publicado dia 9 de dezembro de 2015
Colaborativo, gratuito e questionador, “Quem manda aqui?” fala de poder e política com crianças
Reportagem: Clipping
publicado dia 9 de dezembro de 2015
Reportagem: Clipping
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Era uma vez, em um reino tão próximo que bastava virar a esquina, muitas crianças curiosas. Embora elas se perguntassem coisas como o motivo de o céu ser azul ou a razão de o espinafre ser tão amargo, também queriam saber o que era um reino – e porque tantas histórias infantis começavam com um deles. Quem disse que o reino é reino, quem decidiu quem é a rainha ou o rei, quais eram os critérios para mandar em todos e fazer com que todos digam sim?
“Quem Manda Aqui?” está disponível para download no site do LabHacker, projeto de Pedro Markun, um dos autores do livro.
Então, quatro adultos, tão curiosos quanto à infância, perceberam: embora crescidos, também tinham muitas dúvidas sobre as políticas do cotidiano e a ordem do mundo. Junto com as crianças, pensaram em empreender uma aventura relacionada ao assunto. Mesmo que ela não trouxesse respostas imediatas, construiriam algo divertido.
ssas quatro pessoas com almas brincantes são a jornalista Paula Deslguado, o hacker Pedro Markun e os ilustradores André Rodrigues e Larissa Ribeiro. O fruto da aventura é o livro “Quem Manda Aqui?” criado por muitas mãos e também por meio do financiamento coletivo.
Voltada ao público infantil, a obra é um pulo na piscina de ordens e poderes dados às crianças (e pouco questionados) dentro das histórias, desde as reinações de Narizinho até as florestas encantadas dos irmãos Grimm.
“Concebemos o livro com uma estrutura horizontal, que questionava a hierarquia e de onde ela vinha”, explica a ilustradora Larissa Ribeiro. “Tudo foi pensando para ser feito em conjunto. Os autores são autores, escritores e também ilustradores. O próprio conceito de ser financiando coletivamente e de estar disponível para download gratuito carrega essa questão”.
E se o livro era feito para as crianças lerem, elas, claro, teriam de participar de sua confecção. Surgiu, então, a parte mais divertida: reunir a meninada e construir. Seis oficinas aconteceram, quatro na capital de São Paulo e duas em Ouro Preto (MG). Os lugares também foram diversos, para obter o maior número de estímulos das crianças: a caravana passou pelo Centro Cultural São Paulo, em CEUs (Centros de Artes e Esportes Unificados) da Zona Leste e nas Fábricas de Cultura no Capão Redondo.
Cores e formas da democracia
O balaio de dúvidas e questionamentos das crianças fez o projeto do livro se consolidar – bem como rendeu ideias para futuras iniciativas. Dentro das oficinas, os articuladores de “Quem Manda Aqui?” propuseram questionamentos sobre as mais diversas áreas de poder, desde castelos até colmeias. Instituíam votações nas dinâmicas e descobriram um resultado encantador: ainda que as oficinas fossem curtas, os pequenos são capazes de se articular, de eleger líderes e até formar partidos – mesmo que sejam partidos do triângulo, da bolinha e do quadrado.
A partir dos questionamentos recebidos das crianças, como também das inspirações de seus desenhos, foi montado o projeto gráfico do livro. Desde o princípio, a ideia era que a ilustrações fossem minimalistas e geométricas. “É uma aproximação com o universo dessas crianças, que são bem pequenas e desenham com formas simples”, afirma André Rodrigues. “Como o livro tem licença livre, também estávamos preocupados com que as pessoas conseguissem entender o esquema de ilustração e pudessem produzir suas próprias. É para o público ter liberdade de trabalhar com esse material depois.”
A cuidadosa escolha de palhetas e formas respeitou a preocupação com a representatividade e com a equalização de gênero. “As personagens são metade masculina e metades feminina, e fizemos figuras abstratas com peles de todas as cores, como rosa, verde, azul e roxo. Na parte verbal, usamos como opção de linguagem todos os coletivos em feminino. E por fim, nos preocupamos com as formas: existem figuras que tem o cabelo liso, outras com cabelo crespo, para reforçar a diversidade”, conta Larissa.
A palheta de cores maleável permitiu também que fossem feitas escolhas políticas na hora de desenhar. Quando o rei foi ilustrado, era importante que sua imagem fosse distante de um monarca pomposo e mandão. Justamente para questionar os motivos de tanto poder para uma só pessoa, ele é feito em tons pastel, um rosa bem claro, e vai perdendo a majestade aos pouquinhos, no fim restando um homem comum com uma tatuagem no braço. Já o índio e a mulher escravizada brilham fortes, orgulhosos com seus arcos e flechas e suas movimentações de capoeira.
Para adultos e para crianças
Folheando as páginas, entre professoras e militares, entre saber que se escolhe, mas que também se obedece, meninos e meninas são tocados pelo universo da politica. “Existe preconceito quando você fala de política; as pessoas já fecharam o termo, pensando numa coisa tradicional de Brasília. Mas nós pensamos em política como algo cotidiano. E não é difícil transformá-la em algo lúdico, porque quando falamos de política no livro, estamos contando uma história que poderia ser um conto de fadas, com reis, índios e personagens que poderiam ser até fantásticos. É uma desmistificação”, ressalta Larissa.
André vê magia no livro justamente por ele não ser só para crianças: “Os próprios adultos podem se questionar junto com elas. Em vários momentos pensei: ‘Nossa, nunca tinha me questionado de verdade sobre o que é monarquia!’. Até a questão do professor, nesse fervor que é a pauta de educação hoje, pode ser investigada junto, de forma lúdica e tranquila”. Uma maneira de se exercitar algo por vezes esquecido: a importância de se sentar no chão e compartilhar a leitura, o debate.
O poder das escolhas
Se existe um reino em que a criança é rainha, é o reino de fazer tudo ao mesmo tempo. No lançamento da versão impressa do livro, pela Companhia das Letras, que aconteceu na Livraria da Vila (SP), no domingo (6), os mandantes eram quem engatinhava ou tinha menos de meio metro de altura. Enquanto acontecia uma oficina de leitura, algumas crianças tocavam instrumentos musicais, outras dançavam no palco, e algumas tentavam se lembrar de suas professoras e se eram parecidas com as desenhadas na história.
O livro é uma amostra de que é preciso ouvir diferentes vozes, elemento fundamental para a execução de qualquer política. “Quem Manda Aqui” reúne em suas páginas a lembrança de que sempre há o poder de escolha.
Leituras assim estimulam algo ainda mais importante: cada vez que uma criança se debruçar sobre outra história, vai torcer para que a princesa seja uma lutadora de capoeira e para que o rei devolva as riquezas pertencentes aos índios. Um caminho para entender que crescer nunca é sinônimo de saber tudo.