publicado dia 18 de novembro de 2013
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Em um país do tamanho do Brasil, existem clichês gastronômicos espalhados por todas as regiões: o acarajé da Bahia, o virado paulista, o tacacá de Belém do Pará, o pão de queijo mineiro, a moqueca capixaba, o churrasco gaúcho.
Com tamanha diversidade, a cultura gastronômica brasileira vai muito além dos estereótipos que vira-e-mexe a ela são associados. Para a pesquisadora do Núcleo de Estudos em Nutrição, Saúde, Educação e Cultura Alimentar da Universidade de São Paulo (NUSEC), Tainá Khalarje, a relevância desses conhecimentos culinários é tanta que se faz necessária a criação de um setorial dedicado à gastronomia nas Secretarias de Cultura.
“O que vemos hoje é a gastronomia sendo tratada mais como produto turístico do que cultural”, afirma Tainá. Integrante do Instituto Paulo Martins, a pesquisadora ajudou a organizar em setembro a I Conferência Livre de Gastronomia da Amazônia, que levou ao governo propostas de políticas públicas que incentivem o reconhecimento da gastronomia brasileira como cultura, entre elas a inclusão do ensino da cultura alimentar no Ensino Fundamental e Médio e marcos legais para o setor.
“Através da comida, estamos buscando diminuir a intolerância cultural dos processos de colonização da Amazônia”, acredita a pesquisadora, que vê a cozinha da floresta como uma resistência cultural às hegemonias. “Investir em gastronomia significa investir em pesquisa, desenvolvimento social, além de diminuir o distanciamento cultural do próprio país.”
Gastronomia no Morro
Padre Mauro mora há 14 anos no Aglomerado de Santa Lúcia, mais conhecido como Morro do Papagaio, uma comunidade inserida no centro-sul de Belo Horizonte. Lá, é o responsável pelo que considera “uma das primeiras paróquias frequentadas só por favelados”, e também dirige o Muquifu (Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos), localizado no Morro.
O religioso é um dos responsáveis pelo projeto Gastronomia no Morro, que espalhou receitas criadas por cozinheiros da região em renomados restaurantes da capital mineira. “Culturalmente, a cozinha é um dos aspectos mais interessantes dessa comunidade”, afirma Padre Mauro.
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Para ele, a gastronomia é uma das formas de preservar o patrimônio material e imaterial do Morro do Papagaio e as “memórias, histórias e trajetórias” de cada um dos moradores. “Como todo bom mineiro, entrar pela porta da cozinha – mais informal, emotiva e acolhedora – é a melhor forma de conhecer os habitantes do Morro”, explica o padre.
O projeto selecionou 11 cozinheiros da região, além de cinco chefs de restaurantes da cidade, e promoveu troca de experiências – e receitas – entre eles. Desses 11, cinco darão continuidade à iniciativa e farão estágios nos restaurantes. “Um dos mais talentosos cozinheiros é o Deco, que criou o prato galopé, uma mistura de galo com pé de porco”, revela Padre Mauro. Após expor suas receitas, Deco (apelido de Vander Cordeiro) foi contratado pela principal rede de restaurantes de Belo Horizonte e, com isso, criou expectativa na comunidade.
“Antes, nossos vizinhos de classe média alta vinham para a paróquia pedir faxineira. Hoje, o que eles mais procuram são cozinheiras”, admite o padre. “Estamos revelando o que já tínhamos de bom”. O projeto lançou também um livro com receitas criadas pelos cozinheiros do Morro, como o frango com quiabo em pó e o doce de jiló.
A fama culinária de Minas Gerais extrapola as fronteiras brasileiras e é reconhecida internacionalmente. Entretanto, para Padre Mauro, o grande trunfo do Gastronomia no Morro foi quebrar as barreiras existentes na própria cidade. “Já temos fronteiras demais, precisamos criar pontes entre esses dois mundos”.
Kantuta
“Você precisa provar minha saltenha!”, exclama Wilson Campos, um dos expositores da feira da praça Kantuta, que acontece todos os domingos no Pari, região central de São Paulo. A feira reúne imigrantes bolivianos que vendem comidas e artesanatos e atrai cerca de sete mil pessoas por semana. “Do total, 70% são imigrantes latinos”, revela Campos, ex-presidente da Associação Gastronômica Cultural e Folclórica Boliviana Padre Bento.
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Um dos símbolos da Bolívia, a flor Kantuta dá nome à feira latina que acontece há 15 anos na capital paulista. “Em matéria de feiras livres, não existe nada tão grande e com tanta diversidade como a Kantuta”, ressalta Campos, brasileiro casado com uma boliviana de Cochabamba ,que todos os domingos reencontra amigos e parentes do país vizinho. “É um pedacinho da Bolívia na metrópole.”
“Para o imigrante é muito importante estar inserido em uma das maiores cidades do mundo e poder demonstrar sua cultura e seus costumes”, acredita Campos, que prepara a saltenha, um salgado encorpado que leva legumes, frango ou carne. “A comida boliviana é bem apimentada e lembra um pouco a comida nordestina”, compara o feirante. [stextbox id=”custom” caption=”Degusta Alemão” float=”true” align=”right” width=”275″]O Degusta Alemão aconteceu de 2010 a 2012 no Complexo do Alemão (RJ), região conhecida pela condição de vulnerabilidade social. Ao reunir escolas, organizações e comunidade através de uma grande feira, o Degusta Alemão valorizava a cultura regional por meio da gastronomia. Cada escola apresentou receitas desenvolvidas com os estudantes ao longo do ano letivo. Criados de forma lúdica, os quitutes faziam parte do planejamento pedagógico dessas escolas. A partir da feira, estudantes e professores do Ensino Infantil e Fundamental trabalhavam disciplinas como português, matemática, ciências, geografia e história. Clique aqui para ler mais sobre o Degusta Alemão.[/stextbox]
A Kantuta, porém, tem uma importância que vai além do resgate da comida tradicional da Bolívia em outro país: ela promove festas típicas que ajudam a manter viva a experiência cultural desses imigrantes (em 2010, o censo registrou 17.960 bolivianos que vivem em São Paulo; porém, a embaixada boliviana acredita que esse número pode atingir 100 mil, se forem considerados os imigrantes em situação irregular).
Para Campos, é interessante notar que muitos desses bolivianos têm filhos que nasceram no Brasil, mas se sentem parte da terra natal dos pais. “Às vezes essas crianças não conhecem a Bolívia fisicamente, mas sim culturalmente.”
Merenda com o chef
Com o objetivo de melhorar as refeições servidas aos estudantes da rede pública do bairro do Rio Vermelho, em Salvador, o projeto Merenda com o chef leva os profissionais de cozinha para dentro das escolas, onde realizam oficinas gastronômicas com merendeiras, professores e alunos. A ideia é que todos juntos possam criar receitas mais nutritivas com os ingredientes disponíveis.
“Queremos transformar a merenda em uma comida mais humana, mais sustentável. Normalmente, a cantina das escolas reúne alimentos de qualidade nutricional muito baixa”, explica o chef Ramon Simões, do restaurante ecológico Armazém do Reino, um dos participantes do projeto.
No Colégio Estadual Alfredo Magalhães, o chef criou receitas como o escondidinho de soja com mandioca e cuscuz recheado com molho de tomate e parmesão. “Tudo isso com produtos frescos e naturais”, revela ele, que construiu o restaurante com as próprias mãos, utilizando apenas materiais recicláveis.
“A iniciativa permite aproximar a escola da comunidade e levar para dentro dela o conhecimento que essa região tem”, acredita Fernanda Colaço, uma das coordenadoras do projeto. “No caso do Ramon há um trabalho com reaproveitamento dos alimentos. Essa é uma questão discutida por toda a sociedade. É importante que a escola comece a pensar sobre isso e traga essa discussão para as suas práticas”, observa. O chef pretende ainda qualificar tecnicamente as merendeiras – que vivem a rotina desses espaços educativos – e levá-las para dar aulas em outras escolas públicas. “O ambiente da produção da merenda pode se transformar em uma sala de aula”, conclui.
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