publicado dia 10 de julho de 2019
Museu social: curadoria comunitária e preocupação com o presente
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 10 de julho de 2019
Reportagem: Cecília Garcia
O Muquifu – Museu dos Quilombos e Favelas Urbanos – está localizado no Morro do Papagaio, aglomerado de favelas na zona sul de Belo Horizonte (MG). O museu de prateleiras baixas e paredes de cimento exposto revela objetos e memórias dos moradores desse território. São também eles os curadores da expografia: modo comunitário que escolhem o mote das exposições.
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O Muquifu faz parte de um braço da museologia que encontrou no Brasil território propício na luta, não só pela preservação da história, mas pela manutenção do que está vivo. É a museologia social ou sociomuseologia, conceitos que ganharam força entre 1970 e 1980, quando os museus começaram a abandonar suas práticas de origem colonial ou de simples conservação em formol do passado.
Mário Chagas, diretor do Museu da República e presidente do Movimento Internacional para uma nova Museologia, explana uma das possíveis definições do conceito:
“A museologia social está comprometida com o enfrentamento de desigualdades sociais e pela ampliação das noções de cidadania e direitos humanos. Com a vida em todas as suas instâncias, não apenas a biológica, mas a de relações”.
Diferentemente da noção hermética da museologia tradicional, de aparência em geral asséptica e com fronteiras bem delineadas entre objeto e público, o museu social busca o contato: “A museologia social também pode ser compreendida como museologia do afeto. Ela não tem medo de afetar e nem de ser afetada. Não está buscando uma isenção, uma cientificidade olímpica, distante de tudo”.
Para que um museu participe efetivamente da vida da comunidade onde se insere, afete-a e por ela seja afetado, a própria noção de patrimônio precisa ser modificada:
“O patrimônio pode e deve ser compreendido como herança fraterna, uma herança que é produzida aqui e agora. O compromisso é com o movimento. O passado sem dúvida é importante, mas para nós, no âmbito da museologia social, ele continua em movimento, e é disso que se compõe, interferindo no presente”, conclui Chagas.
A história do Muquifu é indissociável da formação do aglomerado de favelas do Morro do Papagaio. Embora se possa dizer que ele nasceu em 2012, por iniciativa dos moradores e do padre Mauro Luiz da Silva, curador e diretor do museu, ele já se construía desde as primeiras ocupações, na década de 1970.
“O que distingue o Muquifu dos outros museus é que ele narra a história dos moradores do território. Ele conta uma história da população que já existia antes da própria inauguração de Belo Horizonte, a histórias dos favelados e dos negros que não é contada em nenhum outro museu da região”, explica Mauro.
As obras que estão no Muquifu representam bem o que Mauro acredita definir também o museu social: a participação política e dimensão poética. Foi pintado recentemente um afresco de 100 metros contando a história de 14 mulheres negras guerreiras da comunidade; há também uma parte onde empregadas domésticas fazem uma exposição com objetos dados por patrões e patroas, montando um relicário da discrepância social e financeira do Brasil.
Outro aspecto da museologia social é a curadoria comunitária: quem monta o museu e escolhe suas exposições é justamente quem nele está retratado. “Na perspectiva da museologia social interessa pouco a curadoria olímpica, onde um curador detém um poder superior que desce aos mundos inferiores, mas a que é construída de modo participativo, colaborativo e também compartilhado”.
Na instalação sobre as empregadas domésticas, por exemplo, Mauro relata que foram elas as responsáveis pela expografia: “as domésticas que discutiram o lugar das mulheres na cidade e seu direito à ela. Elas que montam, trazem e tiram objetos”.
O caráter provisório do acervo e até mesmo da própria instituição, que é uma antítese à museologia tradicional e a perenidade dos objetos expostos nesta, também faz parte da sociomuseologia; museus sociais funcionam pelo tempo necessário àquela comunidade.
“Muitas vezes as experiências de museus sociais são descontinuadas ou deixam de funcionar por um ano e depois voltam. Não há fracasso nisso: o importante é a experiência vivida, e muitas não querem ser eternas”.
Chagas indica algumas experiências de museus sociais para além do Muquifu: o Museu da Maré e o Museu das Remoções, ambos no Rio de Janeiro, contam as histórias das favelas na perspectiva de seus moradores. O Ponto de Memória Terra Firme, em Belém (PA), é organizado a partir do trabalho social das moradoras da comunidade; o Ponto de Memória da Estrutural, no Distrito Federal, apresenta histórias e é manejado por mulheres catadoras de lixo.