publicado dia 13 de setembro de 2019
Direito à Cidade LGBT+: a ocupação do espaço público pelas diversas afetividades
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 13 de setembro de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
Lançado recentemente, o GayCities, um dos mais conhecidos guias de turismo para LGBTs+, colocou o Brasil como um dos cinco países a ser evitado.
Além de listar como razão a ascensão de um presidente abertamente homofóbico, questões como violência, preconceito e até descaso com o meio ambiente figuraram como motivos para não visitação.
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Para as lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros brasileiros, a violência de não poder ser quem se é nos espaços públicos é parte do cotidiano na maioria das cidades: segundo dados do Grupo Gay da Bahia disponibilizados em 2019, somente este ano 141 pessoas foram mortas no Brasil por sua orientação sexual e seu gênero.
“O Brasil nunca foi um país seguro para população LGBT+. Embora haja uma subnotificação de dados, sabemos que a cada 16 horas uma pessoa sofre violência LGBTfóbica – não é à toa que LGBTFobia foi criminalizada pelo STF”, conta Rodrigo Faria G. Iacovini, coordenador-executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e assessor do Instituto Pólis. “Somos uma sociedade conservadora, reacionária e com alta intolerância à diferença.”
Ruas, praças e outros espaços públicos funcionam como termômetro dessa hostilidade. Segundo a pesquisa “Violência contra LGBT+ no contexto eleitoral e pós-eleitoral”, do portal Gênero e Número, 83% dos episódios de violência que ocorreram antes e após as eleições de 2018 foram nas ruas.
“É quando se vai para o âmbito público que o LGBT+ se sente mais vulnerável e fragilizado, conseguindo perceber esse clima político hostil. E mesmo quando não há nenhuma ameaça, você já não aproveita a cidade porque fica em alerta constante.”
O também integrante do IBDU Gilson Santiago Macedo Júnior é autor do artigo “Isto é um lugar de respeito! : A Construção Heteronormativa da Cidade-Armário através da invisibilidade e violência no cotidiano urbano“. Nele, o graduando em Direito explica como a cidade encapsula experiências homoafetivas obrigando-as, seja pela violência, censura ou olhar moral e religioso, a existir somente em âmbitos privados.
“A cidade é um espaço de disputa política. E dentro dessa perspectiva o conceito de cidade-armário surge como expressão da interdição de espaços urbanos a partir de uma lógica de produção de sexualidades e identidades. A construção discursiva desses espaços se dá reforçada pelos campos político e religioso, de modo que determinadas condutas afetivas só são aceitas em lugares fechados. O velho discurso: ‘Tudo bem, desde que seja entre quatro paredes’”, o autor detalha.
Essa interdição afeta mental e fisicamente o direito à cidade LGBT+, com uma população que se vê obrigada a esconder suas afetividades se quiser aproveitar a cidade:
“Pense num relacionamento que vive só entre quatro paredes. Quanto tempo ele se sustenta? Nossa vida é grande parte pública e depende do trânsito em espaço público. Você não é gay em casa e vira hétero na rua. A possibilidade de vivência na cidade é também a possibilidade de se viver o que é. E isso não existe no Brasil”, complementa Rodrigo.
A coibição de se viver plenamente a malha urbana é agravada quando se faz um recorte social e racial. “Quando se é lésbica, negra e de periferia, não se tem acesso à serviços centrais como espaços de cidadania, centros de diversidade, e pouca informação se recebe sobre quais lugares públicos oferecem segurança”, relata Fernanda Gomes de Almeida, membra da Coletiva Luana Barbosa que acolhe mulheres e discute perspectivas de direito à cidade para população lésbica, bissexual, negra e periférica de São Paulo.
Foi frente à necessidade de criação de espaços de acolhimento e de vivência plena da sua orientação sexual que as mulheres da Coletiva Luana Barbosa criaram a festa Sarrada no Brejo, dedicada exclusivamente à mulheres e que ocorre esporadicamente no centro da capital paulista.
“É uma festa onde mulheres conseguem ir e sentir à vontade. Por meio da cultura nós mulheres ocupamos o espaço público e mostramos quem realmente somos. A periferia é de fato nosso lugar, mas isso não significa que a gente não possa acessar o centro da cidade. A festa surge para que nós mulheres sintamos que a cidade nos pertence.”
Rodrigo endossa essa experiência com a ocupação do Largo do Arouche, também em São Paulo, pelo Coletivo Arouchianos. O lugar central congrega comércio afável à diversidade LGBT+ e um vasto espaço público onde acontecem festas e ações afirmativas.
“É possível existirem políticas públicas que transformem as cidades em lugares mais seguros e inclusivos. E isso acontece a partir do momento em que se promove a diversidade enquanto valor. Atualmente a prefeitura está com um processo gentrificador na região do Largo do Arouche que tem como pano de fundo a higienização e retirada da população LGBT+. Se ao invés disso a prefeitura promovesse um espaço de consolidação e segurança, aos poucos se mostraria para o resto da população que aquela forma de amor é legítima.”
Isso também se dá nas construções arquitetônicas: espaços abertos e convidativos em diversos pontos da cidade, com ações culturais afirmativas, expandem a malha de noções afetivas de quem os percorre. A construção das habitações deve levar em conta diferentes arranjos familiares e moradias populares para populações vulneráveis, como é o caso dos e das trans.
“O Edifício Copan, por exemplo, é conhecido por ter uma diversidade de moradores. Ele tem diferentes plantas e arranjos de diversos tamanhos para as diferentes rendas. Ao mesmo tempo, ele tem um terreno comercial que é aberto à diferentes possibilidades e pessoas que transitam nele. A cidade entra no Copan e o Copan entra na cidade. Essa permeabilidade entre espaço público e privado facilita a diversidade e a consolidação de novas formas de viver e amar.”
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Para que isso ocorra, Rodrigo relembra que é requisito constitucional das políticas públicas urbanas que diferentes grupos atuem em sua elaboração: “A participação não é simplesmente colocar todo mundo numa sala. É ter método, debate, e fazer recorte com grupos específicos. Você precisa ouvir a população LGBT+ e saber de suas demandas do dia a dia.”
A construção de um Direito à Cidade LGBT+ é, por fim, a construção de uma cidade mais segura para toda população, como finaliza o urbanista: “Ao construir cidades justas e inclusivas para pessoas LGBT você está construindo cidades justas para todas as pessoas, impactando e combatendo diferentes discriminações. Direito à cidade é coletivo. Individualmente você não consegue alcançar. Ele só é possível quando ele é coletivamente reivindicado.”