publicado dia 1 de agosto de 2016
Brechoteca: um espaço de leitura feito com e para a comunidade
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 1 de agosto de 2016
Reportagem: Danilo Mekari
Estendido na entrada de uma viela que liga as ruas Andrea de Firenze e Caratatina, na zona sul de São Paulo, um varal de livros chama a atenção de toda e qualquer criança que passa por ali. Apontam os livros, puxam os pais e, logo que o mistério sobre o que é aquilo se desfaz, estão sentadas no colo de mediadoras de leitura, ouvindo fábulas infantis ou lendo histórias fantásticas.
Organizado pela biblioteca popular Brechoteca, o ambiente criado para recebê-las é simples, colorido e multissensorial – um contraste evidente com as casas pequenas e o córrego poluído que percorre a Favela da Grota, onde vivem. É um momento de aprendizado coletivo, no qual as crianças leem umas para as outras e se divertem livremente, dando asas às suas infinitas criatividades.
Atualmente, o projeto Leitura na Viela é a única iniciativa que a Brechoteca tem realizado na região onde atuou por tantos anos e, com muita paciência e abertura para a participação dos moradores locais, construiu uma relação de confiança com a comunidade. A biblioteca popular teve que deixar sua primeira sede no início de maio e, desde então, está promovendo reforma no próximo local que vai hospedá-la – o CDC Cleusa Bueno (Avenida Jaracatiá, 20).
Bibliotecas comunitárias são espaços de leitura que surgem por iniciativa das comunidades e são gerenciados por elas; ou espaços que, embora não tenham sido iniciativas das próprias comunidades, voltam-se para atendê-las e as incluam nos processos de planejamento, monitoramento e avaliação.
Uma casa azul na rua Andrea de Firenze foi, desde 2009, a sede da Brechoteca. Como aponta o nome, o local funcionava originalmente como um brechó, onde o poeta Binho (o mesmo que promove o Sarau do Binho) acumulava e vendia roupas e móveis antigos – e também, claro, livros. Mas não apenas isso: promovia ações pelos bairros do Jardim Umarizal e Jardim Rebouças, como cinema e teatro de rua e uma bicicleta que espalhava o acervo da Brechoteca pela região.
O espaço em si, porém, passou a acumular tantos objetos que desviar de berços, armários, televisão antiga e gravador de fita cassete estava se tornando um obstáculo para a ocupação do local. Foi quando, no início de 2013, após um breve período fechada, a Brechoteca voltou com uma nova proposta: a de realizar ações de leitura e literatura focadas nas crianças do bairro.
A partir desse momento, um coletivo formado por quatro mulheres – Mara Esteves, Alessandra Leite, Bianca Pereira e Cris Lima – passou a gerir o espaço. “Hoje, posso dizer que foi uma decisão que mudou minha vida”, me disse Bianca durante um almoço. “Quando conheci aquele projeto, fiquei enfeitiçada.”
Contemplada pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da prefeitura de São Paulo nos anos de 2013, 2014 e 2015, a Brechoteca foi se constituindo em um espaço de referência para a comunidade. Aberta de terça a sábado, a Brechô – como é carinhosamente chamada – proporcionava mediações de leitura, oficinas de literatura e xilogravura, saraus, reforço escolar e até mesmo momentos de ócio para os jovens frequentadores. “Tinham leitores que iam pra lá só pra se encontrar, se relacionar, trocar ideias com a gente”, relembra Bianca.
Cantos temáticos, como um espaço de brincar e outro para a prática de xadrez, também atraíam os frequentadores – cerca de trinta crianças por dia. Algumas passavam o dia todo lá, pois preferiam estar na Brechoteca do que na escola. Houve até um momento em que o espaço passou a ser confundido com uma creche.
Pegar uma obra emprestada era de uma facilidade desconhecida nas bibliotecas públicas – bastava dar seu nome, número de RG e endereço. “Criamos uma relação de confiança, desburocratizada, pois é o livro que tem que circular”, aponta Bianca. “O espaço era aconchegante também no lidar e aprendemos a fazer junto com o nosso público, seus interesses em relação a literatura, atividades, escuta, trocas e também seus conflitos”, observa Alessandra.
Em 2016, contudo, o projeto não foi contemplado pelo VAI e, com recursos escassos, se viu obrigado a mudar de sede. “É um absurdo a gente ter que pagar aluguel”, dispara Mara. “Atuamos justamente na ausência de equipamentos públicos do Estado, e metade da verba que captamos vai para o aluguel, ao invés de garantir o trabalho digno dos mediadores de leitura. Qual o sentido disso?”
A Brechoteca foi uma das vencedoras da edição de 2015 do Prêmio Todos por um Brasil de Leitores, do Ministério da Cultura.
Neste ano, a Brechoteca está engajada na busca por mais verbas e políticas públicas direcionadas às bibliotecas comunitárias. No âmbito municipal, entrou na rede LiteraSampa e luta pela efetivação do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca, que, de acordo com Mara, pode possibilitar que a Secretaria de Cultura tenha corresponsabilidade na manutenção destes espaços culturais. A Brechô também integra a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias.
No final de 2015, o lixo que se acumulava nas margens do córrego da Favela da Grota beirava o insuportável. A princípio, a Brechoteca convocou a subprefeitura para recolher os resíduos no local; feito isso, era hora de intervir no espaço. Conseguiram mudas de plantas e árvores, pneus velhos e terra e envolveram a comunidade na recuperação do local. Durante oito meses, vizinhos e crianças ajudaram a criar o Jardim Cultural das Flores, ação que, de acordo com Bianca, deu uma “guinada” na relação comunitária com a Brechô.
“Saímos dos nossos espaços de conforto e fomos para a rua. A partir desse momento os próprios moradores começaram a limpar, retirar o lixo e plantar árvores no local”, lembra Mara. “Se tivéssemos agido só dentro da biblioteca, os laços comunitários seriam mais laceados, e não tão estreitos. Como fomos muito para a rua, virou uma coisa linda.”
Atualmente, o acervo da Brechoteca possui cerca de quatro mil livros. A biblioteca comunitária aceita doações de obras, principalmente de literatura infantil, juvenil, periférica e que esteja de acordo com as bandeiras democráticas defendidas pelo coletivo.
Equipamentos públicos ao redor da antiga sede, como escolas municipais, unidades básicas de saúde, centros para crianças e adolescentes e bibliotecas também estabeleceram parcerias com a Brechoteca. “Fizemos processos de formação com funcionários desses espaços, em mediação de leitura e identidade negra, que são temas prioritários para a comunidade”, afirma Bianca.
Futuramente, um dos destinos que pode acolher a Brechoteca é o Galpão Cultural, espaço vizinho à EMEF Doutor Sócrates Brasileiro que é ocupado regularmente por atividades artísticas promovidas por estudantes do local. “Queremos ficar nesse território e manter os laços já criados, não faz sentido ir para outro lugar”, argumenta Mara.
Para ela, o principal diferencial das bibliotecas populares é a criação de estratégias de incentivo à leitura relevantes para a própria comunidade. “A biblioteca comunitária nasce da ausência do Estado, não apenas de equipamentos públicos, mas também das alternativas de fomento à leitura que são criadas dentro de um contexto periférico. Não lamentamos pela nossa falta de estrutura, mas exaltamos o nosso potencial criativo de buscar novas alternativas de espaço e criar estratégias com aquilo que a gente possui. Primeiro, olhamos para a comunidade e então tiramos o que ela tem de melhor”.