publicado dia 21 de novembro de 2019
Planejamento urbano e espaços públicos: parques como ferramentas de transformação
Reportagem: Redação
publicado dia 21 de novembro de 2019
Reportagem: Redação
No século XXI a gestão inteligente das cidades será um dos fatores mais influentes no desenvolvimento econômico. Questões sobre como serão confrontados os desafios na área da habitação, saneamento, democracia, educação, segurança, desenvolvimento econômico e qualidade de vida, serão as principais pautas dos gestores.
Para isso é importante uma compreensão da cidade sob um olhar mais complexo e integrador, em diferentes escalas, permitindo que as políticas públicas possam nascer de uma visão global da cidade, com planejamento para curto, médio e longo prazo, resultando em ações de ponta, atendendo às demandas mais diretas e diárias do cidadão.
Com autoria de Ana Paula Wickert, este artigo foi publicado originalmente no Archdaily
Esse olhar sobre a cidade exige uma maneira diferente de planejar e projetar o futuro e o presente.
Espaços públicos vibrantes e inclusivos, com lazer, cultura e esporte configuram pontos nodais de uma política que pensa em devolver ao cidadão o direito à cidade. Através de uma mudança na forma de planejar a cidade é possível melhorar diversos aspectos de sustentabilidade e qualidade de vida.
Leia+: Espaços Públicos: 10 princípios para conectar as pessoas e a rua
Os espaços públicos são elementos configuradores da paisagem urbana e desde a antiguidade são presenças reveladoras na paisagem urbana. Obviamente, na história da civilização, cada época estabeleceu diferentes relações com estes espaços, mas, inegavelmente, enquanto seres políticos, os espaços públicos ocupam lugar central na configuração da condição humana.
Na atualidade, as relações entre o ser humano e os espaços públicos vêm tomando proporções muito mais complexas do que em qualquer outro período da história. Praças e parques possuem um intenso caráter social e político, e suas nuances vão muito além, incorporando questões de saúde física e mental, mobilidade urbana, sustentabilidade entre outras.
A estruturação dos espaços públicos garante qualidade de vida e melhora dos índices de desenvolvimento humano, segurança e saúde. Porém, para que os projetos implementados sejam efetivamente transformadores da realidade, é preciso compreender o que é vida pública, como analisar o espaço e como propor soluções eficazes e com viabilidade econômica, e, especialmente, como planejar e inserir esse tema em uma política que perpasse as gestões individuais e tenham continuidade no tempo.
A realidade das cidades brasileiras pode ser um tanto hostil quando se trata de planejamento integrado, sendo que um dos principais motivos que colaboram para isso está no número reduzido de profissionais no corpo técnico das gestões públicas, bem como a dificuldade na geração e interpretação de dados geopolíticos e socioeconômicos para o planejamento e projetos urbanos.
Saiba também: Playable City abre a cidade para o brincar
Não falo aqui das grandes cidades e metrópoles brasileiras com seus institutos de planejamento que são referencias internacionais, como Curitiba, São Paulo, entre outras. Refiro a problemática das centenas de cidades médias e pequenas que por vezes tampouco possuem arquitetos urbanistas em seus corpos técnicos.
O enfrentamento da implantação de uma política pública onde a estruturação de áreas de esporte e lazer, mobilidade ativa (ciclovia e calçadas), arborização e saneamento deve partir da profissionalização dos quadros técnicos dos municípios, quer seja através da formação e atualização das equipes, quer seja do seu empoderamento frente às demandas urbanísticas.
Tendo um quadro pensante autônomo, com poder de definir um planejamento baseado na participação popular e na análise da realidade local, da legislação federal e das possibilidade financeiras, os municípios conseguirão enfrentar essa questão com mais força, obtendo assim resultados efetivos.
Exemplifico neste artigo o trabalho realizado em Passo Fundo, Rio Grande do Sul. A partir de um programa financiado pelo Banco Inteamericano de Desenvolvimento, desenvolveu-se o plano de estruturação dos espaços uso público e áreas livres (PEEUEL), que apontou áreas para investimentos prioritários e ações a curto, médio e longo prazo, buscando qualificar os espaços públicos da cidade e ampliar as oportunidade de acesso da população às áreas verdes. O plano considerou a análise das áreas públicas como um todo, incluindo equipamentos de educação, cultura, saúde, lazer e áreas verdes. De posse dos dados espacializados e sistematizados, uma das definições prioritárias foi a ampliação da oferta de parques públicos e áreas verdes estruturadas em diferentes bairros da cidade.
Para executar essa diretriz a gestão investiu em duas linhas principais: a estruturação de áreas que já eram de propriedade da municipalidade, porém que estavam ociosas ou mal estruturadas; e a exigência de que as novas áreas verdes doadas ao município por empreendedores em novos loteamentos fossem entregues estruturadas, cumprindo assim seu papel social e desonerando o poder público dos investimentos para sua estruturação.
Com essas diretrizes, em 5 anos foi possível implantar efetivamente 6 novos parques computando uma área de aproximadamente 210.000m2 de novos parques urbanos. Passo Fundo atualmente possui 200 mil habitantes, e desta forma essas intervenções foram efetivamente transformadoras da realidade.
A mudança de paradigmas na construção da cidade vem transformando as relações sociais e o uso da cidade por parte dos cidadãos. Cada parque foi projetado e pensado a partir das peculiaridades do bairro e da área verde em si, resultando em espaços diversos e vivazes que atraem centenas de visitantes a cada dia.
Entre os parque implantados quatro foram realizados pelo poder público. Os Parques Lineares do Sétimo Céu e Avenida Brasil tiveram como principal investimento a construção de ciclovias e espaços de caminhadas, pois se tratam de áreas verdes ao longo de avenidas, garantindo assim o uso diário para esporte, lazer e mobilidade.
O Parque Banhado da Vergueiro é uma área de interesse ambiental, localizada próximo ao centro da cidade, e que estava abandonada e usada como área de descarte de lixo. Sua estruturação envolveu ONGs e o Ministério Público, em amplo processo de definição das estratégias ideais para preservar o meio ambiente e revitalizar a área. O projeto, com características de parque ambiental, além de preservar a fauna e flora nativas, hoje recebe milhares de alunos das escolas públicas e privadas para em um programa de educação ambiental que aborda questões sobre preservação da água, bioma de banhado.
O Parque da Gare, de reconhecimento internacional, foi a principal intervenção da gestão e contou com financiamento do BID. Neste parque de 55.000m2, estruturado na área histórica da antiga rede ferroviária, a estratégia foi buscar uma variedade de equipamentos que garantisse o uso continuado do espaço, buscando assim maior segurança, vivacidade e atratividade.
O parque conta com equipamentos de esporte como quadra esportiva, pista de bicicleta, pista de skate, caminhada e ciclovia; mas também com alguns equipamentos como a Feira do Produtor de agricultura familiar; Prisma Estação da Cultura, espaço de tecnologias e multimeios para leitura e games; Complexo Gastronômico e Cultural, implantado na edificação da histórica da antiga estação férrea. Além destas áreas o parque conta com um espaço de shows e feiras, brinquedos, academia ao ar livre e áreas de preservação com 5 nascentes e um lago.
Em relação aos parques em área verdes doadas a municipalidade em projetos de parcelamento do solo pela iniciativa privada, ambos estão localizados em bairros de interesse social e contam com quadras esportivas e áreas de lazer e convívio, e desde já estão sendo utilizados, antes mesmo da ocupação dos novos loteamentos que lhes deram origem.
Para garantir o sucesso das áreas verdes outras questões são fundamentais e foram pensadas em paralelo à implantação da infra estrutura. As secretarias municipais de educação, cultura, meio ambiente, esporte e gabinete desenvolvem programas continuados que fomentam o uso dos parques, além de apoiarem eventos organizados pela sociedade e entidades. Os programas de uso e apropriação do espaço são tão ou mais importantes que a própria estruturação em si. Convidar a comunidade constantemente para o uso do espaço urbano é a chave do sucesso destes projetos.
Leia+: Soledade (RS) se torna Cidade Educadora com parceria entre universidade e território
Em Passo Fundo podem ser citados o edital de arte urbana, onde artistas receberam incentivo financeiro para propor obras de arte nos parques; música na praça e esporte na praça, contando com agenda itinerante de shows e aulas ou competições nos espaços públicos; programa Passo Fundo vai de Bici, com a implantação de sistema de bicicleta compartilhada nos parques, programa de educação ambiental para alunos do ensino infantil e fundamental com visita guiada no Parque Banhado da Vergueiro.
As ações econômicas também são fundamentais nos parques como a Feira do Produtor e Complexo Gastronômico, pois garantem, através de uma atividade econômica, a utilização do espaço por centenas de pessoas, além de gerar emprego e renda. A Feira do Produtor já possuía uma história de 30 anos no entorno do parque e possui atualmente a concessão da nova edificação construída especificamente para este fim. Já o complexo gastronômico foi concedido à iniciativa privada através de uma chamada pública.
A estruturação de um sistema de parques na cidade resultou ser efetiva na transformação social, mudando o comportamento dos cidadãos em relação ao uso e convívio no espaço público, fato comprovado pela observação de milhares de pessoas nestas áreas nos finais de semana, que antes passavam seu tempo com outra atividade diversa.
Além das áreas já estruturadas, já está em andamento o projeto de corredores verdes, que irão conectar os parques a partir de ciclovias, calçadas alargadas e vegetação, criando uma rota verde e acessível entre as áreas estruturadas, bem como a criação do primeiro bairro parque da cidade, em área já consolidada, originalmente um bairro de habitação popular e que atualmente conta com 45.000m2 de área verde passível de estruturação e que já está em projeto.
No desenvolvimento do novo plano diretor, que iniciou em 2018, nas audiências públicas realizadas nas comunidades, a grande solicitação foi a garantia de áreas de lazer e praças em cada bairro. Desta forma a política deverá ter continuidade na nova legislação, buscando que cada cidadão possa ter acesso facilitado à uma área verde no seu dia a dia.
Inserir os projetos de requalificação urbana no planejamento urbano é uma forma de garantir que os projetos tenham continuidade e que atendam um maior numero de comunidades no território urbano. Destaca-se também que além de investir na estruturação dos espaços, é fundamental que se reservem recursos para sua manutenção constante, segurança e, principalmente, que se implantem programa de usos do espaço público.
O poder público deve atuar como um catalizador dessas ações sociais e comunitárias no espaço público, apoiado por ONGs, instituições de ensino, coletivos e outro que movimentam a sociedade e trazem vida para os espaços públicos. Essa ação conjunta entre gestão pública e sociedade é fundamental para garantir o êxito das intervenções e sua continuidade na cidade.
___
Ana Paula Wickert: arquiteta e urbanista, com mestrado em arquitetura pela UFBA. Secretária de planejamento de Passo Fundo desde 2013, professora na Universidade de Passo Fundo. Autora de livros e artigos sobre o tema de patrimônio e cidades, também foi coordenadora executiva do Programa de Desenvolvimento Integrado BID Passo Fundo. Consultora e palestrante.