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publicado dia 19 de dezembro de 2014

Mais do que a matrícula: Direito à educação de imigrantes deve integrar cultura, cidade e comunidade

Reportagem:

No bairro do Pari, perto do estádio da Portuguesa, havia uma praça que era apenas um local de passagem. No entanto, aos poucos e aos domingos, imigrantes andinos (peruanos e bolivianos) passaram a ocupar o local para confraternizar, comercializar e consumir produtos de suas terras e realizar atividades culturais e de lazer. Nascia aí a praça Kantuta que, batizada com o nome de uma flor dos Andes, passou a atrair gente de toda a cidade para essa festa dominical. Esse também foi o lugar escolhido pela I Mostra Cultural Dezembro Imigrante para realizar seu encerramento.

A mostra, que chegou ao fim no último domingo (14/8), foi organizada em parceria entre as Secretarias Municipais de Educação, Promoção da Igualdade Racial, Cultura e Direitos Humanos, com o objetivo de reunir comunidade, alunos, professores, academia e movimentos sociais, para discutir educação, cultura e inclusão no sistema escolar, além de contribuir para formação de professores da rede pública municipal que trabalham com estudantes de origem estrangeira, ao todo, 3.239 – 70% de origem boliviana.

“Mas temos também muitos outros estudantes que nasceram aqui, mas são filhos de imigrantes, inseridos em comunidades, com cultura e língua da terra dos países. Os números variam, mas podemos ter até 400 mil imigrantes vivendo em São Paulo agora”, afirma Adriana de Carvalho, técnica pedagógica do Núcleo de Educação Étnico-Racial, que fez parte da comissão organizadora da mostra, aberta à comunidade, sociedade civil e movimentos organizados. O evento aconteceu em dezembro em referência ao Dia Internacional do Migrante, celebrado no dia 18. Ela foi precedida pelo Agosto Indígena e pelo Novembro Negro, também organizados pela Secretaria.

Além do encerramento na Kantuta que, segundo Adriana, reforça a perspectiva de uma cidade educadora, a mostra também contou com seminários, cursos, peças de teatro, shows, rodas de conversa e exposições fotográficas, espalhadas pelos CEUs Lajeado, Aricanduva, Paz, Quinta do Sol e São Rafael, em auditórios na Freguesia do Ó, Vila Maria, Câmara Municipal, EMEF Dona Angelina Maffei, na Casa Verde e na Galeria Olido no Centro, todos lugares de alta concentração de migrantes. Um dos principais focos da iniciativa, ressalta Adriana, é a formação de professores que recebem os estudantes de fora.

Segundo dados do Censo de 2012, o número de imigrantes no Brasil aumentou 87% entre 2000 e 2010. E, de lá para cá, não tem dado sinais de que vá diminuir, com a chegada de refugiados haitianos, sírios, e o constante fluxo de imigrantes bolivianos e nigerianos.

Pedagogia do estômago

“Pedagogia do estômago” foi um dos conceitos revelados ao longo da Mostra para designar a aproximação cultural realizada pelos professores. Com comida boliviana – salteñas e mocachichi – servida à mesa, junto a diversos pratos culturais, a ideia é que para um professor absorver integralmente o que é um estudante imigrante, não basta saber a língua.

“Não importa tanto o curso de língua, mas que isso esteja inserido num aprendizado sobre a cultura latina e dos países andinos, elementos tão singulares das culturas que os estrangeiros trazem ao frequentar nosso sistema educativo. A questão da inclusão na escola não deve ser vista como um obstáculo, mas como uma oportunidade de enriquecimento e formação para toda a comunidade escolar”, ressalta Adriana, ao lembrar que os estudantes bolivianos geralmente são interessados e trazem suas famílias e comunidades ao ambiente escolar.

“Também diz respeito ao acesso e permanência – educação não é só uma questão de matrícula. A qualidade da educação passa pela mobilização de repertórios como cinema, música e artes para pensar uma educação integral com o corpo e mente”, aponta.

Incluir

Um dos gargalos para o acesso à educação está no desconhecimento por parte de muitos pais imigrantes indocumentados de que têm direito ao sistema público brasileiro de saúde e educação. “Vira uma bola de neve e é preciso quebrar esse círculo vicioso, senão o que era para incluir, acaba por excluir. Eu vejo a educação como uma parte fundamental do processo de inclusão, pois integra o imigrante que, por sua vez, traz elementos culturais novos para a sala de aula”, afirma o jornalista Rodrigo Borges Delfim, jornalista e criador do site MigraMundo.

O hoje professor da rede municipal, Felipe Yanez, passou por esse obstáculo ao tentar se tornar professor. Nascido no Chile e emigrado para o Brasil em 1983, aos dois anos de idade, Yanez passou pela escola pública como aluno e hoje a frequenta como professor, processo que, para se concretizar, demandou sua naturalização. O professor, que hoje ministra aulas de literatura, cultura e língua no contraturno da EMEF Paulo Carneiro, avalia que houve avanços nos últimos anos.

“Na minha época, ser estrangeiro era motivo de deboche. Não havia essa ideia do imigrante como uma outra forma de expressão da vida, não havia essa abertura cultural e esse valorização. Se for parar pra pensar, é tudo muito recente”, opina. Mas ainda assim, a escola apresenta desafios. “Quando chega alguém novo, existe um estranhamento inicial, mas buscamos intervir e ouvir quem chega. Se o aluno não tiver apoio da escola, ele sofrerá bastante”.

Turma do Identidade Latino
Turma do Identidade Latino-Americana no Memorial da América Latina

A professora Ana Lazare, que desenvolve um projeto de Português como Língua Estrangeira de maneira intercultural para 23 alunos imigrantes no contraturno da EMEF Marcílio Dias, aponta que a recepção de cada criança é diferente, mas existe a possibilidade de, com trabalho, minimizar esse choque. “O ideal seria uma formação bilíngue associada a uma formação cultural. O mundo de hoje é globalizado, não há como se fechar para algo que pode nos enriquecer”, pondera.

Ela reconhece a importância de se trabalhar esse tema dentro e, sobretudo, fora da escola. “Na região aqui da zona norte temos muito bolivianos e paraguaios atentos não só para o que acontece na escola, mas também no seu entorno”, pondera Yanez, a partir de vivências adquiridas no projeto Identidade Latino-Americana, no Parque Novo Mundo, na zona noroeste de São Paulo.

Cidade educadora

A ideia de associar práticas educacionais com cultura, cidadania e espaço público ganha força quando se fala em imigração. É o que acredita Rodrigo Borges Delfim. “Está na cara que esse formato de escola, aula e decoreba não dá as respostas que as pessoas procuram hoje. Usar espaços públicos, aparelhos e práticas do cotidiano, como a cidade, é formidável”, defende, citando o projeto Trilhas da Cidadania,  realizado pela Associação Cidade Escola Aprendiz, com o apoio da Editora Moderna, Caritas Arquidiocesana de São Paulo e Museu de Arte Sacra, que trabalha com solicitantes de refúgio, aliando aquisição de linguagem com cidadania e cultura nos espaços da cidade.

“Estamos falando do ensino de língua, então, tem todo sentido estar na cidade. A língua não existe em um vácuo”, ressalta Felipe Bueno, educador do Trilhas da Cidadania. “Tentamos trabalhar com temas atuais, noções de história e cultura. Tudo isso usando os espaços públicos e os aparelhos como, por exemplo, o metrô, o mercado municipal, a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa”. E também as salas de aulas da escola pública.

Na mesma toada caminha o Coletivo Educar para o Mundo, também citado por Delfim. Criado pelo Centro Acadêmico Guimarães Rosa dos estudantes de Relações Internacionais da USP, o projeto de extensão passou dois anos na escola Infante Dom Enrique, que tem uma grande porcentagem de estudantes bolivianos, trabalhando com migração, direitos humanos educação e cidadania, ampliando o escopo da luta por direitos das populações imigrantes.

“Quando o aluno chega desamparado, ele pode ser vítima do deboche, da xenofobia, do estranhamento. Na minha época de escola, como chileno no Brasil e convivendo com a comunidade latina, eu passei por isso. Claro que cada aluno tem uma recepção, mas hoje eu tenho a impressão de que São Paulo quer se entender como cosmopolita não só por ter diferentes nacionalidades, mas por entender essas nacionalidades”, conclui Yanez.

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