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publicado dia 18 de maio de 2015

Como Luma superou o preconceito para se tornar a primeira travesti doutora do Brasil

Reportagem:

Por Ana Luiza Basílio, do Centro de Referências em Educação Integral

No meio da entrevista, um silêncio, seguido de um suspiro e uma fala embargada: “A Luma é um ser humano em construção, que tenta fazer de sua vida uma obra de arte. Obra que não agrada a todos, mas que é bela em si, e se constrói e se refaz a todo o instante”.

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Créditos: arquivo pessoal

Sua fala não poderia vir ancorada em outros tons que não os do otimismo e coragem. Com 19 anos, de seus 37 vividos, dedicados à educação, Luma Nogueira de Andrade ocupa o lugar da primeira travesti brasileira a receber um título de doutora. A nomeação, no entanto, não é somente sinônimo de alegria: “Fico feliz por essa conquista ser fruto de muito trabalho, dedicação e superação de dificuldades, mas triste por saber que outras travestis não chegam sequer ao ensino fundamental”, coloca.

Essa realidade não é comum somente a essa parcela da população, como observa: “mas a todos os sujeitos que não se adequam aos padrões hegemônicos culturais de nossa sociedade”. Luma critica a cultura patriarcal na qual se fazem bastante presentes o sexismo, a homofobia e as padronizações do que é ser homem e do que é ser mulher. “Isso é considerado imóvel, engessado, e qualquer sujeito que sai desses padrões e normas de controle é mal visto pela sociedade e vai estar sujeito a punições”, avalia.

Ela recorre a uma das obras do filósofo francês Michel Focault, Vigiar e Punir, para se aprofundar no assunto e recorda que o autor menciona que a própria sociedade se auto vigia e pune uns aos outros na tentativa de fazer com que os sujeitos se adequem aos padrões impostos. Em sua visão, isso explica a dificuldade de se garantir presença “nos espaços sociais institucionalmente construídos exatamente para legitimar modelos específicos de homem e mulher”.

Para Luma há um adestramento para a norma que assegura penalidades, violências e negações aos sujeitos que tentam resistir. Em sua visão, a escola é mais um dos espaços a reproduzir essa lógica. “Ela é um desses lugares institucionais da sociedade disciplinar. Esses diferentes sujeitos que chegam a ela vão, de certa forma, sofrer pela tentativa de adequação ao modelo o que acaba por gerar violência não só contra as travestis, mas aos homossexuais, às lésbicas, gays, negros, índios. Enfim, tudo aquilo que não está ‘de acordo’ “.

Pedagogia da violência

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Créditos: arquivo pessoal

Luma sentiu isso na pele ainda muito nova. Na escola que frequentou em sua cidade natal, Nova Morada (CE), foram diversas as negações vivenciadas, sobretudo porque na época, relembra, nem se tinha espaço para discussões sobre as questões da comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Transgêneros (LGBTTT) e ficava evidente a ideia de “endireitar” as pessoas para o padrão normativo heterossexual, a chamada heteronormatividade. “Eu não podia frequentar o banheiro, porque eu não era considerada menina para utilizar o feminino e no masculino eu era violentada”, relata. A lembrança é de uma escola que não assegurava nenhum de seus direitos, sequer o das necessidades fisiológicas. “Sentia dores atrozes até chegar em casa”.

Tudo isso devido à sua singularidade feminina não compreendida pelos atores da instituição. Ela não sabe contabilizar as vezes em que foi agredida verbalmente, fisicamente e psicologicamente. Também se lembra de momentos em que pediu ajuda aos professores e ouviu respostas do tipo: “Bem feito, quem manda você ser assim?”.

A situação ficava ainda pior porque, como criança, ela não tinha a compreensão do porquê de tais manifestações. “Eu só sabia que tinha alguma coisa errada”, rememora. Levar a situação para os familiares também não era uma opção, pois Luma tinha medo de ser repreendida novamente. Por muito tempo, lidou com tudo sozinha. Só lá pelos 14 anos conseguiu compreender porque não partilhava das possibilidades dos demais colegas e preferiu o isolamento. “No intervalo, eu preferia ficar dentro da sala, porque temia violências”, lamenta.

Permanência negociada

A realidade escolar fez com que Luma desistisse de cursar o período diurno e buscasse o noturno. A convivência com pessoas adultas que, em sua maioria, já trabalhavam e não tinham tempo de estudar ou, muitas vezes, apresentavam dificuldades de aprendizagem tornou o percurso escolar um pouco mais possível. Ainda assim, a condição era com base em uma negociação. “Eu sempre tive facilidade de aprender, sobretudo os conhecimentos das Ciências, Matemáticas e suas tecnologias. Nos períodos que antecediam as provas, eu acabava por apoiá-los nos estudos e fui conseguindo uma certa empatia. Eu os ensinava e em troca recebia certa proteção, eles não mexiam comigo”.

Longe de ser a condição ideal, Luma sabia que ainda era preciso se assujeitar para permanecer na escola. Qualquer resistência ou rebeldia de sua parte poderia culminar com a sua expulsão efetiva, embora ela já a sofresse diariamente. E isso não era uma opção. Não para ela, filha de pais agricultores analfabetos. “Eu via na escola uma possibilidade de fuga daquela realidade, a única maneira de tentar modificar a vida da minha família”.

O reencontro com a escola

E Luma seguiu. Agarrou-se ao seu desejo de mudança e anos mais tarde pôde retornar à escola, dessa vez como professora. Isso aconteceu no município de Aracati, também no Ceará. Ao enfrentar novamente a sala de aula, o medo não se fez mais presente. “Voltei pela educação cidadã, pelo desenvolvimento integral dos sujeitos, justamente por ter sido vítima de um processo de exclusão e discriminação humana. Meu papel, se não solucionar, seria o de tentar minimizar essas questões”, afirma.

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Créditos: arquivo pessoal

Uma de suas estratégias foi promover uma educação dialógica para os alunos que considerasse os conteúdos curriculares em intersecção com as questões sociais, de gênero, sexualidade. Tudo isso, sem deixar de colocar a sua própria singularidade. Esse foi o caminho para criar uma identificação com os estudantes. “Sempre coloquei a eles a questão do respeito e frisava que não era uma condição só para as travestis, mas dos negros, índios, pobres, homossexuais e eles puderam perceber que, de alguma forma, eles também sofriam dessas punições. Então, por que excluir se, juntos, poderíamos promover um outro processo educacional?”

A quebra da postura hegemônica na relação professor aluno foi fundamental para aproximar os estudantes, envolvê-los na aprendizagem e quebrar as resistências dos gestores. “De início, era muito comum que eles ficassem me ouvindo dar aula por detrás das portas”, ironiza. Ainda assim, vários foram os enfrentamentos para se firmar como docente. Luma fala de boicotes e denúncias inverídicas que tinham por fim apenas tirá-la da sala de aula, percurso que trilhou por dez anos.

Em seu currículo também constam sete anos como gestora, cargo que alcançou ao passar em um concurso do Estado para a Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação. Ela passou a orientar 26 escolas de três municípios. “Imagine que os gestores que não me queriam nem como professora tiveram que me aceitar na gestão”, coloca. A merecida volta por cima. Sua atuação considerou algumas intervenções nas escolas pelas mesmas questões que vivenciou. “Eu não tinha dúvidas. Levava a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e fazia um trabalho conceitual com os gestores, sempre deixando a pergunta: ‘faz sentido o que vem sendo feito?'”

A escola em diálogo com as necessidades humanas

Hoje, Luma leciona na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Seu acúmulo de vivências a faz categórica: “os arranjos para o masculino e o feminino não dão conta da complexidade da vida dos sujeitos”. Para ela, é urgente que o sexo e o gênero sejam compreendidos e discutidos como construções sociais e não considerados uma determinação biológica. Nesse sentido, a escola tem papel fundamental.

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Luma assinando termo de posse na UNILAB. Créditos: arquivo pessoal

“Há uma necessidade de que os educadores que estão na escola tenham uma formação que atenda essas necessidades. De nada adianta criar leis sem que as pessoas estejam realmente habilitadas a promover essa formação cidadã”. E reforça: “essa formação não deve tratar a diversidade em um único pacote. Precisamos de uma diversidade nomeada que considere as questões étnico raciais, indígenas, de gênero, sexo, deficiência física. Ou fazemos isso ou vamos continuar a promover exclusões sociais, com parte dos sujeitos com direito à cidadania e outros não”, alerta.

Em sua opinião, fica bastante evidente a falta de diálogo da escola com essas questões. Ela coloca que embora os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) tragam a educação cidadã de maneira transversal, a escola ainda se organiza essencialmente com base nos conteúdos hegemônicos sem essas conexões fundamentais para que a aprendizagem se dê em um contexto de convivência pacífica entre os sujeitos.

As travestis nas escolas

Luma também se debruçou sobre o direito das travestis à educação e resolveu problematizar a escola como esse lugar que as força ao assujeitamento. O tema foi defendido em sua pesquisa de pós-graduação “Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa”, onde reflete sobre o que chama de evasão involuntária. “É muito comum ouvirmos o gay se evadiu, a lésbica se evadiu, enunciados que fazem com que a evasão recaia sobre os sujeitos. Ninguém os entende como expulsos da escola. A evasão involuntária a que me refiro é a que não parte do desejo deles, mas do maquinário de guerra do qual a escola lança mão para tornar essa permanência insuportável”, denuncia.

Estudo de caso
Como as estudantes travestis se movem na ordem normativa da escola? Como constroem sua experiência de ser jovem travesti na escola? Essas são algumas perguntas que a pesquisadora procurou responder na pesquisa de pós-graduação “Travestis na Escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa“.

A escola, como avalia, acaba por praticar inúmeras negações, desde o acesso às dependências – caso dos banheiros – e aceitação dos nomes sociais o que, para ela, é fundamental. “O nome social é algo que te representa, na chamada, em um evento, na hora de assinar um documento. Você se apresenta dentro de um gênero convencionalmente chamado feminino e é tratado por um nome que não corresponde àquilo que você representa com seu corpo, com sua performatividade, isso é uma violência moral, psicológica e até mesmo física, pelas marcas que pode deixar”.

Para ela é importante que não paire apenas a obrigatoriedade sobre a questão, mas a compreensão para que se entenda a importância de um trabalho de valorização ao indivíduo. “As leis são importantes, mas não tudo. A racionalidade que as produzem precisam chegar ao conhecimento popular”, declara.

O Dia Internacional da Luta contra a Homofobia

No dia 17 de maio, há uma mobilização mundial contra as manifestações homofóbicas. Para Luma, é muito importante dar espaço aos pontos de convergência dessa agenda. “São gays, lésbicas, homossexuais e travestis tentando quebrar a normatividade, esse pensamento hegemônico para a sexualidade”, reflete.

Até pouco tempo atrás, avalia, só se faziam presentes discussões acerca das diferenças entre homossexuais e heterossexuais. “O que não era heterossexual estava no pacote homossexual”, critica. Para Luma, “a produção de conhecimento sobre as singularidades é fundamental para a visibilidade aos sujeitos”, conclui.

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