publicado dia 18 de dezembro de 2015
Infância e diáspora: como se sente – e como a escola pode receber – uma criança imigrante?
Reportagem: Clipping
publicado dia 18 de dezembro de 2015
Reportagem: Clipping
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
“Trazemos oceanos circulando entre nós”, escreveu Mia Couto no livro Terra Sonâmbula. Trata-se de uma história que fala sobre a terra amada, vagar sobre ela, deixá-la para não morrer de saudade – mas, ao mesmo tempo, retê-la na lembrança. A terra onde se nasce é a infância. Para os que migram, essa infância deve subitamente criar pés e se descolar. Quando se é criança, atravessar os mares é mais fácil, porque há esperança, ou o quintal é um lugar querido para se abandonar?
O Brasil é uma terra movediça por definição, forjada por migrações – sejam livres ou compulsórias. No século 16, portugueses colonizaram as terras que pertenciam aos indígenas, trazendo na invasão pessoas escravizadas de origem africana, obrigadas a trabalhar. Em 1850, começou o incentivo da imigração europeia – em grande parte, segundo a historiadora Pilar Lacerda, para embranquecer o país – com um grande número de italianos, portugueses, espanhóis, alemães e japoneses cruzando o oceano. Em 1990, as ondas de imigrações foram oriundas de países sul-americanos, em especial Bolívia e Peru.
Nos últimos anos, as ondas imigratórias obedeceram aos ritmos das situações políticas estrangeiras. Segundo pesquisa da Repórter Brasil, lançada em 2012, estima-se 1,4 milhão de imigrantes no país. Grande parte provém dos países vizinhos, mas estrangeiros de países asiáticos e africanos também se somam ao contingente. O terremoto no Haiti, ocorrido em 2010, a atuação humanitária do Brasil e a permissão de entrada para os haitianos aumentou a migração. Com a crise humanitária na Síria, hoje, sua comunidade tem o maior número de refugiados, correspondendo a 23% do total.
Com os pais que migram, migram também suas crianças. O desterro, para elas, significa começar a vida escolar e se integrar a uma cultura muitas vezes paradoxal à sua.
Para este 18 de dezembro, Dia Internacional do Migrante, o Promenino convidou Ana Cristina Berntz, psicóloga atendente da Caritas Arquidiocesana de São Paulo – entidade de promoção dos direitos humanos, que auxilia imigrantes e refugiados – para explicar como a criança se adapta, e como a escola deve se preparar para recebê-la.
Ana, que experimentou na pele sensações de deslocamento ao morar em países europeus, atende crianças imigrantes e refugiadas em situação de dificuldade emocional.
Diferenças entre migrante e refugiado
Em caráter de jurisprudência, existem diferenças entre quem é migrante e quem é refugiado: “Os migrantes deixam o seu país por livre e espontânea vontade, geralmente por causas econômicas, procurando melhores condições para sobreviver. O refugiado, entretanto, está fugindo de uma condição. Ele pode estar sendo perseguido por pertencer a uma raça ou etnia. A opinião política também é um fator de fuga, comumente encontrado em migrantes congoleses: por não concordarem com o governo vigente, eles são ameaçados e devem deixar o país às pressas. Há também os que fogem por questões de gênero, como refugiados homossexuais que habitam países religiosamente proibitivos. E por fim, há o temor: uma situação de guerra, ou uma certeza de que se não houver a migração, a vida está em risco”.
Ana afirma, entretanto, que em termos não legais, no que concerne às consequências psicológicas e físicas, os migrantes e refugiados acabam por se misturar. Burocraticamente falando, ela explica, é mais simples obter uma maneira de permanecer no Brasil sendo refugiado. “Migrantes de causa econômica e por refúgio se misturam. Quando chegam ao Brasil, os migrantes percebem que a lei do refúgio é mais flexível e permite sua permanecia no país, então pedem pelo refúgio”.
Burocracia e integração
Um dos grandes obstáculos, se não o maior, que se interpõe à fixação de migrantes e refugiados no Brasil (portanto a sua adaptação para começar uma vida nova) são os demorados processos burocráticos aos quais são expostos. No caso de refugiados, que em muitos deixam seu país em caráter emergencial, apenas com a roupa do corpo como pertence, a obtenção de uma RNE (Registro Nacional de Estrangeiro) se torna grande preocupação.
“O processo de documentação é longo e, enquanto acontece, legalmente pode trabalhar ou estudar, ter uma vida normal. Mas isso não acontece na prática, porque se depara com burocracias. Não pode abrir uma conta no banco, não tem RNE, não pode estudar. As pessoas são mal informadas e as escolas também”.
À documentação, soma-se a barreira da língua, ainda mais delicada para países sem similaridades com o português, como o árabe ou chinês. “Os migrantes e refugiados tem a imagem equivocada de que no Brasil todo mundo fala inglês. Eles ficam muito decepcionados… Conheço um grupo que ficou dias no Aeroporto de Congonhas [em São Paulo] porque ninguém conseguia informá-los como chegar ao Brás [bairro da região central”.
A criança que migra
Para a criança, ser migrante ou refugiado é uma definição que não cabe, pois foi obrigada a deixar suas raízes e sente profundamente as marcas dessa travessia: “A criança tem uma capacidade rápida de adaptação, aprende a língua muito mais rápido. E isso vem com grandes perdas. Ela abandona os vínculos com a escola, com os amigos, com a terra, e precisa reagir rápido. Percebemos que elas demonstram o sofrimento por meio da insegurança”.
Como tem capacidade de aprender uma nova língua com mais facilidade que seus pais, elas são chamadas à vida adulta antes do devido. “Muitas vezes, elas começam a traduzir para os pais o idioma e a resolver problemas adultos. As crianças amadurecem depressa e isso deixa um buraco, uma ausência de infância que com certeza será sentida depois. Por isso é necessário o trabalho de resgate do lúdico e da brincadeira”.
O sonho também é importante no processo de adaptação. “Crianças que migram perdem suas referências. Quando pedimos para desenharem algo, elas pintam a casa onde moravam, os lugares onde brincavam. Temos de trabalhar a passagem e a perda. Incentivamos que elas sonhem novamente, imaginem sua nova casa, como vai ser a cidade e onde vão estudar”.
Como a escola deve receber a criança migrante ou refugiada
Pela lei, a toda criança, estrangeira ou não, é assegurado o direito a estudar nas escolas públicas de suas cidades. Entretanto, Ana nota certa resistências dos espaços pedagógicos, em especial no que concerne a falta de documentação como impeditivo para matricular as crianças. “Às vezes, as escolas não recebem informação e negam o aluno, alegando que não podem recebê-los se eles não tiverem RNE, ou não podem porque não dispõem de um professor para acompanhar a criança e ensiná-la o português. Mas matriculá-la é obrigatório”.
Quando a escola recebe o aluno estrangeiro, ela tem de acompanhá-lo durante o processo de adaptação. “A escola deve fazer uma preparação, ambientando a criança para que ela, primeiro, aprenda a língua e consiga acompanhar o currículo normal. É necessário paciência para conscientizar os professores em seu papel de conciliador”.
As outras crianças também devem ser conscientizadas. A convivência com os alunos é fundamental para que a criança se sinta acolhida e determinada a continuar seus estudos – o bullying, nesse caso, pode se configurar como fator para a evasão escolar. “Acompanhei o caso de uma menina africana que relatou ser chamada de feia, porque seus cabelos eram trançados, quando em seu país ela era considerada linda. É preciso conscientizar a sociedade de que as crianças estrangeiras são uma riqueza, e que podem ensinar sua classe sobre culinária, línguas e brincadeiras novas, com muito potencial para aprender”.