publicado dia 13 de agosto de 2015
Ruas de Memória é lançado em São Paulo como proposta de ressignificação do espaço público
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 13 de agosto de 2015
Reportagem: Danilo Mekari
“Um povo que não preserva a memória e não busca a verdade também não garante um presente de democracia e respeito aos direitos humanos.” A afirmação do ministro da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), Pepe Vargas, foi seguida de uma salva de palmas do público presente no auditório do Edifício Matarazzo, sede da Prefeitura de São Paulo, onde ocorreu o lançamento do programa Ruas de Memória na manhã desta quinta-feira (13/8).
O programa, que teve seu Projeto de Lei (PL) assinado pelo prefeito Fernando Haddad e enviado à Câmara Municipal, promoverá a substituição dos nomes de logradouros públicos que homenageiam violadores de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985) por personalidades e ativistas ligados à defesa dos direitos fundamentais à vida humana.
Se o projeto for encampado pelos vereadores paulistanos, vias como a Rua Dr. Sergio Fleury, a Avenida Presidente Castello Branco, a Praça Milton Tavares e o Viaduto 31 de Março terão seus nomes trocados e escolhidos pela comunidade local. O viaduto, por exemplo, homenageará Thereza Zerbini, referência feminista da luta pela anistia e redemocratização.
Para Carla Borges, coordenadora da pasta de Direito à Memória e à Verdade, ligada à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, o projeto é uma reparação simbólica às vítimas da repressão militar, mas também pode ser enxergado como um presente para toda a cidade. “Espaços públicos também sofreram com a repressão, e até hoje essa memória está nas ruas da cidade. Além dos graves crimes, desaparições, torturas e mortes, a cultura do medo desmantelou as ruas como espaço do encontro e exercício de cidadania”, pontua. “O Ruas de Memória é um jeito de dizer que não toleramos mais a presença desse autoritarismo.”
Ela cita exemplos internacionais de reparo simbólico feitos em espaços públicos, como na Alemanha, que removeu símbolos do nazismo; na Espanha, que está discutindo a retirada dos logradouros que remetem à ditadura franquista; e no Chile, onde o projeto Nenhuma Rua Levará Seu Nome quer proibir homenagens públicas ao governo autoritário de Augusto Pinochet. “Não estamos inventando a roda. Apenas fazendo o nosso dever de casa.”
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Já Vargas acredita que o programa, classificado por ele como “fantástico”, servirá como referência para muitas outras cidades brasileiras. “Vivemos em um tempo que ainda é preciso afirmar e reafirmar questões que podem parecer obviedades, mas precisam ser repetidas a exaustão.” Por envolver as comunidades nas trocas dos nomes de logradouros, o ministro vê na ação uma dupla reparação: não apenas às vítimas do Estado ditatorial, mas também ao processo democrático em si.
“Precisamos valorizar os espaços públicos como locais de vivência democrática, onde as pessoas podem se encontrar e exercer a vida pública e, em suma, o direito à cidade.”
O ministro revelou que cerca de 10% das verbas da SDH (ou cerca de R$ 1,8 milhão) serão aplicadas no trabalho de peritos que buscam os restos mortais de diversos presos políticos que foram jogados em valas comuns na ditadura.
Para permitir que os locais escolhidos para a mudança se tornem espaços de convivência, o projeto pretende levar melhorias nos serviços de zeladoria, como luz, limpeza urbana, poda de árvores e pontos wi-fi, através de parceria com a Secretaria Municipal de Serviços. Após a mudança dos logradouros, será feito um levantamento de escolas, parques e outros equipamentos públicos para terem seus nomes modificados.
O Ruas de Memória também veta a possibilidade de novas nomeações de pessoas ligadas à repressão nas ruas e espaços públicos paulistanos. Também serão priorizados os nomes de personagens femininas nas novas escolhas. O projeto está alinhado à recomendação 29 do relatório final da Comissão Nacional da Verdade e ao Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).
O professor de arquitetura e urbanismo da FAU-USP, Renato Cymbalista, saudou a idéia da mudança das ruas com base em um processo democrático e com participação comunitária. A iniciativa já promoveu uma dessas ações, ocorrida em maio no Grajaú (extremo sul de São Paulo), quando moradores e vizinhos da rua Golbery Couto e Silva organizaram uma tarde de intervenções artísticas e sarau de poesias. O resultado foi a criação de um PL que propõe a substituição do nome do general da ditadura pelo Padre Giuseppe Pegoraro, em reconhecimento às suas contribuições à região.
A Coordenação de Direito à Memória e à Verdade levantou mais de 30 logradouros com nomes de ditadores, torturadores e outros agentes da repressão. O projeto, porém, focará a substituição em 22 delas. Ainda em 2015, estão previstas mobilizações na rua Doutor Alcides Cintra Bueno Filho, na Vila Amália (zona norte) e na rua Senador Filinto Muller, no Parque São Rafael (zona leste).
“O debate feito com os cidadãos é muito mais importante que a mudança de nome em si. Defendo que essas ruas pra sempre tenham uma placa diferente, que cause estranhamento, que faça com que, ao olharmos pra ela, lembremos do processo de renomeação”, observa Renato. “Desta forma, estaremos construindo uma memória que não é neutralizada, e sim problematizada, engajando permanentemente a sociedade em questões como o abuso de força do Estado.”
O prefeito de São Paulo espera que o programa sirva de inspiração para outros dirigentes municipais. “A luta pela liberdade não tem fim, ela é da essência humana, e sobre ela sempre vão pairar ameaças e situações que coloquem em risco o bem mais precioso que temos”, refletiu Haddad. Em relação às mudanças do nome das vias, ele defendeu que sejam processos pedagógicos e educativos, capazes de impactar as novas gerações.
Para Rogério Sottili, secretário adjunto de Direitos Humanos e Cidadania e um dos idealizadores do programa, as marcas da violência deixadas não apenas pela ditadura, mas também pelo extermínio indígena e pela escravidão, estão encravadas no cotidiano das relações sociais.“Seja dentro de casa, nas famílias que agridem e batem nas crianças e pensam que estão educando, seja nas praças e nas ruas homenageando torturadores – mas principalmente na questão do uso daquilo que é público”.
O secretário lembrou que ainda vigora na sociedade a política do ‘circulando’, que impede as pessoas de ocuparem o espaço público, de exercer a convivência, de se avizinharem, de serem solidários entre si. “O Ruas de Memória ressignifica esses espaços. Queremos uma cidade aberta, democrática e cidadã!”, concluiu.
(A foto da matéria é de Peu Robles – João e Maria.doc)