publicado dia 30 de maio de 2017
Ação policial na região da Luz não acaba com a Cracolândia
Reportagem: Nana Soares
publicado dia 30 de maio de 2017
Reportagem: Nana Soares
A ação policial realizada pela Prefeitura de São Paulo nos arredores da Rua Helvetia, no centro da cidade, no amanhecer do dia 21 de maio pretendia resolver o problema da chamada “Cracolândia” ao expulsar os moradores das ruas em que viviam, mas acabou reacendendo o debate sobre a ocupação da região e a vulnerabilidade social da população local e dos usuários que ali frequentavam.
No final da operação, a Prefeitura afirmou ter prendido 28 pessoas e expedido 69 mandados de prisão em ação integrada com o governo estadual. Na ocasião, o prefeito João Doria Jr afirmou ser o “fim da Cracolândia”. Desde então, a gestão mandou fechar hotéis e comércios frequentados pelos usuários e vem lutando com a Justiça para conseguir a autorização para interná-los compulsoriamente. Essa política desgastou a própria gestão, culminando na renúncia da então Secretária Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Patrícia Bezerra, que classificou a ação do dia 21 como desastrosa, opinião compartilhada por urbanistas e por ativistas da área.
“Eles chegam na Cracolândia jogando tiro, porrada e bomba em todo mundo sem saber que essas pessoas, em sua maioria, são somente usuários. [O prefeito] Faz essa ação e aparece sorrindo na TV abraçando os policiais e dizendo que acabou com a Cracolândia, mas ele não acabou com a Craco, e sim espalhou o fluxo”, afirmou Marcos Maia, ativista da “A Craco Resiste”, organização que surgiu no fim de 2016 para resistir a possíveis ações truculentas tomadas pela nova gestão municipal. Na visão do ativista, a nova política é desastrosa e higienista. “O Cidade Linda é um programa cinza que não propõe que as pessoas tenham direito à cidade, mas quer tirar o povo preto e sujo da rua internando ao invés de cuidar.”
Em nota, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da Prefeitura de São Paulo assinalou que não há qualquer relação entre a ação na região da Luz e o programa Cidade Linda, constituindo-se como uma operação de cunho policial. Em um post no Facebook, o prefeito João Doria declarou que “uma equipe com 508 profissionais da Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social abordou e acolheu 520 tóxico dependentes que viviam na Cracolândia e fizeram 12 interações voluntárias”.
Os usuários de crack, antes concentrados nos arredores da rua Helvétia e Alameda Dino Bueno, migraram em sua maioria para a praça Princesa Isabel, também no centro de São Paulo. No entanto, foram identificadas várias “Cracolândias” pela cidade, muitas surgidas após a última intervenção da Prefeitura. Segundo Marcos Maia, isso causou uma desorientação até mesmo entre os profissionais designados a cuidar dessa população, como agentes de saúde, trabalho e assistência social. A SMDHC alega que “a Guarda Civil Metropolitana está monitorando os grupos de dependentes químicos para informar às equipes de saúde e assistência social para que possam realizar as abordagens e atendimentos”. O órgão ressaltou também que “é importante lembrar que, como os dependentes andam ao longo do dia pelas ruas do centro, não é possível definir pontos fixos”.
A Prefeitura instalou um contêiner que funciona como Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) da Nova Luz, com capacidade de atender 80 pessoas por dia. Segundo a pasta, 2 psiquiatras ficarão de plantão 24 horas para avaliação e atendimento dos dependentes químicos. Marcos Maia, no entanto, avalia o espaço como um “anti-CAPS” dada a estratégia pró-internação. “É uma política higienista”, defende ele.
A gestão Dória havia manifestado a intenção de apreender compulsoriamente os usuários de crack, mas a Defensoria Pública conseguiu barrar a ideia. Durante o fim de semana, no entanto, uma nova liminar autorizou a apreensão do dependente para avaliação médica, medida que voltou a ser barrada um dia depois. Mesmo os médicos sinalizados para realizar a abordagem manifestaram-se contra a decisão da Prefeitura. Em balanço divulgado na sexta-feira (26), a gestão municipal contabilizou mais de 5 mil abordagens pela assistência social e 2.445 acolhimentos no Complexo Prates e no Centro Temporário de Atendimento (CTA). Além disso, foram 26 internações na Casa de Saúde São João de Deus, que tem 90 leitos disponíveis para atendimentos psiquiátricos.
Política Urbana
Com a gravidade das denúncias dos moradores referentes às ações da Prefeitura, a Comissão Permanente de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo realizou uma sessão extraordinária na quinta-feira (25). Segundo Sâmia Bomfim, vereadora pelo PSOL, diferentes setores da sociedade civil entraram em consenso sobre a inadequação das ações realizadas no centro da cidade. “Essa não é uma questão de polícia, mas social, de empregabilidade, moradia, saúde pública”, argumentou. “O resultado é que agora a elite urbana está incomodada com a Cracolândia, já que ela se espalhou. Se antes ela ficava concentrada num único lugar, agora não mais.”
Para o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, as ações tomadas na região da Luz têm pouca probabilidade de darem certo, pois o cuidado com as usuários de drogas e a solução da Cracolândia exigem cuidados de médio e longo prazo ao invés de ações apressadas. “Dória quer mostrar rapidez em algo que não é com rapidez que se consegue. Qualquer projeto ali é complexo e depende de muita mobilização de recursos”, diz o especialista em planejamento urbano e regional pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
Na avaliação de Nabil, as estratégias do prefeito demonstram o desejo por uma “cidade higienizada, sem pobres e com ordem”. Porém, ele acredita que não há um projeto de cidade, apenas a construção de uma imagem. “E a Cracolândia é uma região com uma imagem negativa, por isso, acabar com ela. É uma tentativa de mostrar para um setor mais conservador da sociedade que ele é suficientemente ágil para enfrentar um modelo de cidade diferente.”
Uma história de abandono
A vereadora do PSOL acredita que um dos interesses por trás da expulsão dos usuários de drogas das ruas da Luz é a especulação imobiliária, opinião compartilhada por Marcos Maia, do coletivo A Craco Resiste. Já o urbanista Nabil Bonduki não crê que seja esse o caso: “Se fosse para abrir um investimento imobiliário agora não seria o momento, o promotor imobiliário não está interessado naquela região. Mas isso não quer dizer que isso não possa mudar a médio ou longo prazo”, opinou.
A antropóloga e integrante do Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (GEAC) da Universidade de São Paulo (USP), Bianca Chizzolini, lembra que a região é historicamente alvo de disputas que envolvem instituições culturais, patrimônio histórico, interesses imobiliários, e diferentes abordagens para tratamento dos usuários de crack, além da agenda política dos governos municipal e estadual. “O maior equívoco das gestões tem sido tratar a região basicamente como um problema de segurança pública e reforçar polaridades que não levam em conta a riqueza de variáveis da região, sem as quais não é possível imaginar um desfecho humanizado para as pessoas que ali vivem”, diz ela.
As intervenções do Estado na região da Luz datam desde a década de 80 com o projeto Luz Cultural, passando por ações como Operação Limpa, Operação Centro Legal e a Nova Luz, nas décadas de 2000 e 2010. “A cracolândia constitui o que alguns estudiosos chamam de territorialidade itinerante. Isto é: ela não é fixa. Embora se localize em uma determinada área urbana, ela se desloca a lugares mais distantes ou mais próximos, segundo as intervenções e repressões policiais de que é alvo e segundo suas próprias dinâmicas internas. A intervenção policial nunca mudou essa dinâmica e o Estado sabe disso, afinal é o responsável pelas intervenções que alimentam essa dinâmica itinerante”.
Bianca, especialista em antropologia urbana e conflitos espaciais, avalia que só em 2013 o Poder Público criou políticas de atenção aos usuários de crack, com o projeto Recomeço, seguido pelo programa Braços Abertos (2014). Mas mesmo assim a região nunca deixou de ser alvo de ações policiais e desmontes do fluxo (área destinada ao consumo de crack).
Redução de danos
Há décadas, diferentes gestões municipais e estaduais tentam acabar com a Cracolândia, utilizando várias estratégias diferentes, com maior ou menor uso de força. “O histórico de enfrentamento da questão do crack no centro de São Paulo é marcadamente uma opção pelo uso da violência policial, encarceramento de dependentes químicos e aposta em projetos culturais que nada dialogam com o cenário da cracolândia”, analisa Bianca. Em sua opinião, as abordagens deveriam ser tão variadas quanto as experiências de uso de crack na região, mas com o principal entendimento de que os usuários de crack são pessoas que merecem condições de vida menos precárias e a proteção de seus direitos básicos.
Braços Abertos
Criado em 2014, o Programa Braços Abertos foi um esforço integrado de várias Secretarias Municipais e prestava assistência ao usuário de crack através da redução de danos. O Programa consistiu em um acordo com 147 moradores de barracas nas Ruas Helvetia e Dino Bueno, que receberam 3 refeições diárias, oportunidades de emprego com renda de R$15 por dia, oportunidade de tratamento com acompanhamento e moradia em sete hotéis da região. No primeiro ano do programa, o consumo médio de crack diminuiu, em média, de 50 a 70%.
O consenso entre quem está por dentro do dia a dia da Cracolândia e das pessoas que ali moram é o de que prender ou internar compulsoriamente não acaba nem com o consumo e nem com o tráfico de drogas. “A política mais eficaz não foca a droga, mas o ser humano que tem ali”, avalia Marcos Maia, da Craco Resiste. “O que vinha acontecendo no Fluxo precisava de melhorias, mas era o meio mais eficaz: cuidado em liberdade”, definiu ele, referindo-se ao Programa Braços Abertos, instaurado na gestão passada e parcialmente descontinuada por Dória. Segundo o ativista, a política de oferecer comida, moradia, cuidado e liberdade fez com que muitos gradualmente reduzissem o consumo da droga de acordo com sua própria vontade.
“Redução de danos não significa necessariamente consumir drogas em espaço público”, esclarece o urbanista Nabil Bonduki. “Não podemos confundir pobreza com dependência, há muitos pobres na região da Cracolândia que não usavam crack. Além disso, o traficante grande não estava ali, no máximo, víamos o pequeno, que trafica para consumir. É um equívoco achar que vamos resolver o problema prendendo as pessoas”, completa.