publicado dia 3 de julho de 2015
Educador busca em Paulo Freire inspiração para ensinar com rap
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 3 de julho de 2015
Reportagem: Pedro Nogueira
Sabemos desde não sei quando, mas sabemos. Do boi da cara preta, passando pelo piano com um copo de veneno e diversas outras cantigas e parlendas, fragmentos da cultura oral poética habitam nossa memória. Mas que função esses versos cumprem em nosso processo de aprendizado? Para Isadora Rebello, pesquisadora em oralidade poética, alfabetização, linguagem e educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), eles são elementos essenciais para o aprendizado.
“A criança que consegue evocar de cabeça textos complexos já tem enraizada uma capacidade leitora. O uso da poesia, a capacidade de retomar experiências e produzir seu texto, fazer livres associações e brincar com recursos orais que potencializam a subjetividade entre textos, garantem um suporte maior no desenvolvimento de capacidades linguísticas”, afirma Isadora, que pesquisa o assunto
Nas margens de Cotia, na grande São Paulo, um rapper, de surpresa, descobriu um pouco dessa riqueza. Em outubro do ano passado, recém-saído de seu emprego como jornalista, José Francisco Rossi Neto, ou simplesmente Netão, foi chamado para realizar oficinas em uma ONG na região. Sem ter muita ideia de como seria, topou a tarefa. Com mais de 13 anos de trajetória com o grupo musical Influência Positiva, ele nunca havia trabalho como educador.
“No primeiro contato, eu levei a questão da cultura negra e, a partir dai, foram surgindo oportunidades de trabalhar com as questões do bairro, drogas, violência. Disso, foram surgindo outros temas que vinham da escola, como a escravidão. Comecei a notar que o rendimento escolar deles melhorava e que eles traziam diversas demandas e assuntos”, lembra Netão sobre quando iniciou as oficinas, dez meses atrás. Hoje, o educador atua no Projeto Galerinha, na Instituição Maria Carolina e na Escola Municipal Samuel da Silva Filho, aproximando a cultura hip hop de crianças e jovens.
O trabalho, inicialmente com adolescentes de 13 a 18 anos, logo foi expandido para crianças de 4 a 6, em fase de letramento. Para lidar com esse desafio, Netão continuou com o rap, por acreditar que ele traz elementos da realidade e da sociabilidade dessas crianças.
“Eu fui atrás do Paulo Freire e dos métodos de alfabetização dele. Tem um livro que adapta a metodologia dele para crianças. Ai eu comecei a tirar das canções as palavras geradoras, para trabalhar com as crianças e propor uma alfabetização crítica. Cada palavra que eles iam aprendendo, como por exemplo “favela”, também gera uma discussão. Frutifica porque faz parte da convivência deles, do saber de cada um”, analisa Netão.
Com os mais velhos, Netão trabalha com as variantes e o preconceito linguístico. “Eu pedi que eles separassem trechos da linguagem oral do rap e depois transcrevessem na norma culta. Cada comunidade tem um jeito de falar e é importante valorizar isso, mas também tem que trazer a linguagem padrão para escrever, conseguir um emprego, entrar na universidade.”
Além do rap, o educador usa poesias e crônicas de autores periféricos, como Sérgio Vaz e Rodrigo Ciríaco. “Um dia um deles me falou: ‘então quer dizer que a gente pode escrever também?’. Porque o escritor para eles era um velho barbudo distante, não um cara da quebrada. Essa aproximação é rica, porque dá voz e protagonismo, dá a capacidade de cada um narrar sua história”.
Narradores urbanos
Durante as oficinas, os jovens também são incentivados a escreverem seus versos e rimas. “Essa cultura oral inserida na juventude, ainda mais se compararmos o rapper com o repentista, é antiga. O improviso e a métrica da rima vêm desde os menestréis gregos, com uma técnica muito parecida”, reforça Isadora.
Para ela, há uma importância no ato de narrar e na valorização do narrador, o contador de histórias, que foge das linguagens gráficas do livro e do vídeo, e compartilha experiências usando o corpo, a memória, a performance e a voz.
“A gente perdeu muito nas escolas a capacidade do professor de contar histórias sem livro ou vídeo, dessa capacidade de sentar e escutar uma história, aventuras, vivências, como se fazia antes, em volta da fogueira, no pé da saia da vó. Essas oralidades poéticas que a criança vai retomar de memória para constituir os traços autorais na sua subjetividade na hora de ler, escrever e interpretar”, afirma.
(Confira abaixo o video da Revista Vaidapé que mostra as oficinas de Netão)
Dando alguma sequência a essa tradição, Netão realiza um sarau na garagem da casa de sua mãe, no qual os estudantes, pais e a comunidade apresentam suas produções. “No início tinha uma desconfiança por ser algo de maloqueiro, mas a gente descontruiu isso. Eles veem que o rap tem outra proposta e agora eles aplaudem e apoiam.”
Netão defende também o papel dessas linguagens no processo de valorização da arte e cultura produzidas nas bordas da cidade. “O rap é um movimento político hoje na quebrada, que explica nossas dores, de quem sente na pele o transporte público, a saúde precária, a violência policial. A transformação da sociedade começa nos bairros e com um microfone na mão, falando pro seu vizinho, pros seus iguais”, conclui.
Para terminar, pedimos a Netão que indicasse cinco músicas trabalhadas em sala de aula. Confira abaixo a lista: