publicado dia 24 de julho de 2014
Vagão rosa ou como (não) estamos garantindo o direito das mulheres à cidade
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 24 de julho de 2014
Reportagem: Pedro Nogueira
Montgomery, Alabama, 1º de dezembro de 1955. Rosa Parks se recusa a ceder seu assento para um homem branco. A ativista passa a noite na prisão e o gesto, ainda que não inédito, torna-se um marco na luta por direitos civis nos Estados Unidos.
São Paulo, julho de 2014. Seguindo os passos do Rio de Janeiro e Brasília, o deputado estadual Jorge Caruso (PMDB) propõe o PL nº 175/2013, que institui nos horários de pico um vagão no Metrô e nos trens da cidade para uso exclusivo de mulheres, objetivando evitar situações de assédio e abuso. A proposta é aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e aguarda sanção ou veto do governador Geraldo Alckmin, que deve ser anunciado nas próximas semanas.
Desde então, a medida tem gerado protestos, reflexões e divergências entre as mulheres. Embora uma pesquisa do DataFolha revele que 73% das usuárias do metrô aprovam a medida, setores que debatem questões relativas à violência de gênero há anos alertam para os perigos que habitam as entrelinhas do projeto.
O debate sobre a violência contra as mulheres no transporte público de São Paulo ganhou bastante força em março de 2014, após caírem na internet vídeos compartilhados por grupos de “encoxadores” que atuavam na cidade. A divulgação das cenas de abuso levou agentes de segurança a atuarem escondidos nos vagões, realizando até 30 flagrantes por dia. Em abril, a Companhia do Metrô também iniciou uma campanha de alerta e conscientização, distribuindo cartazes pelos vagões e plataformas. O grupo feminista Mulheres em Luta distribuiu materiais informativos e alfinetes nas estações.
De Montgomery, na década de 50, até os dias de hoje, na estação Tatuapé, o transporte público segue repleto de tensões e disputas. De análogo, emerge a incapacidade de se garantir o mínimo: um espaço público seguro para todos e todas e e o direito de ocupação e uso igualitário da cidade.
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Para debater esse assunto, o Portal Aprendiz conversou com a jornalista Maíra Kubik, que mantém o blog Território de Maíra e realiza doutorado em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Camila Lisboa, diretora do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, demitida durante a última greve do Metrô; e Juliana de Faria, fundadora do site Think Olga e responsável pela pesquisa Chega de Fiu-Fiu, que trata da percepção das mulheres sobre assédio sexual em espaços públicos – inclusive em trens, ônibus e metrôs.
Maíra Kubik, jornalista e pesquisadora, escreve para o blog Território de Maíra
“Ao invés de utilizar esse recurso dispendido para fazer o vagão rosa, o governo poderia ter investido em uma campanha educativa que discuta as questões de assédio nos transportes públicos principalmente com as mulheres. Mas fez o contrário: vai colocar essa segregação, punindo quem é atingida pelo assédio e contrariando o razoável, que pessoas que cometem assédio sejam colocadas em restrição. Eu também acho que responsabiliza – ao menos parcialmente – as mulheres que não entrarem no vagão pela violência que pode vir a ser sofrida fora dele.
Para mim, é ainda mais absurdo o vagão ser rosa: é simbólico e demonstra a visão do Estado, de partir do pressuposto de que há uma divisão. O “rosa para a menina” simboliza essa fragilidade, essa doçura, o corpo da mulher ser relacionado às princesas, ao puro, ao intocado. É a cereja do bolo.
“Se dizemos que as mulheres não podem circular livremente pela cidade, se elas só podem circular onde estão protegidas, quer dizer que a cidade não é pública, não é delas.”
Há um paralelo em relação às cotas raciais e as maneiras como nós inserimos grupos minoritários ou que sofrem discriminação. A questão das cotas é uma inserção positiva, com medidas para que se chegue à igualdade onde antes havia a exclusão. Aqui é o oposto: você exclui um grupo numericamente majoritário. A forma de resolver não é segregando vítimas, mas fazendo a discussão da violência.
O diagnóstico é irrefutável: o assédio existe no transporte e na vida pública. Se dizemos que as mulheres não podem circular livremente pela cidade, se elas só podem circular onde estão protegidas, quer dizer que a cidade não é pública, não é delas.
Camila Lisboa, metroviária e integrante do Mulheres em Luta
Nós, do Movimento Mulheres em Luta, defendemos a existência de vagões para mulheres, mas não esse do projeto de lei. A Federação Nacional dos Metroviários também tem uma posição favorável aos vagões exclusivos.
Somos favoráveis porque é uma medida de proteção das mulheres. Todos os dias a superlotação e o machismo fazem com que as mulheres sejam submetidas à situações de assédio. Temos claro que não é uma medida que resolve, mas é uma medida que protege. Têm que existir nos horários de pico – e mais de um vagão, pois somos a maioria dos usuários no sistema, cerca de 58%. Tem de ser pelo menos metade dos vagões.
“Temos claro que não é uma medida que resolve, mas é uma medida que protege.”
Não tem nada a ver com culpabilizar a mulher, tem a ver com proteger, tanto que 73% das usuárias, segundo a pesquisa da Folha de S. Paulo, apoiam o vagão exclusivo. Eu preferia viver num mundo em que houvesse transporte público de qualidade, sem superlotação e que houvesse respeito às mulheres. Mas, enquanto a gente vive no que a gente tem, temos que fazer isso. Como fizemos com as cotas raciais: é claro que eu queria universidade para todos e todas, mas enquanto há racismo, precisamos criar condições de igualdade.
Para operacionalizar, temos que garantir espaço para todas as mulheres nos vagões exclusivos. Essa medida sozinha não irá inibir o machismo. Tem que ir além do vagão, são necessárias campanhas visuais, conscientização e agentes que inibam essa prática. Mas eu acredito que os vagões podem dar uma condição melhor para a mulher que vive a realidade do assédio na superlotação. Na nossa opinião é mais importante ser protetiva que educativa.
Juliana de Faria, jornalista, idealizadora do ThinkOlga
Eu sou contra. E posicionei o Olga também contra o projeto de lei. O vagão rosa só reforça o que já mostramos na campanha Chega de Fiu Fiu: as mulheres não tem a mesma liberdade de uso do espaço público que os homens. É como se não tivéssemos direito à cidade. O assédio na rua afasta a mulher de forma sutil e disfarçada, mas com consequências violentas – a nossa pesquisa revela que 90% das 8 mil participantes já deixaram de vestir roupas ou ir à lugares por medo de sofrer assédio. Ou seja, a segregação feminina é uma das consequências dessa violência contra a mulher. E o vagão rosa vem legitimar, vem oficializar essa situação.
O vagão rosa culpabiliza a mulher pelos assédios que recebem. Elas, que representam mais de 50% dos usuários do metrô, são restringidas a um vagão apenas por composição. Não à toa, há tantas comparações entre o vagão rosa e os guetos nazistas, onde judeus eram separados do que era entendido como “população normal”. O vagão rosa também extingue qualquer proposta de punição aos homens assediadores, que é o verdadeiro problema de toda a questão aqui. Já que as mulheres estão separadas em um vagão, tudo indica que eles podem continuar assediando – inclusive aquelas que, por ignorância ou pressa, acabarem não pegando o vagão rosa.
“Não à toa, há tantas comparações entre o vagão rosa e os guetos nazistas, onde judeus eram separados do que era entendido como ‘população normal’.”
Além disso, cito como o vagão rosa problematiza a decisão a ser tomada por mulheres trans*. Elas correm o risco de não serem aceitas como mulheres por seguranças (e até mesmo outras usuárias) despreparadas. Sabe o mais importante de tudo isso? É que temos que combater o vagão rosa sim, mas temos que lembrar que o veto ao PL não é o fim dessa briga por mais segurança no metrô. Temos que reforçar que há alternativas ao vagão rosa. Essa é a parte mais importante dessa discussão.
Uma ação da ASAS distribuiu apitos para mulheres nas estações. Adoraria ver também nas tevês do Metrô, assim como em banners, campanhas permanentes contra o assédio. Eu sei também que o metrô de Nova York colocou seguranças (femininos) disfarçados nos vagões. Atentos, muitas vezes eles enquadram os assediadores antes mesmo das mulheres tomarem qualquer atitude (mesmo porque, em muitos casos, a mulher nem consegue reagir).