publicado dia 22 de novembro de 2018
Funk carioca, patrimônio cultural da cidade do Rio
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 22 de novembro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
O funk, ritmo com mais de 150 batidas por minuto – mais rápido que o coração humano – está em todo lugar no Rio de Janeiro: ondula as caixas de sons nos porta-malas escancarados dos carros, apressa os calcanhares calçados de tênis de quem dança o passinho e é ouvido desde o fervo dos bailes de favela até os condomínios de luxo nos bairros nobres fluminenses.
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A Lei Federal 14.940, de 2024, instituiu o Dia Nacional do Funk, a ser comemorado anualmente em 12 de julho. A expressão cultural também foi homenageada pelo governo do Rio de Janeiro, com a sanção da Lei 10.113, de 2023, que tornou os antigos bailes funk, que ganharam popularidade especialmente nas décadas de 1980 e 1990, como Patrimônio Imaterial Cultural do estado.
Ora louvado enquanto riqueza cultural, ora perseguido por batidas policiais, o funk carioca já foi investigado em CPIs e sujeito a projetos de criminalização
O estreitamento de relação entre Estado e o ritmo é mais um capítulo de uma história ambígua. Ora louvado enquanto riqueza cultural, ora perseguido por batidas policiais, o funk carioca já foi investigado em CPIs e sujeito a projetos de criminalização. Em contraposição, o passinho, dança vinculada ao ritmo, já foi declarado patrimônio imaterial da cidade.
Para o cineasta e cientista social, Emílio Domingos, diretor dos documentários “Deixa na Régua” e “Batalha do Passinho” (2016), qualquer reconhecimento que aconteça ao ritmo é, embora importante, tardio se comparado à força e independência do ritmo.
“Qualquer reconhecimento da cultura funk é tardio. O funk tem 50 anos e milhares de pessoas já passaram pelos bailes. É uma das principais atividades de lazer da cidade, e já criou uma indústria independente de todas as outras, mobilizando muita gente trabalhadora. É um reconhecimento mais do que merecido, porque o Estado tem como obrigação reconhecer as manifestações culturais que acontecem aqui”.
A relação de Emílio com o funk não nasceu de sua produção documental, mas sim das tardes de sua infância nos anos 1980, quando o funk carioca fervilhava os já naturalmente quentes morros cariocas. “Era inevitável conhecer o funk, tradição que começa com os bailes blacks dos anos 1970. É uma cultura que gera sociabilidade entre jovens, sempre muito popular entre as classes C e D”, conta.
Ainda que hoje nomes como MC Kevinho, Anitta, Mc Soffia e Ludmilla habitem a boca e pés de quem gosta do ritmo, a cultura do funk é ainda essencialmente a dos bailes. “O funk é uma cultura de baile, das grandes equipes de som, nas quadras da favela. Falando tecnicamente, sua sonoridade tem samplers, atabaques, percussão brasileira. Já em termos de lírica, as letras são crônicas do que acontece no espaço. É no funk que se experimenta novas gírias e construções de palavras. Até os dicionários mais conservadores são tomados por essa criatividade, essa forma de expressar e poetizar o que é peculiar do morro”.
Emílio está atualmente produzindo um curta-metragem sobre o Passinho Foda, vídeo que há dez anos ajudou a expandir e popularizar o passinho. Você pode conhecer mais sobre o trabalho do cineasta na página de sua produtora, Osmose Filmes.
Por ser produzido e consumido principalmente por jovens, o funk carioca é uma aglutinação de múltiplas referências – há canções que misturam desde percussões afro-brasileiras até música clássica. Em meados dos anos 2000, com o surgimento do tamborzão, estilo que acelerou definitivamente a batida do funk, nasce o passinho, dança que corporifica e intensifica essa colagem.
“O passinho é a representação corporal do funk, um sampler de outras danças e movimentos. Ele incorpora break, elementos do samba, do frevo, kuduro e step, entre outros”, relata Emílio.
O funk também se encaixa, enquanto colagem, em uma história de perseguições. As invasões policiais a bailes de favela são repetições da mesma violência sofrida pelas rodas de samba no início do século XX.
“Tem uma perseguição, na verdade, a um grupo social que vive na favela, ao negro, perseguição essa que é resquício do período escravocrata que o Brasil viveu”, declara Emílio.
Quando o documentarista levou alguns garotos dançarinos do passinho para assistir a um filme sobre o Xangô da Mangueira, o sambista Olivério Ferreira, eles se identificaram com a história de preconceito e resistência sofrida pelo artista nos anos 1920 e 30.
Já em termos de lírica, as letras são crônicas do que acontece no espaço. É no funk onde se experimentam novas gírias e construções de palavras. Até os dicionários mais conservadores são tomados por essa criatividade.
Para Emílio, a amostra mais clara de que a perseguição é seletiva é que dificilmente o funk é perseguido ou enquadrado se tocado em espaços fora de comunidades. “Não é o baile e a cultura funk que produzem o tráfico ou a violência. Ele é uma atividade de lazer. As pessoas que moram nas favelas vão para o baile, e isso inclui trabalhadores, estudantes e todo mundo que mora ali.”
Se o programa sonhado por Marielle Franco vai continuar, apesar da guinada conservadora dada nas últimas eleições municipais, ainda não se sabe. O que o documentarista prevê é que “qualquer governo inteligente tem que saber reconhecer e negociar com a cultura funk. É muito expressivo o número de funkeiros e de bailes, não são meia dúzia de pessoas. O funk tem uma força grande e consciência dessa força. Independentemente do perfil do governo, acho que a popularidade do funk vai se manter. É algo que já faz parte da corporalidade do carioca.”
* Texto atualizado em 27 de agosto de 2024.