publicado dia 2 de fevereiro de 2016
Mesclando arte, cultura e resistência, Casa Amarela se estabelece como “quilombo urbano” no centro de SP
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 2 de fevereiro de 2016
Reportagem: Danilo Mekari
É difícil passar pela esquina das ruas Consolação e Visconde de Ouro Preto sem se impressionar com o enorme casarão que desponta em meio à sequência de prédios. Erguida em 1920, a construção impacta o espectador não somente por seu tamanho e arquitetura peculiar, mas por sediar uma ocupação pouco usual para uma área tão valorizada como a região central de São Paulo: o Quilombo Afroguarany Casa Amarela.
Em fevereiro de 2014, o espaço – que originalmente pertencia ao INSS (Instituto Nacional de Seguro Social) e estava abandonado havia uma década – foi tomado por artistas de vários segmentos e diferentes locais da capital paulista em busca de um espaço onde pudessem produzir uma cultura “livre das imposições do Estado e do mercado”, como afirma Wanessa Sabbath, produtora e integrante do Laboratório Compartilhado Todo Mundo 13 (TM13), um dos coletivos que atualmente integram a gestão da Casa.
Com três andares, uma torre, 27 cômodos, inúmeras áreas comuns e um colorido espaço ao ar livre, a Casa Amarela está aberta para a participação de outros coletivos artísticos interessados em utilizar o casarão para reuniões, oficinas, festas e ensaios (interessados devem entrar em contato via e-mail: [email protected]). No dia em que a reportagem esteve no local, acontecia simultaneamente uma reunião de mulheres, uma aula de meditação e uma festa de dancehall.
O casarão abriga hoje as mais diversas atividades: bailes e festas, ensaios teatrais e fotográficos, saraus, aulas de dança e ioga, oficinas de desenho e pintura, sessões de cinema, grupos de estudo. Cerca de 25 pessoas moram no espaço, que estimula a divisão de ocupantes e usuários em GTs que se responsabilizam pelos cuidados com a cozinha, limpeza, comunicação, produção, segurança, finanças e relações institucionais, entre outros.
“Fazemos uma autogestão onde cada um ajuda no que sabe. Entendemos o espaço como um local de empoderamento de coletivos e artistas independentes. Nossos equipamentos, por exemplo, são adquiridos coletivamente e podem ser utilizados por todos”, observa Sabbath.
Cultura de rua
A ocupação artística vem deixando suas marcas nos muitos espaços comuns do casarão: nas paredes, em forma de grafites, pixos, frases e poemas; nos cômodos e salas, com a realização de oficinas e atividades lúdicas; na área externa, com uma sucessão de festas. Para quem circula e trabalha no local, a Casa Amarela levou vida a um espaço até então abandonado e ocioso.
O casarão ocupado também leva contribuições para a cidade em seu entorno. Há poucos metros dali, a EMEI Gabriel Prestes já recebeu oficinas de história da África e cultura guarani dada por artistas que residem no local. Nelas, as crianças podem participar de performances com fantasias, tambores e cantos. A Casa também participou da programação da Virada Educação em 2014 e 2015.
Os conflitos com a vizinhança, porém, são inevitáveis. “Existe um choque cultural que, na minha opinião, é muito rico: os moradores de uma região mais elitizada dividem o mesmo quarteirão com o pessoal que carrega a cultura de rua”, argumenta a produtora. Há algum tempo circula nos arredores da Casa um abaixo assinado que pede a retirada dos artistas do local.
“A maioria das pessoas que participam da Casa Amarela são negras. O racismo é uma questão social histórica que também nos atinge.” Para os vizinhos desconfiados e insatisfeitos com a ocupação, Wanessa tem um convite: “Venham nos visitar. A entrada é livre e tenho certeza que vão gostar.”
A ocupação também já foi contestada pela Justiça, que por duas vezes determinou a reintegração de posse do local. Em uma, os artistas e apoiadores protestaram na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) para barrar a ação; em outra, marcaram presença em um evento na Casa – Wanessa fala em mais de duas mil pessoas – para resistir ao despejo e manter a ocupação ativa.
Espaço comum
Desde junho de 2015, o casarão deixou de ser da União e agora pertence à Prefeitura de São Paulo, que tem planos de criar um centro de direitos humanos no local. Existe a possibilidade, ainda, de a Casa Amarela continuar sendo um espaço de produção cultural com ateliês compartilhados, como propõe a Secretaria Municipal de Cultura. A reportagem tentou falar com representantes do poder público, mas não obteve resposta até a publicação.
Com um desenho de Adoniram Barbosa e a frase “Saudosa Maloca…” na camisa, o artista Carlos Ribeiro tocava violão tranquilamente em um dos sofás da Casa, onde estava hospedado há dois dias. Natural de Tatuí, Ribeiro veio divulgar seu próximo espetáculo e aproveitou para conhecer “uma experiência bem diferente do comum”, segundo o próprio. “A Casa é um grande cenário. Ela tem precariedade de infraestrutura, mas isso é superado pela generosidade, simpatia e gentileza das pessoas”, afirma. “Vários tipos de pessoas e interesses convivem aqui. É um espaço democrático.”
Enquanto o futuro da Casa Amarela permanece enigmático, os ocupantes seguem trabalhando. Na última semana aconteceram dois momentos que ilustram o desejo de que a ocupação se torne um ambiente cultural permanente para São Paulo: o primeiro foi uma oficina de apoio para a inscrição de projetos no VAI (Programa de Valorização de Iniciativas Culturais); o segundo foi uma Assembleia para Menores de Idade, que teve a intenção de garantir uma agenda cultural para crianças e adolescentes que frequentam o espaço.
Tombado pelo Conselho Municipal de Conservação do Patrimônio Histórico, o casarão sofre com problemas de infraestrutura. A ocupação se sustenta com doações de produtos de limpeza, utensílios domésticos, equipamentos de jardim e dinheiro de frequentadores, artistas e vizinhos. “Quanto mais pessoas e coletivos chegarem pra somar, mais estaremos unidos e caminhando para transformar a Casa em um espaço público”, aponta Sabbath.
Por dar espaço e voz ativa aos mais diversos artistas dos guetos e periferias de São Paulo, a produtora considera o espaço um “quilombo urbano”. “Lutamos pela ressignificação da história e deste espaço. A ideia é que ele se torne um espaço comum de pessoas comuns em um movimento contrário à higienização e à gentrificação do centro de São Paulo”, finaliza.