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publicado dia 22 de outubro de 2012

Escola em Heliópolis implanta república de alunos

Por Patrícia Gomes, do Porvir.

Quem ouve o prefeito, os secretários e os vereadores falarem não acredita. Explicam em pormenores como tudo funciona, resolvem conflitos, debatem assuntos de interesse de seus pares, escutam suas reivindicações, discutem como encaminhá-las. Em tempos de eleição, daria até para pensar que o grupo é formado por políticos vencedores do primeiro turno já montando suas equipes. Mas não. São alunos com idades entre 10 e 15 anos, eleitos para serem os primeiros gestores da república de crianças recém-constituída na Emef Presidente Campos Salles, escola pública localizada em Heliópolis, segunda maior favela de São Paulo, que se inspirou na Escola da Ponte para adotar um modelo de educação democrática.

Na república da Campos Salles, as crianças eleitas têm poder de decisão, inclusive em assuntos que os alunos nem sempre são benvindos, como questões administrativas e regras gerais de funcionamento da escola. E o que eles decidem, se for viável, tem poder de lei. A escola tem um prefeito, Wilas de Arruda,15, e quatro secretários responsáveis pelas áreas de Cultura e Esporte, Comunicação, Convivência e Diversidade, Saúde e Meio Ambiente. Além de cerca de 30 vereadores e suplentes. Todos responsáveis por se envolver na gestão de uma escola com 1.100 alunos de ensino fundamental.

A primeira ação dos vereadores foi a elaboração de três espaços para, segundo os próprios pequenos gestores, “dar mais voz aos alunos”, a árvore de sonhos, o muro das lamentações, a caixa de sugestões. Por enquanto, só a árvore de sonhos ficou pronta – os vereadores e o prefeito colheram galhos pelo terreno da escola e terminaram a confecção ontem mesmo. Nela, os alunos devem pendurar seus desejos, algo que gostariam de alcançar – e aí vale qualquer coisa, desde uma aula diferente que têm vontade de ter até um bem coletivo para a escola. “Se alguém quiser sugerir a cobertura da quadra, por exemplo, é só escrever na árvore que nós vamos discutir para ver se dá para fazer”, explica Jackson da Silva, 11, secretário da Cultura e do Esporte.

A república das crianças não é um contexto isolado de participação dos alunos na Campos Salles. Desde 2005, a escola vem adotando processos de ensino que buscam empoderar as crianças e compartilhar com elas a responsabilidade de gerir a escola. Quem capitaneia o modelo, chamado pelos professores apenas de “projeto”, é o diretor Braz Nogueira, à frente da escola há 17 anos. Para entender como foi a implantação da educação democrática, no entanto, é preciso voltar no tempo. “Hoje a escola está muito diferente. Duas horas depois de eu chegar, em 1995, eu coloquei as mãos na cabeça e perguntei: ‘o que eu estou fazendo aqui?’”, conta o diretor.

Escola da comunidade

A época era outra, diz Braz. Heliópolis convivia com a violência, as chacinas eram recorrentes e os traficantes haviam imposto um toque de recolher. Foi uma tragédia, o assassinato de uma aluna do turno da noite nas imediações da escola na saída da aula que fez tudo começar a mudar, lembra o diretor. “Aquela morte me revoltou. Eu percebi que nós estávamos sendo omissos.” Ainda no velório, ele começou a conversar com professores e lideranças locais para convencê-los de que era preciso fazer alguma coisa.  “A gente não podia mais aceitar a banalização da violência”, diz o diretor, que convocou uma caminhada pela paz nas ruas favela. O movimento começou pequeno, mas, ano após ano, foi ganhando força e trazendo a comunidade para dentro da escola.

Nos anos que se seguiram, do fim da década de 90 ao início dos anos 2000, a Campos Salles passou a consolidar sua boa relação com o entorno e foi se tornando um modelo. Em 2002, conta Braz, outro episódio colocou essa relação à prova. Cerca de 20 computadores novos foram roubados de dentro da escola. “Saí pelas ruas e pelos bares de Heliópolis dizendo: não foi a escola que foi roubada. Foram seus filhos!”, lembra. Dias depois, ele foi abordado por alguns rapazes que disseram que devolveriam os computadores na rua de trás da escola. Dito e feito. Recuperou os computadores.

O projeto

A boa relação com a comunidade, porém, ainda não se refletia na relação entre alunos e professores. “O estudante ainda não era visto como um ser integral, capaz”, lamentava Braz, que fazia uma pós-graduação e resolveu, como projeto final, adaptar e implantar as ideias da Escola da Ponte na Campos Salles. “Lá eles tinham 180 alunos e era turno integral. Aqui tínhamos mais de mil e quatro turnos. E se o caos se instalasse?”, temia Braz, que foi buscar ajuda na Emef Desembargador Amorim Lima, escola da mesma rede e que já adotava a metodologia. Nos anos de 2006 e 2007, a escola começou a mudar a sua abordagem pedagógica.

Em vez da sala de aula clássica, as turmas passaram a ser divididas em grupos. No lugar da aula expositiva, as atividades seguiam um roteiro de estudo, em que os próprios alunos deveriam buscar informações e construir seu aprendizado. O Ideb da escola aumentou, tudo ia bem, mas elas ainda estavam lá: as paredes. “No final de 2007, chamei m grupo de professores e perguntei se eles apoiavam que eu tirasse as paredes das salas. Eles disseram que sim. Quando voltaram, no outro ano letivo, eu tinha derrubado tudo.”

Braz transformou as salas de aula das mesmas séries em quatro grandes salões, cada um com mais de cem alunos, que sentam em grupos de até quatro pessoas. Os roteiros de todas as disciplinas são entregues, em média, uma vez por mês. O professor da disciplina faz uma orientação específica e deixa os roteiros com os alunos, que vão cumprindo as atividades na ordem que acham melhor. Quando têm dúvida, procuram os colegas do grupo ou os professores – ficam, pelo menos três por salão – para tirar as dúvidas.

Mas e se não tiver um professor da disciplina que os alunos estão com dúvida? “É exatamente isso que faz o projeto ser revolucionário”, diz o diretor. “Todos os professores devem saber o que os colegas estão trabalhando em seus roteiros. Se não souberem, têm que buscar a resposta ou com os colegas ou com alunos do salão que tenham solucionado o problema.” Com mais autonomia, os estudantes são estimulados a descobrirem o que gostam mais de fazer, a entenderem seus sonhos. “Antes, a gente perguntava para os alunos o que eles queriam ser e eles não sabiam. Hoje, todo mundo tem um sonho e sabe qual ele é”, afirma o diretor.

O formato, claro, causou estranheza no início e até hoje tem quem goste e se adapte e tem quem não goste, sejam alunos e professores. “Aqui está nascendo um novo professor e um novo aluno. Mas todo parto é doloroso”, diz Braz, que já poderia estar aposentado há quatro anos, mas segue no comando da escola.

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