publicado dia 20 de janeiro de 2017
Das Janelas Quebradas à Cidade Linda: o que escondem as políticas de embelezamento urbano
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 20 de janeiro de 2017
Reportagem: Danilo Mekari
Atualizado às 17h10 do dia 23/1.
Qual a relação das janelas quebradas de um edifício com o índice de criminalidade e violência de uma cidade?
Publicada originalmente em 1982, a Teoria das Janelas Quebradas apostava que pequenos delitos não criminalizados pelas autoridades locais – como beber álcool no espaço público, urinar na rua e grafitar paredes – poderiam estimular um crescimento no número de crimes de maior porte, como assaltos e homicídios.
O nome da teoria provém de uma passagem do artigo publicado pelos pesquisadores James Wilson e George Kelling na revista The Atlantic Monthly:
“Considere um edifício com algumas janelas quebradas. Se as janelas não são reparadas, a tendência é que os vândalos quebrem algumas janelas mais. Eventualmente, eles podem até invadir o edifício. Se estiver desocupado, talvez se tornem posseiros dele.”
Um dos mais importantes adeptos deste pensamento é o ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani. A partir de 1994, após um período de testes realizado no metrô nova-iorquino, o republicano decidiu levar a teoria para o restante da cidade, época em que os índices de criminalidade local eram alarmantes.
Na visão de alguns críticos, naquele momento, a polícia da cidade havia deixado de lado o objetivo de manter a ordem para combater o crime: a prática do “stop-and-frisk” (pare e reviste) foi adotada pelos agentes de segurança, tendo como alvo majoritário bairros pobres onde se concentravam as populações negra e hispânica.
De 1995 a 2015, a curva decrescente do número de crimes violentos é evidente, assim como a evolução do número de prisões por pequenas infrações. Em 2014, mais de 97 mil pessoas foram condenadas por conta de mau-comportamento em público: 81,4% eram negros. É bom lembrar que os Estados Unidos possuem a maior população carcerária do mundo: cerca de 2,3 milhões de pessoas, de acordo com dados de 2015.
O vídeo acima mostra os impactos da política das Janelas Quebradas nas comunidades negras de Nova York (com legendas em inglês).
A queda de crimes graves em Nova York é apontada como prova inegável de que a Teoria das Janelas Quebradas funciona. No entanto, muitos críticos ao plano mostram que diversos fatores contribuíram para a redução do índice de criminalidade no final dos anos 90: o boom econômico norte-americano, a diminuição do desemprego, um orçamento maior para as divisões de policiamento. Outras grandes cidades do país também experimentaram uma queda notável na criminalidade neste período sem que tivessem instituído essa política, como Boston, Houston e Los Angeles.
Gestão do supérfluo
Baseada na cultura do medo, a política de combate às pequenas infrações implementada em Nova York guarda semelhança com a ideia de “tolerância zero” que o novo prefeito de São Paulo, João Dória Jr. (PSDB), promete agir contra pichações e até mesmo grafites em locais não autorizados pelo poder público. Com o lançamento do Programa Cidade Linda, o empresário espera criar uma cidade aprazível aos olhos, suprimindo do espaço urbano os elementos que destoam do que ele considera belo.
Na opinião de Euler Sandeville, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisador do tema Paisagem, Cultura e Participação Social, uma discussão de estética urbana deveria ser “mais complexa e sofisticada” do que essa. “Vejo basicamente como uma gestão do supérfluo. Precisamos de uma gestão do urbano, ganhamos a gestão do supérfluo. A beleza não é supérflua, é uma condição da relação humana com o mundo, e sua redução expõe valores morais frágeis e projetos menos públicos”, acredita o professor.
Segundo Sandeville, a cidade e a gestão de seus problemas tem sido representada por uma imagem transitória e imediata, incapaz de tocar nos verdadeiros problemas ou ser capaz de afetá-los. As ações de Dória operam, em sua visão, no âmbito das contradições políticas e das crises institucionais e públicas que atravessam hoje o contexto brasileiro. “A imagem da beleza associada à riqueza e à ordem opera com signos imediatos, e o enunciado subjacente do homem que faz (fazendo nada), que desce no lugar do outro (o povo, o que não faz de fato) e do conclame a vestir a roupa pela cidade, inauguram um discurso fácil e de matiz potencialmente autoritário e arbitrário, comunicando mudanças já em curso a partir de uma mera mudança de estilo.”
Subversão midiática
Simbolicamente, a iniciativa do prefeito – além da nomenclatura semelhante com o programa Cidade Limpa, de Gilberto Kassab – expressa sua oposição às políticas da gestão anterior, como o incentivo ao grafite. Em novembro de 2014, uma foto do ex-prefeito Fernando Haddad grafitando um Pato Donald no túnel da avenida Paulista foi exaustivamente compartilhada nas redes sociais. Euler defende que está em curso hoje uma subversão midiática da imagem em relação ao governo anterior.
“Dória não inventa nenhuma gramática: parece haver no poder uma sedução em distrair os interlocutores. Nas imagens, age como se estivesse se divertindo com um novo brinquedo – mas trata-se de um poder imenso administrar um PIB e uma riqueza que se assenta na desigualdade social e problemas urbanos e ambientais do porte de São Paulo. Ao se fantasiar do operário que não é, nem se espera que seja, promove uma ilusão. E o que se oculta na ilusão? A dimensão do imenso poder em curso, que se traduz em favores, símbolos e oportunidades na casa dos milhões de negócios diretos e indiretos.”
O professor recorre à passagem entre os séculos 19 e 20 para lembrar que a noção de embelezamento urbano não levava em conta apenas a decoração da cidade, mas sim a própria ideia de construção de um ambiente urbano e cívico – sempre atrelado, contudo, aos interesses das elites.
“Mas a favela é feia? E por que os assentamentos no oriente médio não são? Só por que não é rico não é bonito? A beleza é muito maior do que isso, e discutir a beleza da cidade deve envolver debates longos, a perda de preconceitos e a impossibilidade de certezas, além de diversos outros condicionantes da estruturação urbana – não apenas a limpeza de paredes e fachadas.”
Diversidade e multiculturalidade
Para Paulo Romeiro, advogado e pesquisador do Instituto Pólis, a ideia de beleza propagada por Dória e seu gabinete não representa necessariamente a diversidade e a multiculturalidade de quem vive em São Paulo e ocupa seus espaços públicos. “Uma ideia de beleza que representa um padrão não pode representar a multiplicidade da metrópole. O centro é um espaço de disputa muito forte na cidade, no simbólico e no imaginário. O prefeito está apostando em uma cidade ordeira, limpa, sem ambulante, sem catador, sem morador de rua.”
Nos vídeos de divulgação do programa, Dória convoca a população paulistana a agir como fiscal de pichadores e grafiteiros, estimulando o controle e a denúncia entre os cidadãos. “Historicamente, a questão da cidade linda tenta se associar à ideia daquilo que é bom. Mas essa é uma questão pessoal, aquilo que me agrada. A ideia de chamar cidadãos de bem para combater ‘inimigos públicos’ também pode significar o início de processos de criminalização”, alerta Romeiro.
Além de agradar parte da população, que se vê representada por essa ideia de disciplina, ordem e limpeza, Romeiro acredita que o programa Cidade Linda está impregnado de um discurso que interessa ao mercado imobiliário, que busca a construção de uma cidade global competitiva, capaz de atrair grandes eventos. “Fundamentalmente, a ideia é acabar com a ocupação dos espaços públicos, elementos essenciais para a construção da nossa subjetividade e para delinear a forma como nos apropriamos coletivamente da cidade”, conclui o pesquisador.
(O desenho que abre esta reportagem é de autoria de Banksy, artista de rua britânico)