena e, décadas depois, a Constituição de 1988 estabeleceu que União, unidades federativas e municípios devem ser imparciais em relação aos diversos cultos e igrejas, garantindo a liberdade religiosa e consolidando o Estado laico. O termo, no entanto, ainda é uma realidade distante para os povos de terreiro. “Para nós, não existe Estado laico. Nunca existiu. Continuaremos lutando por ele, lógico, porque queremos liberdade religiosa e um Estado democrático de direito onde possamos debater essas questões”, diz o babalaô e professor Ivanir dos Santos.
A Lei 7.716, de 1989, conhecida como “Lei Caó’’, determina punição para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e os considera inafiançáveis e imprescritíveis, com pena de dois a cinco anos de reclusão. No Código Penal, há também o crime de injúria qualificada, caracterizado pelas ofensas por “raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”, e os crimes contra o sentimento religioso, que incluem atos que possam “impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso’’.
Os estados brasileiros não possuem uma base estatística consolidada e uniforme sobre boletins de ocorrências (BOs) envolvendo casos de intolerância religiosa no país. A Gênero e Número e o DataLabe solicitaram via Lei de Acesso à Informação (LAI) os dados de boletins com motivação por intolerância religiosa de 2017 e 2018 a todos os 26 estados do país e ao Distrito Federal.
A sistematização das informações sobre intolerância religiosa é heterogênea nos estados, sendo que nenhuma base de dados disponibilizada revela a religião da vítima e, apenas em alguns casos, como no Distrito Federal e na Bahia, trazem dados de gênero e raça dos denunciantes. De todos os estados, apenas 11 enviaram os dados solicitados pela Gênero e Número e o DataLabe.
O Maranhão enviou números de período diferente ao solicitado e Amazonas e Paraíba disponibilizaram apenas os dados referentes às capitais. Outros estados como Minas Gerais, Tocantins e Rio Grande do Norte responderam à solicitação informando que não tinham esses dados discriminados. Já Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Acre, Sergipe, Pernambuco, Amapá e Roraima não responderam a solicitação.
Em São Paulo, estado onde a primeira Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância do país foi fundada, em 2006, foram 6.324 BOs nos dois últimos anos: 3.070 em 2017 e 3.254 no ano passado, um aumento de 6%. Já o Rio de Janeiro — estado com maior número de casos desde 2011, segundo o Disque 100 do governo federal — reportou apenas 56 ocorrências classificadas como “impedimento ao culto” entre 2017 e 2018. A Bahia (terceira no ranking do Disque 100) trouxe ainda menos casos: foram somente 11 boletins de ocorrência por motivação de intolerância religiosa, sendo 10 associados a vítimas pardas ou pretas e um associado a vítima branca. O Distrito Federal reportou 42 BOs entre 2017 e 2018, sendo que no último ano, 64% foram registrados em maio ou novembro.
O Rio de Janeiro, por exemplo, não tem registros estatísticos específicos para os casos de intolerância religiosa. Em abril deste ano, foi sancionada uma lei que cria o subtítulo “intolerância religiosa” nos registros de ocorrência da Polícia Civil do estado e dispõe sobre a produção e divulgação de dados estatísticos pelo Instituto de Segurança Pública (ISP).
Sem essa diferenciação, na maioria dos casos, os registros acabam entrando no sistema apenas como “preconceito”, que podem se misturar a outras esferas, como o preconceito racial. Segundo Átila Nunes, deputado federal pelo MDB envolvido na criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) no Rio, inaugurada em dezembro de 2018, é preciso dar atenção especial aos dados, principalmente para basear a criação de políticas públicas. “A falta de uma sistematização desses dados é hoje uma lacuna muito séria. Há muitos meios para chegar a eles, mas ninguém ainda consegue dar um número exato de quantos casos de intolerância religiosa temos no nosso estado.”
No entanto, a falta de sistematização não significa falta de dados. Gilbert Stivanello, delegado da Decradi do Rio, explica que em todo boletim de ocorrência há um espaço onde é possível denunciar a motivação dos ataques. O desafio está em sistematizar o fluxo de informações. Dados do Instituto de Segurança Pública que compilam casos de “Injúria por preconceito” e “Preconceito de cor e raça” entre 2015 e 2019 incluem religião como um dos motivos, que incluem ainda raça, cor, etnia e origem. Apenas os casos de “ultraje a culto e impedimento ou perturbação a ele relativo” se referem especificamente a religião e, segundo o relatório, desde janeiro de 2015 até março de 2019, o estado do Rio teve uma média de dois ataques por dia.
O Instituto de Segurança Pública informou que vai começar a produzir e sistematizar os dados de intolerância religiosa quando a Polícia Civil fizer o repasse dos números. No momento, segundo o Instituto, a polícia está adaptando o sistema.
Durante o atendimento às vítimas, casos mais delicados demandam agentes de segurança pública com algum tipo de treinamento para lidar melhor com a situação. O deputado Átila Nunes cita o caso de um babalorixá que teve sua casa invadida e depredada, e que, depois de muito esperar para concluir o registro, viu o agente se recusando a entrar no terreiro para fazer a perícia da cena do crime.
Um dos fundadores da Decradi, Átila reitera a necessidade das delegacias especializadas. Além de lidar com intolerância religiosa, a Decradi combate casos de xenofobia, LGBTfobia e crimes que envolvam discurso de ódio. Apesar de ter sido criada no final do ano passado, o projeto de lei é de 2008 e só foi sancionado em 2011. “Foram mais de sete anos para tirar do papel. Diversos secretários de segurança entendiam que havia outras prioridades”, relembra o parlamentar.
Para o delegado Stivanello, a delegacia é importante por dar conta de casos mais graves, como o de Paula Sperling, vencedora da edição deste ano do Big Brother Brasil, da TV Globo, indiciada por dar declarações preconceituosas sobre religiões de matriz africana durante o programa. “Ao longo do BBB, recebemos inúmeras denúncias. O caso dela foi classificado como injúria, porque envolvia a ofensa e a honra de uma pessoa, e foi levado à Justiça”. Vencedora do programa e ré no processo, Paula recebeu 1,5 milhão de reais.
Ainda segundo ele, em outros casos, a Decradi serve também como fonte de informação. Apesar da equipe enxuta, todos os policiais foram treinados para lidar melhor com casos de intolerância e preconceito, inclusive na internet. “Além de treinamentos e cursos preparatórios de investigação, também fizemos programas de sensibilização. Temos uma parceria muito estreita com a Secretaria de Direitos Humanos do estado”, explica.
Em maio, o Ministério Público Federal (MPF) realizou uma audiência com povos de terreiro em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, região que concentra um grande número de terreiros no Rio de Janeiro. O objetivo foi debater a intolerância religiosa e promover a valorização das comunidades de religiões de matriz africana. Entre as medidas discutidas, estão ações de valorização da cultura africana e afro-brasileira nas escolas, acolhimento das vítimas e repressão a grupos criminosos que atacam sacerdotes, terreiros e adeptos dessas religiões. Também estava na pauta a imunidade tributária a terreiros.
Para o procurador da República Julio José Araujo Junior, que fez a convocação, a audiência faz parte de uma tentativa de manter um debate permanente sobre o combate à violência e sobre a valorização das comunidades de terreiro. “É nosso papel ter essa abertura e fazer esse exercício de manifestação desses povos para assegurar os direitos previstos na Constituição, muitas vezes não assegurados ou compreendidos pelos órgãos dos estados”, ele diz.
Na audiência foi lançado o relatório sobre intolerância religiosa elaborado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que traz o posicionamento do Ministério Público Federal sobre da laicidade do Estado e o combate à violência religiosa. O “Estado Laico e Combate à Violência Religiosa” foi produzido em 2018 e analisa o crescimento dos casos.
Segundo o relatório, é visível a falta de esclarecimentos prestados pelos órgãos de segurança pública, que, apesar do aumento da violência, não dispõem de metas, estratégias, ações e estrutura para o enfrentamento à intolerância religiosa. “A motivação religiosa frequentemente não é levada em consideração no momento do registro e da análise dos casos, que não raro são subestimados. Trata-se da evidência de que o Estado brasileiro não dá a prioridade devida ao combate da violência religiosa”, destaca o texto.
O processo jurídico que reconhece templos religiosos é o mesmo para qualquer religião o Brasil. O advogado e dirigente da Tenda Espírita Filhos de Oxalá Thiago Carregal explica que a lei não diferencia as religiões para a legalização dos espaços, bem como para a concessão do benefício de isenção de impostos. Segundo a Constituição, não é necessário o pagamento de IPTU, por exemplo, quando o templo provar que este valor é utilizado em prol da comunidade e da expansão religiosa. “São atividades como cultos e liturgias, educação religiosa, auxílio às pessoas carentes, manutenção de institutos de assistência social, como hospitais, asilos, cemitérios, creches, núcleos de atendimento psicológico, colégios, universidades, gráficas…”, exemplifica Carregal.
São esses impactos na comunidade que geram os conhecidos favorecimentos e as disputas dentro dos territórios. Nos últimos meses, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, isentou de IPTU 426 templos religiosos, mas sem dizer quais seriam e a quais religiões pertenciam esses templos. O caso foi citado em CPI instaurada na Câmara dos Vereadores para investigar se houve favorecimento de grupos religiosos na gestão da Prefeitura.