publicado dia 15 de outubro de 2018
Preservar a tradição oral é essencial para o multiletramento
Reportagem: Redação
publicado dia 15 de outubro de 2018
Reportagem: Redação
Por Janice Cristine Thiél. Texto publicado originalmente no Centro de Referências em Educação Integral.
Qual seria o marco zero de uma literatura? Seria possível identificá-lo? No berço das literaturas está a tradição oral, a contação de histórias que constroem as visões de mundo de cada cultura. Com a ênfase dada à escritura, a arte de contar histórias passou a um segundo plano, mas é muito relevante para o multiletramento de crianças e jovens.
Janice Cristine Thiél é especialista em literaturas indígenas brasileiras, doutora pela Universidade Federal do Paraná e professora titular de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Quando alguém diz “quer ouvir uma história?”, o ouvinte se prepara para receber um texto novo, mesmo que a narrativa já seja conhecida. O texto nutre o ouvinte que acompanha, visualiza e interpreta a história.
Mitos, por exemplo, manifestam saberes relacionados ao sagrado ou às atividades do cotidiano, conhecimentos ancestrais que são resgatados pela memória do narrador. Textos da tradição oral têm sido passados de geração em geração e compostos por inúmeras vozes. Cada voz que narra uma história traz sua interpretação, com entonações próprias, acréscimos e subtrações que tornam cada narrativa única.
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A relação entre o contador e o ouvinte é diferente da relação entre escritor e leitor; o contador interpreta a história e utiliza estratégias para atrair e manter a atenção de seu público que envolvem sua expressão corporal, sua voz e o ambiente no qual a história é contada. O ouvinte é cativado pela narração e pela narrativa. A palavra é importante, mas como essa palavra é narrada e mediada diferencia a recepção de cada história.
Cada voz que narra uma história traz sua interpretação, entonações próprias, acréscimos e subtrações que tornam cada narrativa única
A obra Voltar a ler: propostas para ser uma nação de leitores, de Mempo Giardinelli, indica que “os mediadores, na magnífica definição de Graciela Montes, são uma espécie de ‘casamenteiros entre o leitor e o texto (…). A voz de quem lê um conto em voz alta, sua presença, o livro que sustenta na mão, as ilustrações que se espiam ou vislumbram, o lugar no qual se desenvolve a cena, os odores e sons circunstanciais formam parte da experiência e chamam a atenção sobre ela”.
Em muitas culturas crianças e jovens costumam ouvir histórias contadas pelos mais velhos. Culturas tribais mantêm a contação de histórias para sustentar as bases sociais da comunidade, assegurar a continuidade de conhecimentos e construir uma unidade que entrelaça diferentes gerações. Nas escolas, pode promover o desenvolvimento de muitas competências no aluno.
Contar histórias envolve escolher textos curtos, com concentração de ação e poucos personagens. A atenção pode se voltar para o conteúdo da narrativa bem como para a forma de contá-la. Todos os componentes produzem um efeito; o ouvinte, para usufruir da contação, precisa estar atento a todos eles.
A voz do mediador constitui elemento primordial na contação de histórias. Mudanças na altura e entonação de voz sinalizam ênfase, ou revelam emoções diversas. O contador pode modular sua voz para elaborar as identidades e reações de cada personagem. O ouvinte pode desenvolver a habilidade de interpretar diferentes formas de expressão e construção de personagem.
A contação de história promove no ouvinte a capacidade de leitura da expressão do outro
Os gestos utilizados pelo contador, seu olhar, suas reações, formam um conjunto que complementa a palavra narrada. Observar tais elementos e interpretá-los como componentes da história promove a capacidade de leitura da expressão do outro e da diversidade de manifestação de sentimentos. O ouvinte pode desenvolver concentração e paciência com a contação de histórias, em qualquer idade.
A percepção do ambiente também pode ser desenvolvida. Sons ocasionais provenientes da audiência, que não ouve passivamente mas reage ao que é contado, ruídos circunstanciais distraem ou afetam a narração.
Além disso, o ouvinte pode acompanhar os marcadores do discurso que constroem a história. Marcadores temporais, espaciais ou sequenciais auxiliam o ouvinte a localizar a história, seus personagens, e perceber como a narrativa é elaborada em seu movimento de construção de conflito, encaminhamento para um clímax e uma resolução.
Portanto, a tradição oral contribui significativamente para o desenvolvimento de várias competências na escola e a atividade do professor/contador de histórias deve ser valorizada.