publicado dia 28 de julho de 2015
Espaço Cultural LiteraRua aproxima juventude da literatura produzida nas periferias
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 28 de julho de 2015
Reportagem: Danilo Mekari
Vestida com roupas pretas, alargador em uma orelha e dreadlocks nos cabelos, a paulistana Giovanna Ricci, 19, acaba de concluir o ensino médio em escola pública e quer estudar Biologia Marinha na universidade. A jovem não tem receio de dizer que foi durante o último ano escolar que, pela primeira vez na vida, leu um livro na íntegra.
Nada de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Vidas Secas ou Sentimento do Mundo, algumas das obras obrigatórias para a Fuvest 2016. O primeiro livro lido por Giovanna foi a biografia do rapper Sabotage, escrita por Toni C.
“Minha mãe ganhou o livro e me emprestou, pois sempre gostei muito de rap. Comecei a ler e parei no meio porque fiquei com raiva do Sabotage por uma coisa que ele fez com a mulher. Depois fiquei com aquela vontade de saber mais da história dele. Acabei em menos de um mês”, conta.
A relação de Giovanna com a literatura pode ser comparada a de muitos brasileiros – no país, mais de 70% da população admite não ter o hábito da leitura. “Meus amigos também nunca foram interessados por livros. Mas quando apareci com a biografia do Sabotage, todos queriam emprestado”, recorda.
O livro serviu de introdução para a jovem conhecer mais de perto um estilo de escrita muito mais próximo de sua realidade: a literatura periférica. Hoje, trabalha no Espaço Cultural LiteraRua ao lado do próprio Toni C. Inaugurado em junho, na zona norte de São Paulo, o local é usado de diversas formas: é a sede da editora de mesmo nome, funciona como livraria e, principalmente, serve como um espaço de troca de conhecimento. Cursos, debates, saraus e lançamentos de livros – como “Liberdade de meus versos”, de Marcelo Biorki – constam na programação local.
Na quinta-feira (30/7), a partir das 19h, acontece no Espaço o minicurso “O poder da palavra”, sobre a importância da oratória.
Toni afirma que não se via representado – assim como não reconhecia “seu povo” – em várias facetas da cultura nacional como literatura, cinema, televisão, teatro e também na escola. “Para ter voz e vez e algum lugar na história, passamos a contar a nossa própria”, observa o escritor, retomando a criação do selo editorial independente, em 2012, que inicialmente reuniu autores que se auto publicavam e pessoas ligadas à cultura hip hop. “Queremos que as pessoas consigam se ver, se enxergar na literatura.”
“É um processo libertário”, define Demetrios dos Santos, um dos sócios da empreitada. “Apesar de intensa, a produção cultural periférica não é vista pela sociedade como um todo por conta da dificuldade de acesso. Nosso projeto tenta auxiliar esses artistas que precisam de visibilidade.”
O grupo relaciona a liberdade com a própria arte que produzem, pois ela dá protagonismo àqueles que têm na opressão social uma unidade fundante. “São pessoas que, antes, não conseguiam se expressar, falar ou ler, por muitas razões diferentes, como dificuldades de acesso à educação formal, recursos financeiros, preconceito social”, aponta Demetrios. “A LiteraRua permite que essas pessoas produzam a sua obra, contem suas próprias histórias e retratem aquilo que vem da periferia.”
Toni C. relembra que, se a escola o fez sentir ódio da literatura, o rap lhe deu o prazer em ler. “Foi o rap que me falou quem era o Nelson Mandela, Malcom X, Martin Luther King, Zumbi, entre outros. A partir de então comecei a ler livros para aprofundar o conhecimento sobre eles.”
Ele critica a opção das escolas que, ao introduzirem literatura aos jovens, adotam livros distantes da realidade de seus alunos. “Muitas vezes, o primeiro contato de crianças com a leitura é através de Machado de Assis, que é maravilhoso, mas certamente não é a maneira mais fácil de aprender a ler”, ressalta.
Citando o caso de Giovanna como exemplo, Demetrios acredita que “à medida que começamos a gerar livros mais próximos a essas pessoas, teremos uma literatura mais ramificada e penetrada nas camadas sociais. As pessoas têm interesse na leitura, desde que ela tenha alguma identidade com o mundo delas.”
Há dez dias, foi lançado o segundo Espaço Cultural Literarua, desta vez localizado na zona sul de São Paulo. Não é à toa que a sede oficial está no bairro do Limão: Toni C. se aproxima da janela e aponta a viela onde ele e Demetrios cresceram juntos. “Queremos dar um retorno para o lugar de onde a gente veio”, declara o escritor.
O neologismo usado para dar nome ao projeto surgiu de uma necessidade de juntar dois conceitos que, à primeira vista, parecem distantes. “É natural pensar que a leitura de um livro pede um lugar reservado, em silêncio. Mas há muitos casos de pessoas que não tem espaço ou condições para ler na sua moradia”, lamenta Toni C. “Às vezes, a rua é mais acolhedora e traz mais que a escola e o livro juntos. A rua é ambígua: altamente atrativa ao mesmo tempo em que é evitada pelas pessoas, por conta do medo. Mas ela é a ponte que liga as casas e as pessoas.”
O escritor cita obras que está lendo para afirmar que o ser humano é altamente sociável. “Tão nocivo quanto o álcool e a vida sedentária é você se segregar socialmente. Por isso, necessitamos de espaços comuns e coletivos e a rua é esse canal para ligá-los.”
Modesto, pequeno e singelo são os adjetivos escolhidos por Toni C. para definir o Espaço Cultural LiteraRua, “uma tentativa autêntica de fazer a mudança no mundo”. Afinal, como diria um dos versos mais famosos de Sabotage, biografado pelo escritor, “um bom lugar / se constrói com humildade”.