publicado dia 3 de outubro de 2017
No Canindé, escola cria projeto de valorização da cultura migrante
Reportagem: Nana Soares
publicado dia 3 de outubro de 2017
Reportagem: Nana Soares
Quem dá os primeiros passos pelo corredor da EMEF Dom Infante Henrique, na região do Canindé, em São Paulo, logo percebe que está em uma escola diferente. Lá, onde cerca de 20% dos estudantes são migrantes ou filhos de migrantes, todas as salas são identificadas com placas em português, espanhol, inglês e árabe, que buscam contemplar os recém-chegados que ainda não dominam o idioma.
É quarta-feira de manhã e, em uma das salas, os alunos do 6° ano preparam-se, ansiosos, para ir além do perímetro da escola. A atividade integra o estudo do meio no bairro do Pari, vizinho ao Canindé, parte crucial do projeto “O migrante mora em minha casa”, criado em 2016 pela professora de História, Rosely Marchetti Honório.
Desenvolvidas após a ducadora observar repetidos comentários preconceituosos dos alunos em relação aos colegas migrantes, especialmente os de origem boliviana, as ações pedagógicas buscam mostrar como a migração permeia a vida das populações no mundo, inclusive daqueles que frequentam a escola. Racismo, xenofobia e vulnerabilidade social também estão em pauta, já que a escola localiza-se em um dos grandes pólos da indústria de confecções do país.
O território
Grande parte dos alunos da EMEF moram no entorno da escola, em uma região que antes abrigava a Favela do Canindé. Embora esteja a poucos minutos de caminhada do bairro vizinho, a maioria dos estudantes não conhece o Pari. “Eles não sentem que têm permissão para ir para lá, embora não exista uma barreira física”, explica Rosely. Para que possam explorar o novo espaço, o passeio propõe que os estudantes anotem as impressões referentes a cada ponto de parada, como os cheiros, as cores, as construções e as pessoas que ali circulam.
O roteiro inclui ruas icônicas do Pari, sejam as vias lotadas de comércio formal e informal, a rua mais alta do bairro ou a área da Favela do Canindé, onde viveu a escritora Carolina Maria de Jesus – figura importante da região e que rebatizará a EMEF. O destino final é a rua em que duas confecções têxteis foram fechadas após denúncias de que abrigavam trabalhadores em condição análoga à escravidão. “O intuito é mostrar que esses problemas estão aqui no bairro em que moram”, diz César Sampaio, também professor de História e que acompanha o projeto. Entre brincadeiras na praça e interações com os comerciantes, os alunos tentam dar sentido a essa realidade, questionando como o trabalho escravo é aliciado e quais mecanismos de denúncia existem atualmente.
Não é impossível que essa realidade seja vivenciada dentro das casas dos estudantes, o que reforça a presença desses temas no currículo da escola. A EMEF Dom Infante Henrique está localizada na mesma rua de um Centro de Acolhida para Imigrantes (CRAI) e os recebe, à noite, para aulas de português. Por isso, muitos dos alunos matriculados são recém-chegados ao Brasil e encontram-se em condições de extrema vulnerabilidade social. Há migrantes bolivianos, sírios, angolanos, congoleses, haitianos, entre outros.
Por iniciativa do professor César, a escola realiza encontros quinzenais entre esses migrantes e a comunidade escolar, que visam difundir suas culturas, identidades e histórias. “Quando comecei a dar aula na EMEF, em 2016, participei de algumas reuniões e também notei que, em sala de aula, sempre que havia algum conteúdo relacionado a imigração ou trabalho escravo, algum estudante aproveitava para fazer algum comentário preconceituoso. Era comum, por exemplo, eles se dirigirem a um colega de origem boliviana e dizer que a escassez de trabalho era culpa dele”, relembra.
O migrante sou eu
No primeiro ano de atividade, o projeto “O migrante mora em minha casa” fez com que, após diferentes ações, alunos do 6° ano passassem a enxergar as migrações em sua história familiar, sendo os casos mais recorrentes os pais ou avós vindo de estados do Norte e Nordeste do Brasil.
“Com isso, eles entenderam que esse é um fenômeno presente em suas histórias pessoais e muitos ficaram surpresos com isso, foi bonito de ver”, explica Rosely. Foi o que a docente precisava para dar início às questões ligadas ao preconceito, discriminação e racismo.
Ao fim do ano, as mudanças eram visíveis e os estudantes demonstravam que haviam deixado de ver os migrantes como um “Outro” distante e desconhecido. “Não ouvi mais comentários como os que ouvia antes e percebi que eles realizavam atividades juntos”, descreve a educadora. A sensibilização foi tão exitosa que partiu dos estudantes a sugestão de um trabalho educativo junto aos moradores do bairro alertando para a necessidade de combate ao trabalho escravo. Além de produzirem e distribuírem pelas ruas folhetos explicativos, eles conversaram com os moradores sobre o assunto.
Em 2017, eles já visitaram uma hospedaria para conhecer o trabalho de acolhimento de imigrantes e refugiados. É a continuidade de um projeto de integração entre escola e território que deve seguir até o término do Ensino Fundamental.
Orgulhosa do caminho percorrido, a idealizadora resume os aprendizados dos estudantes: “Eles não só se sensibilizaram com algo que era presente na vida escolar, mas entenderam que buscar melhores condições de vida é um direito de todos”.