publicado dia 19 de agosto de 2019
Machado de Assis negro e a escrita como capoeira literária
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 19 de agosto de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
Nas primeiras páginas de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), livro escrito por Machado de Assis, uma personagem exclama “Todos nós havemos de morrer; basta estarmos vivos”. Embora o aforismo esteja correto, não é exagero dizer que o autor de figuras como a Capitu de olhos oblíquos, Helena do espírito indomável ou Bentinho da melancólica desconfiança foi contra a ordem natural das coisas e desafiou a morte – pelo menos a literária. O escritor carioca completa 180 anos, em 2018, e sua obra e pessoa nunca foram tão revisitadas.
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Parte desse furor biográfico e bibliográfico advém de movimentos de reconhecimento da negritude do escritor carioca, nascido em 1839. A Faculdade Zumbi dos Palmares lançou a campanha Machado de Assis Real, pedindo a editoras e livrarias que imprimam na contracapa de obras como Dom Casmurro (1899) ou Quincas Bordas (1891) a foto real de Machado: um homem de tez escura e traços afrodescendentes.
“Machado precisou, para se afirmar enquanto homem negro, mostrar o seu talento como homem de letras”, explica Eduardo Duarte de Assis, doutor em literatura e especialista na obra do escritor. “E isso ele fez isso com sobra, a ponto do crítico Harold Bloom em 2003 chamar Machado de Assis do maior escritor negro da história da humanidade. O que isso deu de incômodo na universidade brasileira, no racismo institucional presente na academia e em muitos outros setores da sociedade brasileira foi inimaginável.”
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Eduardo, que é autor do livro Machado de Assis Afro-descendente, desde 2009 levanta a bandeira desse escritor decididamente negro e que abordava a negritude, as relações de poder na República e nas cidades por meio de uma capoeira literária:Foi esse mesmo racismo institucional que embranqueceu Machado de Assis, tanto em seu acervo imagético quando bibliográfico. Por exemplo, o diplomata Joaquim Nabuco, respondendo ao escritor Érico Veríssimo pouco depois da morte do escritor em 1908, diz: “O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava: quando houvesse sangue estranho nada a sua perfeita caracterização caucásica.”
“Ele faz o jogo da capoeira, é um capoeirista das palavra. Ele não fazia discursos panfletários para os brancos, que eram quem os lia na época, e sim um discurso sinuoso em que os brancos e outros senhores de pessoas escravizadas são reduzidos a pó.”
O Portal Aprendiz convidou o escritor, que está reeditando a obra para lançar uma terceira versão em novembro deste ano, para falar de Machado da perspectiva não somente como escritor negro como também de agudo observador das relações de poder e da cidade:
Portal Aprendiz: Eduardo, porque você a começou a escrever o livro Machado de Assis – Afro-descendente?
Eduardo Duarte de Assis: O livro é resultado de uma série de discussões na vida e na universidade em que eu apresentava a ligação do Machado de Assis com o combate à escravidão. Eu falava ‘Gente, mas o Machado não se omitiu. Machado não se embranqueceu, ele era sócio do principal e francamente abolicionista Gazeta de Notícias’.
Ainda assim as pessoas ficavam descrentes. Então, fui recolhendo crônicas, poemas, trechos e cenas dos romances. O resultado: um livro de 300 páginas, que mostra decididamente um Machado de Assis negro – ou um homem de cor, como se falava na sua época de vivência.
Machado nunca se considerou um branco. Ele nunca bateu no peito e disse ‘sou branco’. Mas também nunca bateu no peito e disse ‘sou negro’. Ele nunca subiu em tribuna nenhuma para defender a abolição, até porque ele era gago e epilético. Mas o que ele escreve é mais contundente do que qualquer discurso feito em palanque.
Portal Aprendiz: Você pode elencar trechos de suas obras que explicitem isso?
Eduardo: Machado de Assis mata todos os senhores de pessoas escravizadas em seus romances. O mais conhecido é Brás Cubas, que ele mata e não enterra. Em um outro romance, Memorial de Aires (1908), ele mata o senhor de pessoas escravizadas três semanas depois da declaração da abolição. O Barão Santa-pia vai para o Rio de Janeiro, fica sabendo da abolição e diz: “Eu vou alforriar todo mundo e quero ver quem vai embora”. Ele volta para a fazenda, liberta todo mundo e afirma “Eles vão trabalhar para mim só pelo prazer de ser enterrados onde nasceram”. Eu nunca esqueci essa frase. Aí vem a abolição e o barão não aguenta, ele adoece e morre de ouvir os batuques toda as noites, as alegrias das pessoas libertas.
Ou seja, Machado mata todos os senhores de pessoas escravizadas na obra dele. Mas ele não faz um discurso panfletário para os brancos, e sim um sinuoso em que os brancos e senhores de pessoas escravizadas são reduzidos a pó. Não sobra nada. É uma literatura de anti-heróis. O Brás Cubas é um canalha, um cínico. Ele se vangloria de nunca ter trabalhado na vida. A autocrítica e crítica aos senhores, Machado põe na boca do sinhozinho, na boca do poder.
Outro caso idêntico é o Bentinho, do Dom Casmurro. Ele é órfão. O pai já morreu e Bentinho não consegue reproduzir os métodos do pai, chicote na mão, coordenando pessoas escravizadas. Percebe? É uma literatura que no seu conjunto é uma alegoria do fim da escravidão. Machado escancara isso. Não dá mais, acabou, não tem mais como. O Brasil é o último país do mundo que ainda tem escravidão. E ele coloca isso de uma forma enviesada. De uma forma dissimulada. É um capoeirista das palavras.
Portal Aprendiz: Você discorre sobre a capoeira literária de Machado no artigo “A capoeira literária de Machado de Assis”. Por que ele adotava esse estilo literário?
Eduardo: Machado era um homem de imprensa. Ele frequenta as redações de jornais a vida inteira. São mais de 50 anos em redações. Ele entra aos 16 como operário gráfico, ficava juntando as letrinhas. Da oficina ele logo pula para a redação e começa a corrigir o português dos doutores que publicavam nos jornais. É um autodidata, intelectual que aprendeu francês sozinho e com 27 anos traduziu Victor Hugo.
A minha tese sobre o Machado é que ele usa da poética da dissimulação. O público leitor dele era branco. Um recenseamento pedido por Dom Pedro II em 1872 mostra que 84,2% da população era analfabeta. Havia 14,8% da população que sabia ler. Quem eram? A elite branca. Quem é que comprava os jornais, as revistas? As mulheres principalmente, sobretudo as filhas, as sinhás. Machado publica no jornal das famílias, daí a expressão no início de muito de seus textos: “Minha cara leitora, minha cara senhora”.
É como a capoeira, não é uma dança, é um jogo. E se o dançarino não dançar direito ele leva um rabo de arraia na cara. O Machado vai um pouco nessa linha: o negro no Brasil ele tem que se virar. Dançar com as regras do jogo. Se ele rompe com a essa imposição ele é considerado um marginal, um desobediente, como a própria capoeira, que já foi considerada crime pelo código penal. É preciso dançar de acordo com a música, para aos poucos ir subvertendo as regras do racismo institucionalizado que sempre existiu no Brasil.
É importante lembrar que Machado jamais poderia perder emprego no jornal. Ele vivia disso. Machado nunca teve bens. Ele pagou aluguel a vida inteira.
Portal Aprendiz: Dá para dizer que Machado, assim como já disse a escritora Conceição Evaristo, mostra o desvelamento das relações de poder de suas obras?
Eduardo: As relações de poder estão muito bem definidas nas obras desde que você as leia com cuidado. Não é uma coisa escancarada, não é um discurso panfletário, mas elas funcionam perfeitamente para um leitor entender claramente qual a posição de um e de outro ali. Quando ele coloca o Brás Cubas montado em cima do Prudêncio, isso é uma alegoria muito clara da escravidão. A escravidão é nociva. No momento que existe, ela desumaniza o senhor e desumaniza a pessoa escravizada. A escravidão é uma fábrica de violência, de embrutecimento do ser humano, seja ele branco ou negro.
Portal Aprendiz: Esse desvelamento de poder se dá também não somente em raça, mas também em gênero? O Machado costuma ter protagonistas bem fortes em romances como Dom Casmurro ou Helena (1876).
Eduardo: Ele tira os herdeiros, os homens do protagonismo para dar espaço às mulheres. É uma obra de mulheres fortes. Começando por Helena. O Estácio que é o herdeiro, o senhor, é um panaca. A Helena está na capa dos livros, não o Estácio. Depois você tem a Capitu, a cigana de olhos oblíquos e dissimulados. Essa dissimulação ele elogia nas personagens dele porque é com elas que ele se identifica, não com seus personagens masculinos.
Esse poder feminino chega no auge no seu último romance, o Memorial de Aires. Quando o Barão morre, quem herda suas terras é sua filha, Fidélia. Ela pega sua fazenda e distribuí em partes iguais com as ex-pessoas escravizadas. É a primeira cena de reforma agrária da literatura brasileira.
Portal Aprendiz: O que se pode dizer da literatura de Machado de Assis sobre as cidades, ou especificamente, sobre a cidade do Rio de Janeiro, onde ele nasceu?
Eduardo: Tem uma crônica ótima sobre a chegada da luz elétrica e do bonde elétrico, que é a Crônica dos Burros. E veja bem, porque o Machado de Assis nasceu há 180 anos atrás. E nunca vi uma pessoa de 180 anos tão jovem. Ele está num bonde puxado por burros, que eram como os bondes funcionavam antes da eletricidade. O Rio de Janeiro começava a se iluminar, a ganhar ares de Paris, a expulsar pessoas do cortiço para abrir uma larga avenida, a Avenida Central, e também a engrossar a população favelada dos morros.
Ele está num bonde puxado por dois burros, e esse bonde cruza com um elétrico, um subindo, outro descendo. O condutor do bonde elétrico tinha uma postura de inventor da própria eletricidade. Depois, Machado dá voz aos burros: ‘O que é que vai ser da gente? Nós vamos ganhar uma aposentadoria? E depois que a gente não mais prestar, quem vai nos alimentar, quem vai cuidar da gente?’ Olha a metáfora da situação atual envolvendo a questão das aposentadorias. Isso é muito atual.
Você tem também inúmeras outras cenas que a cidade grande vai propiciar os acontecimentos. E veja bem, a cidade grande, não a pequena. Na cidade pequena existe um tribunal onde todo mundo vigia todo mundo. Já a cidade grande não, e aí que nasce a grande literatura europeia do século XIX, na França, Portugal e Inglaterra. Os grandes romances do século XIX, o principal deles Madame Bovary.
O Machado faz a mesma coisa com Brás Cubas. Os homens sempre tiveram a liberdade a adultério, mas Machado coloca também a das mulheres. No caso da Capitu – de Dom Casmurro – que é acusada de adultério. Esse adultério nunca é comprovado. Você acha que a Capitu discute com o Bentinho, que ela perde tempo? Não, ela faz a mala dela e vai embora.
O Machado é moderno, muito antes da Semana de 1922. Ele é moderno não somente em seus esquemas construtivos, como também nas personagens. Você aí tem mulheres que em pleno século XIX levantam o nariz, a mão, não são objetos. São sujeitos. Super sujeitos. E isso é claro tem a ver com a cidade e com o mundo urbano.