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publicado dia 9 de outubro de 2015

Família percorre interior do país e registra infância brasileira em série de livros

Reportagem:

Família foi ao interior do país para descobrir a infância brasileira.
Família foi ao interior do país para descobrir a infância brasileira.

Por Ana Luísa Vieira e Carolina Pezzoni, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

“Acho que o escritor volta sempre ao território da infância, que é o território do desejo de contar história. O desejo de ver o mundo convertido numa história é absolutamente vital, quer dizer, tão vital quanto comer ou dormir.”
(Mia Couto, escritor moçambicano)

Miguel tem 2 anos. Olhos espertos e ouvidos atentos, ele corre em volta das crianças maiores, sentadas em roda para contar histórias da comunidade ribeirinha onde moram. Cuiabá Mirim pertence ao município de Barão de Melgaço, no Mato Grosso. A viagem até a capital do estado dura 1h30 – são 128 km de distância. No povoado, vivem 300 famílias envolvidas pela natureza da região pantaneira.

Como qualquer menino de sua idade, Miguel não tem repertório para participar da brincadeira. Recorrer à imaginação, até conseguir a atenção da professora e dos colegas, é o truque infalível:

– Tia, tia! Eu quero contar! Tia, tia! Sabia que eu sempre levo bicho pra minha casa?
– É verdade? Qual bicho você leva?
– Levo jacarés! E não tenho medo!
– O que você faz com eles?
– Eu brinco um pouco. Depois mando embora. Depois de depois do almoço, eu chamo eles de volta para brincar.
– Mentiiiiiiiira!, grita uma menina mais velha.

Todos começam a rir.

A criatividade precoce de Miguel é uma das lembranças de viagem da família Asse. Roberta, a “tia” mencionada, viajou com o marido Walter e as filhas Clara e Helena, em busca de inspiração para escrever sobre as diferentes formas de infância. Visitaram, os quatro, cidades pouco turísticas, distantes das capitais brasileiras, onde puderam conviver e aprender com as crianças locais.

A contadora desses causos – ou “criadeira”, como se define – é também arquiteta, designer e pesquisadora da antropologia da infância. Roberta ilustrou e narrou histórias de ficção, cunhadas a partir dessas experiências, para a recém-lançada “Coleção Crianças Daqui” (Cirandeira Livros, R$ 30 cada exemplar). Das Ilhas Fluviais de Abaetetuba, no Pará, ao Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul, os oito livros passeiam pelas descobertas de Marina, Vito, Tininha, Adélia, Rosa, Isabel e Pedro Pio, entre outras personagens permeadas de cultura, tradição e sabedoria regional.

Durante a expedição, o pai, Walter, ficou responsável pelos registros fotográficos e em vídeo, que devem ser lançados em breve. À Clara (11 anos) e Helena (7) cabe o papel principal: brincar com as crianças que encontram nessas localidades.

“São as nossas filhas que nos abrem as portas para essa convivência, a partir do momento em que se reúnem com outras crianças. A linguagem do brincar é universal. Pode notar: as crianças se entendem em segundos”, diz Walter. “O que une as pessoas é a necessidade e o que as mantém unidas é a afinidade. A base que permeia tudo isso é o amor. E essa é a base das crianças: o amor e as brincadeiras, sem pré-conceitos.”

Mapa mostra percurso dos livros pelo país.
Mapa mostra percurso dos livros pelo país.

Raízes brasileiras

O casal se conheceu em 1996. Roberta, filha de um marceneiro e de uma professora do interior de São Paulo, cursou arquitetura e especializou-se em design gráfico. Criada na capital, nunca abandonou, porém, as raízes do campo. Walter, formado em Direito, gerencia uma tradicional gráfica paulistana. Antes de conhecê-la, estava acostumado a passar as férias em pontos turísticos comuns. Roberta o inspirou a mudar de rota, para, juntos, desbravarem o Brasil.

A vontade de transformar as viagens em registros escritos ganhou força com a chegada das filhas, que herdaram sua paixão pela natureza: “Adoro viajar para os lugares mais distantes porque as crianças de lá são mais livres, conhecem muito sobre seu lugar, sobre os animais, a natureza. Elas têm muita cultura!” diz Clara. “O melhor é quando não tem sinal na cidade: assim o papai não fica o tempo inteeeeeiro no celular”, completa Helena.

Chegar de maneira respeitosa aos municípios escolhidos para a pesquisa sempre foi uma preocupação de Roberta. “Não há diferença. A gente apenas vive em uma comunidade um pouco maior e mais complexa. Isso ajudou muito na minha conduta, ao me reconhecer e me colocar como um igual e inserir essas crianças numa única comunidade, que é a de ser brasileiro”, conta.

Caixa de segredos

Os Asses trouxeram em uma caixa suas principais lembranças de viagem.
Os Asses trouxeram em uma caixa suas principais lembranças de viagem.

Em celebração a este 12 de outubro, Dia das Crianças e Dia Nacional da Leitura, o Promenino pediu à família Asse que trouxesse algumas lembranças das comunidades por onde passaram para o bate-papo no quintal da Livraria da Vila, em São Paulo.

“Tá vendo aqui dentro? É uma lanterna colorida, com uma vela”, mostra Helena, eufórica, abrindo a caixa de papelão, repleta de pequenas preciosidades. “Ah, sim! É de uma procissão, que tem origem no norte da Alemanha”, começa a explicar o pai, logo interrompido pela menina: “Não, pai. Essa lanterna é da procissão do Matutu, que acontece de noite!”.

Clara Asse (11) mostra a lanterna do Matutu (MG).
Clara Asse (11) mostra a lanterna do Matutu (MG).

“Eu vou com minha lanterna | E ela comigo vai | No céu, brilham estrelas | Na terra, brilhamos nós | A luz se apagou | Pra casa, eu vou | Balança, balança, lampião”, canta a família em coro.

Walter Asse escolheu uma lanterna para representar cada filha.
Walter Asse escolheu uma lanterna para representar cada filha.

O Vale do Matutu, situado no município de Aiuruoca (Sul de Minas Gerais), é um lugar especial para os Asse, que visitam a cidade há nove anos. Por lá, frequentaram a Escola Arcanjo Miguel, onde se realizava a procissão descrita por Helena. A unidade deixou de funcionar faz dois anos, devido à construção de uma outra escola pela prefeitura. “O fechamento das escolas do campo, infelizmente, é uma realidade. Li a matéria no Promenino sobre o número cada vez menor dessas escolas, justificado com a oferta de transporte para a cidade. É uma questão polêmica, a de tirar crianças tão pequenas de seu ambiente”, reflete Roberta.

Autora mostra o capim dourado do Jalapão (TO).
Autora mostra o capim dourado do Jalapão (TO).

“Foi no Matutu que comecei a notar a semelhança das infâncias, principalmente no que se refere à autonomia. Crianças das comunidades têm isso: vão e voltam com liberdade, porque todos se conhecem e há uma relação intensa com o ambiente”, diz a autora.

Helena Asse (7) mostra areia das dunas do Jalapão.
Helena Asse (7) mostra areia das dunas do Jalapão.

“Uma coisa muito legal das comunidades é porque os moradores, todos, conhecem bem o lugar. Entre as crianças, não tem essa coisa de separar a turma por idade. Dá pra brincar todo mundo, de todas as brincadeiras, dos dois aos 15 anos”, observa Clara.

Na festa de São João, os adultos de Matutu se preocupam em estimular o imaginário das crianças. “Eles preparavam uma fogueira gigante, com um cabo de aço escondido para acendê-la. Por meio de um sinal, os moradores jogavam uma bola que virava fogo e descia pelo cabo, invisível à noite. Queriam ver as crianças acreditando que uma estrela do céu acendia a fogueira. Era lindo”, emociona-se Roberta.

Central do Brasil
Helena segura um pequeno vidro transparente na mão direita. “Para mim, isso aqui é o mais lindo da viagem”, diz, sorrindo. “É a areia das dunas do Jalapão… a mais fofinha e mais quente que eu já vi”, completa Clara. “São sete horas de viagem para chegar a um mundo cor de laranja”, descreve Helena.

O Parque Estadual do Jalapão fica em Tocantins. É a única região que produz capim dourado, fibra usada para produtos de artesania. “É tudo cultivado no meio da vereda, aos pés das montanhas, por onde chega água quente do fundo da terra”, explica Walter. “Lá havia uma senhora, a dona Miúda. Ela costumava dizer: ‘Esse é o nosso ouro, e é assim que a gente vai mudar a cara da nossa comunidade’.”

“Ganhei esses ramos das mulheres do povoado, como agradecimento pela nossa passagem. Sei que isso é raro, esses raminhos não são vendidos. Foi um ato de carinho”, relembra Roberta, vaso nas mãos.

A família também passou pela comunidade quilombola de Mumbuca, a poucos quilômetros do Jalapão. “Com a chegada de uma determinada igreja, que não permite a difusão da cultura africana oral, muito está se perdendo. É preciso olhar com cuidado para os patrimônios do Brasil”, indigna-se Walter.

Dos livros às telas

A coleção de livros começa a ganhar novos formatos. Logo estará disponível na versão digital. O plano é voltar aos municípios pesquisados e também criar um aplicativo capaz de conectar as crianças dessas localidades. O músico Beto Villares já transformou três contos em canções – o lançamento do CD está previsto para breve.

Por meio de uma parceria da ComKids com o canal holandês Wadada News for Kids, o livro “A Travessia de Marina” ganhou um concurso e se transformará num documentário de 15 minutos, que será dirigido por Marcelo Machado. A obra foi inspirada nas crianças do povoado de Saco do Mamanguá, em Paraty (Rio de Janeiro). “Lá, as crianças não têm o Ensino Fundamental 2 perto da comunidade. Precisam se mudar para Paraty ou ir e voltar todos os dias de barco, acordando às 4h30 da manhã. Isso reflete a questão do crescimento acelerado, longe da família”, opina Roberta.

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Análise: “O cotidiano é uma aventura”

 “Lorena, será que tu enxerga do mesmo jeito que eu? E o som, será que tu ouve a mesma coisa que eu ouço?”, pergunta Vito a sua irmã Lorena, em um momento de descanso, depois de brincarem colhendo as uvas do parreiral. Tataranetos de imigrantes italianos, esses são os personagens principais do livro “Pé de Uva, Mão de Menino”, parte da Coleção das Crianças Daqui.

A reflexão do menino empresta sentido a toda a coleção, resultado de uma jornada familiar em busca da valorização das realidades diversas de comunidades afastadas das grandes capitais brasileiras. Nos oito livros que a compõem, sua autora, Roberta Asse, recria, escrevendo e ilustrando, o cotidiano infantil, assegurando em cada narrativa o caráter de aventura, tão caro às crianças.

Embora sejam ficcionais, apenas inspiradas nas experiências vividas pela autora e sua família nessas viagens, todas as histórias trazem a forma de falar própria das crianças dali. “Eu já te falei que quero ir junto e não ficar suzinho aqui”, diz Vito. “Vai vim maresia”, observa Cauê. “Vó, eu queria que o tio chegasse e nunca mais isse”, fala Tião.

“Esse personagem só é verdadeiro se fala como uma criança do lugar. Ouvi exaustivamente e reproduzi nos diálogos a maneira de se falar. Não está dentro dos parâmetros do certo ou errado. Está dentro do falar diferente. É uma riqueza”, defende a autora, ante as críticas à sua decisão. E cada exemplar traz o aviso: “Expressões da oralidade e regionalismos foram respeitados e escritos da forma como são falados”.

Leia texto no blog do projeto sobre a decisão.

Em um passeio pelas radiantes ilustrações de Roberta, o leitor fica conhecendo também Marina, Tininha, Francisco, Mauk, Ana Rara, Ravi e Adélia, Daniel e Rosa, Isabel, Berê e Toninho, que – com entusiasmo – nos apresentam seus brinquedos, famílias, amigos e festejos. Às vezes, eles também se metem em situação de perigo, mas você vai descobrir que, no fim, são como as crianças daqui.

 

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