publicado dia 26 de abril de 2019
“Espaços públicos contemporâneos são projetados sem vida, gênero ou desejo sexual”
Reportagem: Redação
publicado dia 26 de abril de 2019
Reportagem: Redação
Matéria publicada originalmente no ArchDaily*
No âmbito do projeto de pesquisa Espacios Oscuros, focado em observar e analisar a experiência da diversidade sexual nos espaços públicos da cidade de Santiago do Chile, os arquitetos María González e José Tomás Franco conversaram com Nikos Salingaros, matemático e pensador conhecido por seu foco teórico alternativo para a arquitetura e o urbanismo, que promove o desenho centrado nas necessidades e aspirações humanas, combinando a análise científica com uma experiência intuitiva profunda.
“Nossas cidades são, em sua maioria, hostis às sensibilidades de seus cidadãos. (…) Quase tudo foi alienado, padronizado, esvaziado. Então, como encontrar-se com pessoas diferentes, e como esperar uma mistura entre pessoas estranhas?”.
Nesta entrevista, Salingaros não só questiona a maneira como os arquitetos estão desenhando os espaços privados e públicos de nossas cidades, ignorando -quiçá inconscientemente- ao ser humano em sua diversidade, mas também sugere o surgimento de uma série de espaços comunitários privados que estariam suprindo as necessidades de expressão e apropriação de todos os habitantes da cidade.
Você acredita que a heteronormatividade influenciou a forma com que se projetou, desenhou e/ou habitou nossas cidades e seus espaços públicos, historicamente e na atualidade?
Aqui há uma história profunda que vai muito além da heteronormatividade, por que trata-se da essência dos seres humanos. Nossos espaços públicos contemporâneos são projetados para seres sem vida, e, sobretudo, sem nenhum gênero ou desejo sexual. Certamente, não foi assim no passado. Os espaços públicos históricos e vernaculares foram abertos a todos os tipos de pessoas, e fomentaram os encontros amáveis e amorosos aleatórios de todo tipo.
No momento em que estes são substituídos pelo espaço privado dos centros comerciais e outros lugares de comércio controlado, se perde a possibilidade da mistura livre de indivíduos. E, é claro, os modelos arquitetônicos que vem do comércio a grande escala são também padronizados. A própria arquitetura, ligada a essa ideia, é geralmente uma arquitetura que pode controlar o usuário.
Também se perdeu a estrutura fractal no ambiente construído, o que implica uma variedade de espaços de tamanhos diversos mas interconectados. É o oposto da praça aberta, desenhada como um objeto abstrato.
Até que ponto você pensa que as nossas cidades e seus espaços públicos facilitam a expressão e a apropriação livre de todas/os seus cidadãs/ãos?
Como disse, nossas cidades são, em sua maioria, hostis às sensibilidades de seus cidadãos. O ambiente construído hoje não é de escala humana, e tampouco são as áreas dos edifícios que são favoráveis à circulação de pedestres. Quase tudo foi alienado, padronizado, esvaziado. Então, como encontrar-se com pessoas diferentes, e como esperar uma mistura entre pessoas estranhas?
Toda a inteligência de nosso planejamento contemporâneo foi canalizada em desenvolver formas que garantissem o isolamento e a separação de diferentes tipos de pessoas: desde as classes sociais, até as diferentes idades e orientações sexuais. Nos forçaram a transportarmos em automóveis, viajando de um espaço pessoal privado e escondido até outro espaço pessoal e escondido.
Você acredita que existam modelos urbanos – ou inclusive tipologias arquitetônicas específicas – que sejam mais favoráveis para permitir a livre expressão e a apropriação de todas as pessoas que habitam seus espaços públicos?
Posso parecer nostálgico, mas as praças urbanas do século XIX são ideais para misturar pessoas de todos os tipos. Elas têm a atração em sua estrutura parcialmente fractal.
No entanto, uma praça urbana não funciona como lugar de encontro sem uma alimentação de pedestres que vem dos blocos circundantes e próximos da cidade. Em muitos lugares podem haver sobrevivido algumas praças, mas não as residências dispostas originalmente ao redor delas. Dessa forma, a praça fica isolada da rede de pedestres e acessível apenas por meio do automóvel. Além disso necessitamos também que seu desenho evite o fomento do controle, salvo em emergências.
Até que ponto os arquitetos são conscientes da importância da observação reflexiva e profunda do ser humano – em sua diversidade – para o desenvolvimento de projetos que favoreçam a inclusão e a liberdade de expressão das/os cidadãs/ãos?
Tudo o que vejo – inclusive nas páginas do ArchDaily – é uma arquitetura de exclusão. E o dano se faz ainda pior, por que os arquitetos destes edifícios repelentes nos contam mentiram e inventam sonhos em suas descrições. Quem sabe apenas criam para si mesmos, pois não se baseiam habitualmente em uma observação reflexiva.
Os arquitetos de hoje em dia, com poucas exceções, ignoram o ser humano. Esquecem dos detalhes como a diversidade, quando a cidade está planejada para satisfazer exclusivamente um capital global extrativo. O papel do ser humano neste foco é ser um peão, um inseto consumidor bastante estúpido para não perceber que está em uma prisão.
Como você acredita, então, que as pessoas estão se expressando e habitando suas cidades, apesar deste modelo contemporâneo que iria contra a própria liberdade?
Para evitar o controle, os indivíduos tiveram que criar ou encontrar opções que lhes sirvam. Primeiro, recuando-se em espaços comunitários privados que apresentam uma qualidade atrativa e que, além disso, parecem não oferecer riscos. E, segundo, apropriando-se dos espaços descartados por este sistema – áreas esquecidas e deterioradas da cidade -, para criar uma rede de lugares de encontro fora do controle central.
Associadas a eles, aparecem uma série de outras questões. Por exemplo, um ato de rebelião contra o sistema totalitário, e uma expressão da necessidade de biofilia em nosso ambiente diário, se expressa através do grafite e da arte urbana. Além disso, a revolução informática nos entrega uma forma efetiva de conectar pessoas diferentes, escondidas do poder central através do encontro privado gerido pelas redes sociais.
Por último, em tempos de desafio, as pessoas que se sentem marginalizadas estão começando a invadir os espaços públicos dos quais anteriormente foram expulsas, como uma manifestação de sua queixa.
* Esta entrevista é parte do projeto de pesquisa Espacios Oscuros, atualmente em curso, focada em observar e analisar espaços públicos aleatórios que permitiram a expressão dos membros da comunidade LGBT+ em meio à normatividade urbana dominante, assumindo e expressando assim sua identidade como cidadãs/ãos. Siga os avanços do projeto aqui.