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publicado dia 4 de fevereiro de 2019

Conheça a Vila Buarque, um dos bairros mais antigos de São Paulo

Reportagem:

Caminhar pelo bairro da Vila Buarque, no centro de São Paulo, é pôr os pés em um território educativo: o pedestre pode se deparar com prédios de arquitetura antiga, um viaduto que de dia é para carros e de noite para pessoas, e uma rua que tem na memória do asfalto um embate sangrento.

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De limites pouco definidos, confundindo-se com Santa Cecília e Higienópolis, a Vila Buarque era a princípio uma chácara pertencente ao general José Toledo de Arouche Rondon. A expansão do bairro no século XIX se deu com o deslocamento de famílias paulistanas do interior para o centro da cidade.

Por muito um bairro que se dividia entre mansões e as facilidades centrais, foi nos anos 1960 que a região começou a ganhar ares boêmios. Quando cortada pelo Elevado João Goulart – popularmente conhecido como Minhocão – a cicatriz faraônica alterou a malha da região, introduzindo a diversidade e a desigualdade que caracterizam o centro da cidade.

Hoje, a Vila Buarque é verticalizada, repleta de pontos culturais e um caso de estudo de gentrificação – processo que expulsa moradores antigos frente a uma nova leva interessada nas vantagens do território. Sua história, entretanto, ainda é de um bairro termômetro das nuances políticas paulistanas e da ocupação do espaço público. Abaixo, selecionamos três espaços emblemáticos para a história do bairro.

Maria Antônia, a rua que entrou em guerra

Com uma ponta na Avenida Consolação e outra em um paralelepípedo no coração da Vila Buarque, a rua Maria Antônia é um inofensivo logradouro repleto de bares atendendo à jovem população universitária. Não há vestígios de que nos dias 2 e 3 de outubro de 1968, o asfalto foi tomado por um histórico confronto entre estudantes do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), da Universidade Presbiteriana Mackenzie, e estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), que antes tinha seu prédio ali.

O episódio, conhecido como Batalha da Maria Antônia, teve início quando os estudantes uspianos, que reivindicavam reformas universitárias, começaram um pedágio na rua. Foram recebidos com uma chuva de pedradas dos integrantes da CCC.

No embate que se estendeu por dois dias, os estudantes da Mackenzie estavam armados, e um tiro matou o estudante José Guimarães, de 20 anos. A Polícia Militar interviu com violência, e outras ruas do centro foram tomados pela batalha de forças desiguais.

“Não há como esquecer que a Batalha da Maria Antônia foi em outubro de 1968 e o AI-5 foi promulgado em 13 de dezembro do mesmo ano”, relembra Maria Arminda do Nascimento Arruda, socióloga e diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Dava-se então início aos anos de chumbo da ditadura militar.

Para a também organizadora do “Livro Branco: sobre os acontecimentos da Rua Maria Antônia de 2 a 3 de outubro de 1968”, o episódio materializou a ascensão política de uma população jovem, que demandava participação política não só na universidade mas também no espaço público.

“Os acontecimentos da Maria Antônia simbolizaram o aparecimento de uma nova realidade política e universitária no Brasil. Ao mesmo tempo que expressavam uma vontade da juventude de participar do jogo político, fenômeno que acontecia em todo mundo, o caso brasileiro foi reprimido de forma brutal: a ditadura deixou centenas de mortos e presos.”

Resquícios dessa repressão reverberam até hoje na forma como manifestações públicas são reprimidas pelas forças da polícia militar. Já no campo universitário, as consequências foram a mudança da USP para o bairro do Butantã e sua retirada do centro, o que modificou as relações entre universidade e cidade.

“O centro das humanidades e da inteligência paulista foi distribuído e fragmentado. Tivemos que correr para a Cidade Universitária. Se você olha para a universidade hoje, tudo é separado, tudo disperso. A interação com a cidade é escassa”, arremata Maria Arminda.

batalha rua maria antônia no centro da vila buarque
Batalha na rua Maria Antônia / Crédito: Acervo USP

Um hospital que também é museu

A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo ocupa um quadrilátero da Vila Buarque. Dentro do hospital está o Museu da Santa Casa. Nele se encontra não só boa parte da história do prédio de abóbadas alaranjadas, mas também do bairro e da cidade.

O museu funciona de segunda a sexta, das 9h às 16h30. Hoje a diretora responsável é June Locke Arruda.

O mais antigo hospital da capital teve sua primeira sede no Largo da Misericórdia, hoje região do centro, em 1560. A sede atual, construída pelo arquiteto Luiz Pucci, é de 1884.  “Quando inaugurado, os jornais da época chamaram a Santa Casa de Castelo de Misericórdia. Imagina esse bairro sem muitas construções e de repente, esse prédio de ampla magnitude”, conta Ingrid Ribeiro Souza, historiadora e responsável técnica pelo Museu.

Inaugurado em 2001, o museu tem um acervo contador de histórias: frascos recheados de ácidos coloridos versam sobre a história da farmacêutica ocidental; panos ensanguentados e livros envelhecidos contam a história da Revolução Constitucionalista de 1932, cujos feridos foram atendidos no hospital.

Apesar desse rico acervo, o museu sofre do desconhecimento, como outros equipamentos culturais da cidade. “Já recebi moradores que moram aqui há mais de 30 anos, usuários da Santa Casa, mas que não sabiam que aqui tinha um museu. Da mesma forma que a gente já teve pessoas que vieram até aqui por conta do próprio museu, da arquitetura e da história”, relata Ingrid.

O museu tem tentado se aproximar do território, escalonando suas ações do micro para o macro: dialogando com o corpo dos funcionários, abrindo aos finais de semana e oferecendo visitas guiadas.

“A gente recebeu no ano passado um senhor que foi operado de uma grave apendicite, 15 anos atrás. Quando ele viu a divulgação que ia ter uma visita guiada, fez questão de vir. Ele ficou muito emocionado, porque para ele fez muito sentido poder cruzar a história dele com a do museu e do hospital”, finaliza a historiadora.

interior do museu cheio de frascos e prateleiras
Interior do Museu da Santa Casa / Crédito: Cecília Garcia

Minhocão: símbolo de ocupação do espaço público

O elevado Presidente João Goulart é uma obra de características faraônicas e de construção polêmica. Cortando quatro bairros e ligando a zona oeste à zona leste, foi inaugurado nos anos finais da ditadura, sob a tutela do então prefeito Paulo Maluf. Sua abertura teve fanfarras e um congestionamento histórico.

As 32 mil toneladas de cimento que tampam o céu modificaram mais do que o visual da região central, como relata Ana Paula Martins, socióloga e pesquisadora. “O Minhocão dividiu uma área culturalmente efervescente dos anos 1970, fraturando a cidade”. Ela também conta que a construção acompanha a saída da elite paulistana do centro para outras regiões da cidade, o que desvalorizou o metro quadrado.

Essa cicatriz poderia ficar como qualquer outra das tantas que o cimento e o descaso por parte do poder público provocam, mas ao longo de seus anos de uso, o Minhocão foi ressignificado pela população: “Tiraram automóveis, entrou gente”, define a Ana. Às noites e aos fins de semana, ele é um parque a céu aberto, ocupado por bicicletas, cachorros e programação cultural.

Em vias de ser desativado permanentemente de acordo com o Plano Diretor da Cidade, ainda é incerto se ele será demolido ou será adaptado como parque. Para Ana, a maior conquista é que essas decisões, ao contrário da de construí-lo, estão sendo tomadas pela população ao redor: “O Minhocão é um exemplo de mudança de percepção da cidade que se quer, e de como ela é orgânica. Sua construção se faz pela produção social do espaço.”

festival minhocão preliminares
A ocupação do Minhocão em festivais, eventos culturais e até mesmo em seus momentos de não funcionamento alterou sua função no espaço / Crédito: Festival Preliminares

 

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