publicado dia 25 de setembro de 2015
Há 35 anos, escola pública de artes ensina com liberdade e autonomia
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 25 de setembro de 2015
Reportagem: Pedro Nogueira
Respirar palavras, conceitos e signos que estão no ar como se nada fosse mais natural. Manter a primavera no olhar e absorver o mundo por intuição. Rearranjar a semântica da vida em uma sintaxe própria que, de tão próxima do real, produz o distanciamento necessário para a reflexão. Gerar encantamento e transformação com este processo. Não deixar isso morrer com o tempo e sempre lembrar de propor o não-convencional como antídoto para a rotina. Trazer ao presente a infância da vida.
Todos esses elementos compõem o fazer do artista, do aprender da criança e do educar do professor. E, embora as instituições tradicionais de ensino tenham desmembrado essa tríade, a Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA), localizada no distrito do Jabaquara, em São Paulo, decidiu mantê-la intacta.
Ao sair da estação Conceição, na linha azul do metrô de São Paulo, tomando a rua Volkswagen, uma árvore enorme rodeada de bancos de cimentos projeta uma escada que leva ao Parque Lina e Paulo Raia. Cercado por prédios espelhados, o local se deixa mostrar por entre as copas das mais de 125 espécies da flora brasileira que ali residem. De tempos em tempos, o silêncio se rompe pelos aviões que partem ou chegam ao aeroporto de Congonhas, instalado não muito distante dali. Os 15 mil metros quadrados de área verde dividem espaço com a EMIA.
Ocupando três casarões antigos, sendo o primeiro uma galeria de exposição dos trabalhos realizados por estudantes de hoje e de outrora, a escola te leva a um segundo prédio, de onde escorrem sons de clarinetes, flautas, pianos e violinos. Ali funciona uma sala de música e um ateliê de artes plásticas. Logo abaixo está o casarão principal, uma espécie de abrigo para a dezena de mães e avós que aguardam os filhos concluírem seus cursos.
Dentro do edifício, crianças correm, brincam e tocam instrumentos. Um cheiro forte de guache se mistura às conversas dos jovens e seus tutores. A cada porta aberta, uma cena inusitada: uma criança toca sozinha um piano, meninos e meninas protagonizam uma encenação teatral com seus professores artistas e uma arara de roupas é insistentemente rearranjada por mãos e braços curiosos. O caos confere uma ordem gentil e horizontal para o ambiente.
“A nossa escola não funciona sem liberdade e autonomia”, explica Andréa Fraga, diretora da EMIA. Após 16 anos atuando como professora de dança, Andrea foi a primeira a ser eleita para o cargo, que está sujeito à aprovação da Secretaria Municipal de Cultura, a qual a escola está vinculada. “Nós funcionamos em uma espécie de autogestão. Cada área tem sua coordenadora e assim organizamos nosso trabalho.” O formato parece refletir as práticas pedagógicas da escola, que opera no contraturno escolar e acaba de completar 35 anos.
“Sentar no chão e fazer junto”
“Sentar no chão e fazer junto.” É assim que Andréa resume o processo de aprendizagem na EMIA. Enquanto narra a história da instituição, a coordenadora de artes visuais, Liseti Bonamin, e a assistente pedagógica, Sandra Cunha, recebem Joana Salles, uma ex-aluna que veio para mostrar seus bordados e falar sobre o trabalho que desenvolve como artista têxtil. Joana lembra com carinho da formação e da importância de ter um espaço horizontal, onde sentia-se respeitada e trabalhava em igualdade com os professores artistas.
“É incrível ver que desde o começo a EMIA já era o que é, já tinha na alma essa mesma coisa que a gente carrega depois de tantas transformações”, observa Andréa. “Tantas vezes nós ficamos às voltas com conceitos, métodos, teorias, quando na verdade é simples. É só sentar no chão e fazer junto”, retoma.
Corresponder a esse objetivo tão simples nem sempre é fácil. As diferentes gestões que passaram pela prefeitura, muitas vezes demandaram um ensino mais profissionalizante. “Alguns gestores têm uma visão mais técnica, de formar bailarinas, musicistas. Mas acho que o corpo docente, a estrutura e o regimento que construímos aqui ao longo do tempo ajudam a escola a manter suas características, mesmo que esteja em constante transformação”, avalia a diretora.
Misturados
Hoje a escola atende cerca de mil crianças por ano, dos cinco aos 12 anos. Para ingressar, é preciso se inscrever e participar de um sorteio, pois as vagas são limitadas. Qualquer criança que resida no município e tenha até sete anos pode tentar a entrada na escola, que funciona de segunda a sexta, no período da manhã e da tarde. Enquanto o percurso inicial é de uma vez por semana, as vagas em cursos opcionais podem fazer com que o estudante frequente a EMIA até cinco vezes por semana. Por estar próxima ao metrô, recebe garotos e garotas de variadas regiões de São Paulo.
“Minha filha veio aqui até os 17 anos”, relata Marilda Tanada, cuja filha continuou frequentando a escola mesmo depois de “formada”. “Ela gostou tanto que continuou vindo e ajudando como podia, participando”, acrescenta Marilda, que hoje traz a neta de cinco anos para a escola. “Aqui a convivência ensina muito. Eles perdem a timidez, ficam mais confiantes e sabem se expressar melhor.”
Tutoria
O percurso formativo oferece às crianças de cinco a 12 anos a experimentação com diferentes linguagens artísticas. A carga horária aumenta de acordo com a idade. Dos nove aos dez, as crianças aprendem no formato de “quarteto”, isto é, quatro professores de áreas diferentes se tornam tutores para a criação de projetos. É nesse momento que os estudantes têm a oportunidade de escolher uma das linguagens – artes visuais, dança, teatro e música – para se aprofundar.
Mas, em lugar de “especializar”, “dividir” ou “segmentar”, a escola se ancora na integração das linguagens artísticas, garantida através do diálogo permanente entre os professores de diferentes especialidades e deles com os estudantes. E daí emerge um detalhe importante: a EMIA possui “artistas professores”, que desenvolvem trabalhos autorais tanto dentro quanto fora da escola, e têm como missão trazer esses acúmulos artísticos para o processo pedagógico.
Não faltaram, ao longo dos anos, obras espalhadas pelo parque, que é ateliê e galeria a céu aberto, além de quintal para os intervalos e recreios da criançada. “Não é sobre cidade educadora que vocês escrevem? Então, aqui é uma escola aberta, sem muros, dentro de um parque”, aponta Sandra Cunha durante a visita da equipe do Portal Aprendiz.
Da casa para fora
Com uma agenda na mão, Liseti lista os projetos que a EMIA realizará em 2015. Entre eles, um prevê a ocupação da entrada do metrô Conceição com atividades durante uma tarde. Segundo a equipe pedagógica da escola, esse tipo de ação no território é frequente. Além do teatro João Caetano e do Centro Cultural São Paulo, até o Theatro Municipal já foi palco dessas intervenções. No último final de semana, a EMIA teve a sua própria Virada Musical. A proximidade do metrô garante a conexão com museus e espaços culturais da metrópole e o transporte público é sempre aproveitado por professores e estudantes como meio de acesso aos bens culturais da cidade.
Já houve tentativas de transformar a EMIA em uma política pública mais abrangente, durante a gestão Marta Suplicy, com o projeto “EMIA nos CEUs”, mas a proposta foi encerrada com a mudança da gestão. Atualmente, o PIÁ (Programa de Iniciação Artística) realiza um trabalho semelhante, porém com um caminho próprio, trabalhando com iniciação nas artes com quase duas mil crianças em mais de 18 equipamentos públicos.
Refúgio
Em uma sala, Sandra Cunha mostra as “Narrativas Poéticas” que recebe dos professores. Essas “Narrativas” substituíram os tradicionais relatórios de atividades e possibilitam que os alunos mostrem o que estão aprendendo. Em um deles, frases de crianças se alternam. Uma revela que aprendeu a transformar música em desenho. Outra desaprendeu a vergonha.
“A EMIA foi a minha formação”, relatou a diretora Andréa, alguns momentos depois. “Claro que no currículo vai o mestrado, a formação universitária, mas foi aqui que eu aprendi”. Há mais de 18 anos, ela, assim como muitos outros professores-artistas, não quer deixar de frequentar o espaço. “É muito bom trabalhar aqui”, confessa.
Ali, refugiada entre as árvores, a EMIA se abre para novos tempos, espaços e linguagens. Mais do que celebrar sua existência, São Paulo deveria deixar-se contaminar pela criatividade e inovação de sua proposta educativa.
(As três últimas fotos que ilustram essa matéria foram retiradas da publicação EMIA em revista, nº1/2014, Edição CORPOCASA, realizada em parceria entre a escola e a Secretaria Municipal de Cultura.)
Errata: Diferentemente do que foi divulgado, o projeto “EMIA nos CEUs” ocorreu durante a gestão Marta Suplicy. Seu encerramento se deu com o início do mandato do ex-prefeito José Serra.