publicado dia 13 de fevereiro de 2015
Falta d’água: Crianças devem ser prioridade durante a crise hídrica
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 13 de fevereiro de 2015
Reportagem: Danilo Mekari
Respeitar a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse é o apelo que o projeto Prioridade Absoluta faz aos governadores e prefeitos das capitais dos estados do sudeste brasileiro, que enfrentam a maior crise hídrica da história da região. Capitaneado pelo Instituto Alana, o projeto endereçou cartas às autoridades públicas, endossando a necessidade de se priorizar os direitos da infância e adolescência em momentos delicados como esse.
“Em períodos de crise e emergência precisamos eleger prioridades. Como dever constitucional, não só o Estado, mas a sociedade e as famílias, devem colocar a criança em primeiro lugar”, afirma Pedro Hartung, advogado do Instituto Alana. De acordo com a carta, escolas, creches, berçários, maternidades, hospitais e postos de saúde infantis devem ter abastecimento de água prioritário, tendo o poder público obrigação legal de assegurar tais medidas. O advogado informou que o instituto já recebeu diversas manifestações de professores e pessoas da comunidade escolar relatando escassez de água nesses locais.
Artigo 227 da Constituição Federal de 1988: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência.”
Trecho do artigo 4º do ECA (1990): “A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.”
“Cada diretor tem encontrado uma forma de diminuir o uso de água. Com isso, aparecem distorções, como proibir algumas crianças de irem ao banheiro e escovar os dentes. Isso tem a ver com a falta de informação. Precisamos garantir que não falte água nas escolas.”
Na cumbuca, no papel
Há pouco tempo atrás, na hora da merenda, os alunos das escolas municipais de São Paulo recebiam um pedaço de mamão na cumbuca. Hoje a fruta é servida em papel toalha – ou trocada por uma banana, que não exige pratos. A mudança, que parece pequena, é uma das apostas para reduzir o consumo de água na maior rede de ensino do país. Com quase 1 milhão de alunos, em 2015, as escolas paulistanas têm como tarefa reduzir o consumo em pelo menos 20% em relação à média registrada entre fevereiro de 2013 e janeiro de 2014.
A portaria, publicada pelo prefeito Fernando Haddad em 13 de janeiro, estabelece ainda a vistoria de equipamentos para identificar eventuais oportunidades de redução do consumo. Já a lavagem de calçadas e áreas externas com água da rede pública de abastecimento está proibida – permite-se apenas água de reuso. Lavagens com mangueira também estão vetadas.
Nas escolas de educação infantil, as torneiras de banheiro comuns foram trocadas por peças redutoras, que controlam a saída de água. A escovação de dentes tem sido feita sob a supervisão de um agente escolar, que instrui as crianças a encher suas canecas para não desperdiçar água. Na cozinha, a água que escorre da lavagem de verduras é acumulada para limpar as áreas comuns do espaço escolar.
Para a realização de necessidades básicas, a instrução é apertar a descarga rapidamente quando se trata do “número um”. Além da economia direta, as ações têm o objetivo de sensibilizar as crianças e adolescentes para o momento de crise que a cidade atravessa e estimular o consumo consciente dos recursos naturais.
Segundo a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME-SP), até o momento, nenhuma escola ficou desabastecida. Quando essa situação é iminente, o diretor da instituição comunica a Sabesp, que é obrigada a fornecer um caminhão-pipa de imediato – o preço pelo serviço é cobrado normalmente.
O canal direto entre a empresa estatal de recursos hídricos e as escolas também existe na rede estadual – a comunicação é feita através da Secretaria da Educação do Estado (SEE). De acordo com a assessoria do órgão, nenhuma escola ficou sem água desde o começo do ano. Mas reportagem publicada pela Folha de S.Paulo, na primeira semana letiva, relatou que algumas instituições de ensino chegaram a ter as aulas interrompidas por desabastecimento.
Os casos de desabastecimento não ocorrem apenas na região norte da capital. Na zona leste, a escola Salim Farah Maluf também passou por dificuldades, mas informou que o problema foi na bomba d’água e, portanto, pontual. Também há relatos de desabastecimento escolar na zona sul. Em outubro de 2014, a cidade de Cristais Paulista, a 400 km da capital, tomou medida drástica: por conta da falta d’água, fechou as escolas e deixou dois mil alunos sem aulas. Em Itu, várias escolas fecharam e suspenderam as aulas no segundo semestre de 2014.
Em contato com essas escolas, localizadas na zona norte de São Paulo, a reportagem do Portal Aprendiz não conseguiu obter atualizações a respeito do problema. As diretoras e coordenadoras das escolas estaduais Carlos Frederico Werneck Lacerda (Pirituba), Professora Veridiana Camacho Carvalho Gomes (Parque Edu Chaves) e Gabriela Mistral (Tucuruvi) indicaram que apenas a Secretaria de Educação pode fornecer esse tipo de informação.
Uso racional
Sobre o impacto da crise hídrica no cotidiano escolar, a Secretaria informou que as escolas da rede estadual já trabalham com uma perspectiva de uso racional de água e como “polo” de multiplicação de boas práticas com a comunidade. Indicou ainda que mil recipientes serão adquiridos para aumentar a capacidade de armazenamento das instituições.
“Estas ações se somam ao já existente Pura (Programa Racional do Uso da Água) que, por meio da conscientização de alunos e do aperfeiçoamento do sistema hidráulico permitiu, desde 2008, a economia de 2,7 milhões de metros cúbicos em 628 unidades de ensino na capital e região metropolitana”, acrescentou a pasta.
Plano de emergência
Para Cláudia Visoni, representante da Aliança pela Água – rede criada em outubro de 2014 e formada por mais de 40 entidades da sociedade civil –, todas as escolas já deveriam ter produzido um plano de emergência para ser implementado quando a situação se agravar. “Uma situação é estar de sobreaviso e a outra é chegar na escola e cancelarem as aulas”, aponta.
A Aliança pela Água pretende alertar e apresentar propostas que ajudem o estado de São Paulo a lidar com a crise atual e construir uma nova cultura de uso, economia e conservação de água. Entre suas demandas está a criação de uma rede de apoio às instituições que não podem ficar sem água, tais como hospitais, creches e escolas, entre outros.
Ela acredita que a interrupção das aulas pode desorganizar a sociedade. “Precisam ser criadas estratégias para manter o funcionamento das escolas. Essa situação pode se estender por meses, e qual será o plano? Interromper a educação no país? Ter um ano letivo intermitente?”, questiona. O prazo estipulado pelo governo estadual para decidir pelo rodízio de água na região metropolitana de São Paulo é o fim de março.
Defensora da permacultura, Cláudia propõe a implementação de banheiros secos nas escolas, uma alternativa ecológica para o tratamento de fezes e urina humana. “Porém, existe um tabu cultural que vai contra essa ideia. Está na hora de levá-la mais à sério”, adverte. “Estamos em uma situação de emergência e a zona de conforto de todos já foi pro espaço.”
Além de reforçar a necessária prioridade às crianças, Pedro e Cláudia também estão de acordo quanto à urgência da construção de cisternas nas escolas. Essa é, inclusive, uma das propostas de solução apresentada pela carta do Instituto Alana aos governantes. “Esperamos medidas práticas e concretas dos governos estaduais e municipais. A construção de cisternas que garantam o funcionamento das instalações sanitárias é uma delas”, diz Pedro. A carta sugere também a criação de pontos de acesso à pequenas quantidades de água potável em todos os bairros da cidade – com prioridade de consumo infantil.
Cláudia, que integra o movimento Cisterna Já, critica a proposta do governo estadual de fornecer mais mil recipientes para aumentar a capacidade de armazenamento das escolas. “É uma saída individual que, aos poucos, vai transferir todo o Sistema Cantareira para as nossas caixas d’água e contribuir apenas para a água acabar mais rápido”, observa. “Essa crise está anunciada há muito tempo. E tem chovido bastante. Porque as escolas ainda não fizeram cisternas? Mesmo com o período úmido terminando, é melhor fazer, pois se não for útil agora, com certeza ainda será.”
Água de beber
O nível de potabilidade da água escolar também preocupa. De acordo com um estudo da Unicef, a má qualidade da água corresponde, ao lado da falta de higiene e saneamento inadequado, a cerca de 88% das mortes por diarreia, segunda maior causa de mortalidade infantil no mundo. “A criança tem uma vulnerabilidade inerente enquanto indivíduo, pois ainda está em desenvolvimento. A necessidade de acesso à água potável e limpa – em quantidade e qualidade – é essencial para a manutenção da vida e fundamental para garantir outros direitos”, explica Pedro.
“Se o encanamento sofre redução de pressão pode haver infiltração de esgoto. O que acontece entre a Cantareira e a caixa d’água é de responsabilidade da Sabesp. Testar essa água é urgente, pois o risco é muito alto para as crianças”, alerta Cláudia. Para ela, o impacto da falta de água na educação pode ser enorme. “O que acontece com o aluno que não tem aula? Por quantos dias os empregadores dos pais vão entender? Isso pode provocar desemprego. Pior: em momentos de stress e conturbação social, a violência contra a infância aumenta.”