publicado dia 17 de setembro de 2018
Direitos humanos e por que a Constituição deve ser um guia para o debate eleitoral
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 17 de setembro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
Em seus primeiros meses de governo, Michel Temer propôs uma Emenda Constitucional – alteração em determinada parte textual da Constituição – que abalou uma já trêmula democracia pós-impeachment: a Emenda Constitucional 95, que limitou os gastos públicos nas áreas sociais como Educação e Saúde à inflação pelos próximos 20 anos.
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Vista como retrocesso social por especialistas e movimentos sociais, a medida já surte efeitos: a União investiu apenas ? do valor que deveria na área de Saúde. Já em Educação, houve redução de 32% nos investimentos no Ministério da Educação (MEC) em relação ao ano passado, o que compromete as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE).
“Me chama atenção que exatamente no aniversário de 30 anos da Constituição de 88, estejamos vivendo um momento político que coloca em cheque várias das conquistas documentadas nela”, opina Rafael Custódio, coordenador do programa de Violência Institucional da organização Conectas.
Essa reportagem integra o especial 30 anos da Constituição Cidadã – série de matérias que analisa os trinta anos da Constituição Federal de 1988 e a relaciona com a manutenção da democracia brasileira, especialmente, nas áreas de educação, território e participação social.
“Se houve avanço na manutenção da democracia nos últimos 30 anos, nos últimos quatro, vivemos uma crise inédita, que culmina em uma eleição com candidaturas explicitamente contrárias à garantia de direitos humanos”, acrescenta.
Para Dimitri Dimoulis, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FVG), embora haja divergências nos pareceres quanto à inconstitucionalidade da EC 95, o que é pernicioso é o ineditismo da emenda e como ela abre brechas para perda da identidade constitucional.
“Tivemos um período de 30 anos no qual governos eram mais ou menos atuantes no que se refere a investimentos sociais, mas nunca um governo fez como o de Temer, que mexeu no equilíbrio constitucional tirando a vinculação orçamentária”, explica.
Apesar de redigida a muitas mãos – foram cerca de 60 mil projetos de lei analisados e mais de 2 mil organizações da sociedade civil ouvidas – a Constituição de 88 apresenta fragilidades que permitem emendas graves e ameaçam seus próprios artigos. Isto porque sua construção foi realizada a partir de uma conciliação de poderes e disputas.
Se houve avanço na manutenção da democracia nos últimos 30 anos, vivemos uma crise inédita, que culmina em uma eleição com candidaturas explicitamente contrárias à garantia de direitos humanos
“Houve uma espécie de conciliação de interesses entre os novos protagonistas – os oposicionistas, que se destacaram no combate à ditadura militar, e os que estavam no poder ditatorial. Os setores mais conservadores impuseram capítulos para a preservação da ordem. Que ordem? A ordem dos dominantes. Por isso, chamo-a de Constituição meio cidadã”, explica o historiador e professor Mário Sérgio de Moraes, autor do livro “50 Anos Construindo a Democracia“.
Logo, a própria noção de cidadão que predomina na Carta Magna é excludente. Segundo o texto, deve gozar de direitos constitucionais a pessoa que paga impostos, que tem emprego, um sujeito com família e endereço. “A cidadania que a Constituição de 1988 formou é uma cidadania da classe média para cima, não para os fragilizados”, diz Mário Sérgio.
Como resultado, há a perda e enfraquecimento contínuos dos direitos das minorias histórica e socialmente prejudicadas, como as mulheres, os negros, as populações LGBT e tradicionais. Para Mário, se houve toda uma preocupação legislativa em evitar a violência de Estado escancarada no regime militar, isso não se efetivou na prática: as vítimas agora têm outros nomes e o Estado opera com outros mecanismos.
“A ideologia da segurança nacional, a mola mestra da ditadura, ainda existe e escolhe seus inimigos. Se naquele tempo era o comunista, hoje é também quem é novo, pobre, negro, imigrante”.
Entre os casos recentes mais emblemáticos desta violência seletiva estão a execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, que há seis meses continua impune, e a intervenção federal no Rio de Janeiro, cuja eficácia se questiona. “Se mata mais agora do que se matou no período militar. Nós não temos mais um Vladmir Herzog, agora são 10 mil.”
Se o Brasil, nos últimos anos, pareceu viver um estremecimento institucional, político e econômico, o quadro tende a se acirrar às vésperas de uma eleição polarizada.
“Há uma descrença na política e, consequentemente, em seus instrumentos, que são as instituições, o parlamento, a sociedade jurídica e suas leis. Estamos vivendo uma democracia desequilibrada: um executivo, cujo presidente tem pouco apoio, um legislativo do qual a população é descrente”, reflete Sérgio Haddad, economista e um dos fundadores da organização Ação Educativa. “Se existe um desequilíbrio entre os três poderes, a democracia passa a se enfraquecer”, acrescenta.
O enfraquecimento das instituições abre precedentes para a descrença de que o Estado e as políticas públicas sejam o suficiente no combate às desigualdades
Esse declínio abre precedentes para uma profunda descrença de que o Estado e as políticas públicas sejam o suficiente no combate às desigualdades. Começa a se popularizar a busca pela “privatização do direito”, como Mário Sérgio define a recente onda de privatizações que assolam os mais diversos setores do país.
“A transformação do direito em serviço é perigosa, porque diz: se eu quero ter saúde, tenho que pagar. Se eu quero escola, tenho que pagar. Se eu quero ter segurança, tenho que adquirir uma arma. Se eu quero acesso ao espaço público, não pode, porque ele vai ser privado”, diz.
Complementando a opinião do historiador, Sérgio Haddad acredita que a privatização é o ápice da descrença na democracia enquanto regime político eficaz. “Isso encontra eco também em como o indivíduo se enxerga e enxerga o outro: cada um faz o que é melhor para si. Assim, temos pais que resolvem tirar os filhos da escola para educar em casa, ou propostas políticas que acreditam que armar a população resolve o problema da segurança pública.”
Para Dimitri, quando a Constituição foi criada em 1988, ela foi a aposta mais profunda do povo brasileiro na democracia. “Ela é muito clara no fato de que acredita no Estado, considerando-o capaz de ter os recursos financeiros para cumprir esse papel. Mais do que isso, a Constituição tem uma crença de que sem o Estado, vamos voltar atrás no que concerne ao desenvolvimento do País.”
Tida como período de exercício mais visível de democracia, as eleições deste ano expõem diferentes projetos de país para o futuro. O que chama a atenção dos especialistas é que, para além de projetos democráticos de país, há candidaturas que se lançam explicitamente contra os direitos humanos.
“Há projetos mais progressistas, alinhados com a defesa de direito e cidadania, reforçando direitos sociais e ambientais, que pensam a desigualdade como valor a ser combatido e que a democracia ainda é a forma mais importante de construir essa mudança social”, expõe Sérgio. “E você também tem um setor mais conservador, onde a democracia não é um valor tão significativo para se pensar mudança social, onde se pede menos Estado, mais mercado, e mais presença do privado.”
Essas propostas não são alheias à população. Se há uma ascensão de ideias conservadoras nessa eleição, é porque encontram eco. “A nossa sociedade é conservadora: 48% da sociedade brasileira defende tortura. E quando há candidatos que a defendem abertamente – algo que em qualquer país democrático seria considerado crime – você percebe a gravidade da naturalização da violência”, endossa Mário Sérgio, que correlaciona essa naturalização com a não superação e com a pouca memória da história colonial, escravocrata e genocida do País.
Nesta perspectiva, a Constituição de 1988 é um horizonte para se analisar as propostas políticas dos candidatos. “Muitas propostas em debate são retomadas de elementos que a própria Constituição já garante. Se um político fala ‘eu vou construir escolas’, o que ele está dizendo é “eu vou dar conta de cumprir essa parte da Constituição”. A política não é uma arena vazia, onde cada um traz sua bagagem. A Constituição já estruturou esse debate e faz suas exigências”, defende Dimitri.
O professor ainda complementa: “A pergunta básica que devemos fazer é: quando o candidato diz a, b, ou c, ele está de acordo ou não com a Constituição? Não estamos aqui para começar do zero nessa eleição ou nas próximas. Estamos aqui para dar continuidade a um projeto coletivo que já existe”, finaliza.