publicado dia 7 de fevereiro de 2019
“O investimento no Ensino Superior me propiciou oportunidade e paz para estudar”
Reportagem: Redação
publicado dia 7 de fevereiro de 2019
Reportagem: Redação
Por Bianca Ramos, arquiteta e urbanista
Em 2017, inspirada pela coluna “Se tudo der certo não pise no meu pé”, da Ana Paula Lisboa, publiquei no Facebook um depoimento sobre a minha chegada ao terceiro grau e o que isso representava, para o bem e para o mal, no contexto da minha família. Helena Singer me estimulou neste post a refletir sobre o contexto das políticas públicas brasileiras e como elas poderiam ter contribuído para a minha trajetória, e sugeriu que eu transformasse a resposta em um artigo. Na confusão dos dias, a ideia acabou se perdendo.
Nesta semana, após a declaração do Ministro da Educação, me lembrei dessa provocação e resolvi escrever. O caos diário triplicou, mas a reflexão se faz urgente nestes tempos em que voltamos a discutir pautas que pareciam superadas.
Fui a primeira “lá de casa” a chegar ao terceiro grau. Mais velha dentre os cinco netos do núcleo familiar mais direto, ainda sou a única a ter chegado lá. Tenho certeza que, de certa forma, consegui antes deles exatamente por ser a filha branca em uma família que é composta, de um lado, da fração fracassada do colonizador, e por outro, do legado da escravização e aprofundamento das desigualdades do sertão brasileiro.
Vejo cotidianamente o impacto direto que a minha “branquitude” teve em me abrir portas e o quanto que as deles, de meus primos-irmãos, foram se fechando. E essa é uma consciência dura de construir. Minhas tias queridas me criaram – morei com elas e meus avós boa parte da infância para que meus pais, operários, pudessem trabalhar. E depois, novamente, na adolescência em função da violência no Complexo do Alemão e da nossa mudança emergencial para Caxias.
Outro dia diziam para a minha mãe que se orgulhavam de mim pelo que venho alcançando, mas também por não me envergonhar delas. Entender o sentido disso é muito dolorido e muito simbólico.
Voltando para a provocação da Helena, entrei na universidade em 1999 e me manter neste espaço no primeiro ano foi um baita desafio. Os custos com transporte, alimentação e material (Arquitetura e Urbanismo) quase inviabilizaram a minha permanência. Passei pelo primeiro ano do curso com o apoio e esforço da família inteira e de grandes amigas que encontrei na FAU, amigas que me cediam da régua “T” ao colo da mãe, que dividiam o quarto, o computador, as milhares de cópias e os sonhos. Mas tenho certeza de que só completei os seis anos de curso e me formei graças à crença da minha mãe na educação como caminho e melhoria das condições de vida da nossa família nos anos que se seguiriam.
Vejo na minha pequena conquista individual claramente os impactos das políticas dos anos seguintes, desde as medidas socioeconômicas até especificamente o investimento no Ensino Superior. Destaco aqui a política de valorização do salário mínimo e demais medidas macroeconômicas voltadas para as classes C e D. Medidas que a maior parte das pessoas ignora (eu era uma delas), mas que na prática melhorou muito a capacidade de subsistência, consumo e crédito da minha família.
A sensível melhoria dos investimentos no Ensino Superior e em pesquisa me propiciaram um ano e meio de bolsa, e com ela, paz para estudar. Uma maior diversidade dentre os alunos a partir das políticas de incentivo à chegada dos estudantes de origem popular no Ensino Superior forçou a universidade a se repensar, criando condições para que alunos como eu pudessem estudar e iniciar seus estágios de forma mais qualificada.
Nesses seis anos vi os corredores do prédio da reitoria da UFRJ começarem a se colorir. Vi chegarem estudantes para quem eu não precisava explicar que Duque de Caxias, cidade da baixada fluminense, estava ali na vista do famoso “hall dos elevadores”. Nesse triste 2018 pude também ter a alegria e orgulho de votar em uma candidata negra, também da baixada, também arquiteta e urbanista e também egressa da universidade pública.
Fazendo o link com o contexto brasileiro, entre 2009 e 2017, passamos de 1.097 para 2.448 instituições de Ensino Superior. O número de cursos foi de quase 9 mil para mais de 35mil. O número de docentes se ampliou em 225% e as matrículas totais foram de 2,3 milhões para 8,2 milhões, com um incremento de mais de 270% nas matrículas em universidades públicas. Em relação à diversidade racial, entre 2003 e 2014, o número de estudantes negros (pretos e pardos) foi de 160 mil para 446 mil, crescendo mais de 170%.
O Ensino Superior brasileiro ainda conta com inúmeros e complexos desafios, o principal deles é que apenas 17% dos jovens entre 18 e 24 anos estão na universidade, mas o esforço para ampliação da diversidade e democratização do ambiente universitário nesses 20 anos é incontestável. No entanto, o atual ministro indica preferir apostar em um modelo seletivo, tornando a fazer da universidade uma ferramenta de aprofundamento de desigualdades, tornando a destituir o Ensino Superior do potencial de vetor de mobilidade social e econômica.
Diante disso resta encontrar caminhos para estimular a reflexão, qualificar a demanda social e resistir. E essa busca começa no diálogo com as pessoas, na conversa “lá em casa”, no esforço diário para que meus primos, nossos filhos e tantos outros não sejam levados a acreditar na falácia de que o investimento em educação pode significar tempo perdido.