publicado dia 15 de maio de 2014
“Uma cidade criativa se reinventa permanentemente para se tornar melhor”
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 15 de maio de 2014
Reportagem: Danilo Mekari
Não é à toa que Ana Carla Fonseca Reis é uma referência internacional quando o assunto é economia criativa. Nos últimos 15 anos, a economista escreveu livros sobre o tema, contribuiu com projetos para empresas, governos e instituições e participou da publicação do relatório da ONU que avalia o impacto da criatividade e da inovação no desenvolvimento dos países.
Com o tempo, a atuação de Ana Carla passou a envolver a questão do espaço urbano e suas potencialidades no campo da criatividade. Tratam-se de locais onde há uma eficiente articulação entre atividades sociais e artísticas, o que possibilita uma efervescência cultural que atrai e retém talentos – além, claro, de criar um ambiente propício ao seu desenvolvimento.
“A cidade criativa é aquela que se reinventa permanentemente para se tornar melhor”, afirma Ana Carla em entrevista ao Portal Aprendiz. Formada em Economia, seu doutorado em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade de São Paulo (USP), propõe a articulação entre cultura, inovação e conectividade para tornar possível um novo modelo de cidade.
Leia a tese de Ana Carla Fonseca sobre Cidades Criativas
Ana Carla defende ainda o envolvimento da comunidade com os espaços públicos, como forma de promover a diversidade e a convivência, gerando engajamento das pessoas com o território. Medellín e Cidade do México, segundo ela, fornecem experiências que atestam a eficácia desse tipo de política.
“Em qualquer intervenção que ocorre de cima pra baixo temos o oposto da participação social – ninguém se envolve e torna-se evidente a falta de conexão entre poder público e sociedade civil, entre governo e cidadão.”
Portal Aprendiz – Como a senhora definiria uma cidade criativa? No Brasil, quais exemplos ou experiências a senhora destacaria?
Ana Carla Fonseca Reis – Trabalho com cidades há muito tempo e há 15 anos, especificamente, com economia criativa. O termo cidade criativa é muito abrangente e não tem uma definição única. Em 2008 fiquei inquieta pelo fato de perceber que urbanistas se referiam a esse termo sem ter a mesma concepção.
Essa cidade é realizável ou é uma utopia? Pensando nisso, reuni acadêmicos, arquitetos, hidrólogos e urbanistas de 18 países nessa agenda de cidade criativa, de lugares tão diversos como Taiwan, Noruega, África do Sul e Colômbia. A ideia era trazer um primeiro olhar sobre a cidade criativa.
Nessa análise de realidades tão distintas, deu pra perceber que uma cidade que se pretende criativa tem três características em comum, que são suficientemente norteadoras mas ao mesmo tempo não são fechadas em si.
A primeira são as inovações em sentido amplo – desde tecnológicas a sociais, novos olhares sobre velhos e novos problemas, perspectivas do mundo em transformação -, uma cidade que se reinventa e coloca sua criatividade em prática para se transformar em um espaço melhor.
Quando as pessoas falam em cidade criativa, imediatamente algumas metrópoles vêm em mente, como Barcelona, Nova York, Berlim, mas são lembradas apenas cidades globais. As vezes, porém, cidades de cinco mil habitantes têm uma efervescência de criatividade incrível. Seja grande ou pequena, global ou não, qualquer cidade pode ser criativa.
A segunda é a cultura, não só pelo ponto de vista de identidade da cidade, como também pelo impacto econômico que ela traz. Seja nas comidas de boteco de Belo Horizonte ou a gastronomia em São Paulo ou os teatros da Broadway, em Nova York, a cultura é uma maneira de ressaltar a singularidade de cada cidade – podemos dizer que é a essência, o espírito da cidade.
A cultura pode gerar um ambiente mais propício para a criatividade, pois ela amplia o horizonte de visão dos habitantes daquele lugar. Não há como inventar uma coisa nova sem conhecer os velhos ingredientes.
Em terceiro lugar estão as conexões, promover o entendimento da cidade como um sistema e não como um arquipélago de bairros. Trazendo a discussão para São Paulo que, mesmo atravessando inúmeras dificuldades, é uma cidade muito inovadora – embora essa faceta nem sempre seja reconhecida.
Na metrópole, a cultura parte de um cidadão que bate uma caixinha de fósforo em um boteco da periferia e segue até a cultura institucionalizada. E existem várias conexões entre público, privado e sociedade civil. Porém, é preciso se perguntar: até que ponto a cidade funciona ao redor do cidadão? No caso da Copa do Mundo, por exemplo, ele é o último a ser ouvido.
Atualmente, Ana Carla Fonseca dirige a empresa Garimpos de Soluções. Entre seus trabalhos relevantes está a criação das plataformas Criaticidades, destinada às cidades criativas, e a já extinta Sampa Criativa, um espaço colaborativo onde cidadãos propuseram mudanças pontuais em São Paulo. A economista será uma das coordenadoras da pós-graduação em Economia Criativa e Cidades da Associação Brasileira de Gestão Cultural, o primeiro curso sobre o tema no Brasil.
Um exercício bacana para se fazer com pessoas que não necessariamente trabalham com cidade é pedir para desenharem o mapa de São Paulo. Saem coisas alucinantes, pois ninguém está acostumado a pensar isso! Nosso mapa mental é reduzido frente ao que é o mapa de fato; o mapa afetivo, então, é menor ainda. Se o meu mapa não bate com o seu, a gente não mora na mesma cidade.
Temos que criar conexões entre as mais diversas áreas para espalhar essa cultura – que só assim se beneficia das inovações – e lançar olhares sobre regiões que não são visíveis para quem não está lá. Temos que promover novas formas de conexão, novas centralidades, organizar atividades culturais de impacto em áreas onde as pessoas normalmente não iriam. É o entendimento da cidade conectada.
Enfim, a cidade criativa é aquela que se reinventa permanentemente para se tornar melhor.
Aprendiz – Quais os impactos desses movimentos criativos na relação das pessoas com os espaços públicos e as cidades?
Ana Carla – Volta e meia temos iniciativas com boa vontade que pecam pela sua implementação, pois pensa-se no produto final e não no processo. Independente da aberração chamada Copa do Mundo, em São Paulo, teremos um estádio na região de Itaquera que vai oferecer uma série de negócios para a população local. Mas o que vai acontecer de fato só saberemos depois.
O que está acontecendo em São Paulo é o pequeno comerciante vendo um disco voador chegando e tirando ele de lá. Quando falamos de megaeventos, os impactos supostamente são positivos, mas na verdade são muito negativos – principalmente porque a população não participou de processo nenhum.
Em qualquer intervenção que ocorre de cima pra baixo temos o oposto da participação social – ninguém se envolve e torna-se evidente a falta de conexão entre poder público e sociedade civil, entre governo e cidadão.
O que vemos é a expulsão da comunidade local, ao contrário do que aconteceu em Medellín, onde ao longo da criação dos Parques Bibliotecas houve uma aproximação do governo com quem morava nas áreas vulneráveis da cidade. Até as crianças acompanhavam as obras, e quando o equipamento foi inaugurado ele era tão de todo mundo que se uma lâmpada quebrasse e não fosse trocada em meia hora todos iam cobrar.
Aprendiz – No contexto brasileiro, qual o papel dos setores culturais e criativos no desenvolvimento sócio-econômico do país?
Ana Carla – Não existe uma consideração homogênea do setor cultural/criativo. Eles são muitos. Feita essa ressalva, quanto mais diversa for a oferta de cultura em uma cidade – pensada para toda a população – melhor.
Temos que considerar não apenas a produção, mas também a distribuição e demanda. Como gerar novos hábitos e possibilidades de demanda? Se alguem está produzindo cultura e não consegue divulgá-la, vai parar de produzir.
Imagine uma criança que nunca foi ao teatro, de qualquer classe social, e ela não entende nada e se sente deslocada. Não vai querer voltar ao teatro. É preciso pegar a pessoa que não tem um hábito cultural desenvolvido e explicar o contexto, explicar o que é aquilo.
Uma coisa que carecemos nas cidades que se pretendem criativas é a noção do contexto, do social, de onde o meu limite ultrapassa o do outro. É preciso resgatar urgentemente esse conceito do coletivo de pessoas.
O espaço público é por excelência isso, um espaço de diversidade e convivência, para conhecer o outro. Mas muitas vezes os nossos espaços públicos são vazios. É preciso gerar a conexão das pessoas com ele, envolver a comunidade com o local. Você passa a usar a cidade entendendo-a. Por exemplo, uma escola pode fazer um passeio no seu entorno explicando o porquê das ruas terem aqueles nomes.
Aprendiz – Qual a contribuição das culturas tradicionais brasileiras nessa discussão?
Ana Carla – Costumo dizer que você não consegue ter uma árvore frondosa se não tiver raízes profundas e galhos que cheguem longe. Só conseguiremos ter uma sociedade bem resolvida se tivermos a cultura tradicional fincada e acesso a uma cultura contemporânea globalizada muito vasta. Nossas cidades e comunidades precisam das duas.
É isso que te dá estrutura pra criar algo novo. História das ruas e dos bairros – não só dos ofícios tradicionais e artísticos, mas também o patrimônio e história do lugar -, esse vínculo com o seu próprio contexto. É o resgate das culturas tradicionais que resgata a cultura dessa cidade.
Em São Paulo, vemos uma cultura agrícola em Parelheiros, ao mesmo tempo que temos inúmeras culturas de imigrantes na cidade – é fundamental haver essa conexão.
Além da sua tese de doutorado, a economista indica outros estudos para quem tiver interesse no tema.
* Economia criativa como estratégia de desenvolvimento (2008)
* Cidades Criativas – Perspectivas (2009)
* Cidades criativas, soluções inventivas – o papel da Copa, das Olimpíadas e dos museus internacionais (2010)
Aprendiz – Como a senhora vê as cidades brasileiras no contexto criativo mundial?
Ana Carla – Temos diferentes possibilidades e posicionamentos. Vemos muito as transformações da cidade de acordo com quem está ali no momento.
São Paulo tem uma necessidade de mudança profunda e vive um dilema, pois há muitas pessoas que não estão a fim de participar dela – pesquisas mostram como grande parte dos habitantes gostaria de sair da capital paulista para outras cidades. Ao mesmo tempo, temos experiências como o SampaCriativa, o SampaPé, inúmeras iniciativas transformadoras.
O que falta é uma articulação e sistematização de tudo isso – fazer com que uma iniciativa bacana possa ser entendida e inspirar uma transformação acolá.
Aprendiz – Do ponto de vista das políticas públicas, quais desafios o Brasil enfrenta na tarefa de estabelecer cidades criativas?
Ana Carla – Pensando no Brasil de modo geral, temos carência de políticas públicas que sejam mais efetivas quando adequadas ao contexto onde estão.
Na Cidade do México, uma iniciativa do governo criou um laboratório para a cidade e lançou um portal onde as pessoas dão sugestões com o compromisso da prefeitura de analisar e retribuir o que o cidadão está propondo. Outra iniciativa, como a plataforma SampaCriativa, levou a cada semana as propostas dos cidadãos. Aqui, porém, jamais houve retorno. Isso aconteceu no México por que perceberam que, para transformar a cidade, é necessário uma política cidadã.
Precisamos de políticas de Estado e não de governo, nem de poder, além de ter os nossos gestores públicos mais capacitados para entenderem os problemas e soluções em sua devida complexidade.