publicado dia 5 de outubro de 2018
Constituição de 88: a participação social como base e defesa da democracia
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 5 de outubro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
Texto publicado originalmente na plataforma Cidades Educadoras
“Construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e idade e quaisquer outras formas de discriminação”; “reduzir desigualdades sociais e garantir o desenvolvimento nacional”.
Esses são os pilares sobre os quais foi erguida a Constituição Federal de 1988, que comemora três décadas de aprovação em 22 setembro deste ano. Singular pela massiva participação social em sua construção e na extensa redação sobre direitos humanos, o marco legal promulgado em 5 de outubro se difere das constituições passadas, mais abstratas e menos populares.
A ideia de uma Constituição Federal como um documento magno e escrito, superior a qualquer lei, acontece pela primeira vez no Brasil pós 1822, quando é declarada a independência do País de Portugal. Dom Pedro I, que se proclamou imperador, elaborou na ocasião a autocrática Constituição de 1824 junto a uma assembleia constituinte pouco representativa.
Essa reportagem integra o especial 30 anos da Constituição Cidadã – série de matérias que analisa os trinta anos da Constituição Federal de 1988 e a relaciona com a manutenção da democracia brasileira, especialmente, nas áreas de educação, território e participação social.
Há divergências de quantas constituições se seguiram desde então, nos momentos de intempéries e alternância política no Brasil. Se existe dúvidas sobre seu número, não há nenhuma sobre terem sido constituições escritas a poucos punhos, com nenhuma participação popular, como explica Dimitri Dimoulis, professor de direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Essas constituições, desde a Independência, serviram para organizar o poder e eram feitas por grupos que se fechavam em salas minúsculas, escreviam a constituição, a comparavam com versões anteriores e pronto.”
Essas constituições eram também frágeis e entraram em suspensão nos dois momentos ditatoriais da história brasileira: a ditadura de Getúlio Vargas – que durou de 1937 até 1945, suspendendo os poderes legislativos e reintroduzindo medidas afrontosas aos direitos humanos como a pena de morte – e a Ditadura Militar (1964-1985), período mais longo de repressão autoritária.
Rafael Custódio, coordenador do programa de Violência Institucional da organização Conectas, relembra esse segundo período: “Em um primeiro momento, os militares mantêm a Constituição Federal em vigor, que era a de 1947, mas depois acabam promulgando uma nova constituição sob a égide do sistema militar, produzida numa lógica completamente diferente. Nela, o cidadão era visto como um ser que deveria estar a serviço do Estado e, potencialmente, um sujeito perigoso. Todas as políticas partiam do princípio que o Estado deveria ser protegido tanto das ameaças internas como externas.”
Partindo deste princípio de que o indivíduo não era um sujeito de direitos, as consequências nefastas desta constituição incluíram perseguições políticas, assassinatos, torturas e intensa repressão a qualquer ideologia contrária ao regime. Ao Estado, por sua vez, não era imputado o dever de garantir direitos fundamentais ao cidadão.
Após vinte anos de ditadura, o Brasil tateava sua redemocratização, apesar de carregada de reminiscências autoritárias. O primeiro presidente a assumir em 1985, Tancredo Neves, foi escolhido pelo Congresso Nacional – composto, vale-se dizer, por muitos que participaram ativamente do regime militar.
Em paralelo, movimentos sociais e organizações da sociedade civil pressionavam a nova ordem política para que fossem feitas garantias pétreas de que o Brasil se comprometeria com o desenvolvimento social e não mais repetiria a violência e o horror do Estado nos chamados anos de chumbo.
A Constituição Cidadã assegurou que o Brasil se comprometeria com o desenvolvimento social e não mais repetiria a violência e o horror do Estado nos chamados anos de chumbo
Durante 19 meses, entre 1987 e 1988, foi feita então a tecedura do que seria a Constituição de 1988. “A constituição de 1988 teve uma grande participação social. Propostas populares eram enviadas e grupos de movimentos sociais e entidades se envolviam em discussões com os deputados do Congresso Nacional em Brasília”, explica Dimitri.
O processo foi extenso e tecnicamente complexo, mas necessário para dar conta da participação popular. Além dos canais de participação institucionalizados pela Assembleia Nacional Constituinte, como sugestões, audiências públicas e emendas populares, foram criados fóruns de debate por setores da sociedade civil em áreas como Educação, Saúde e Habitação.
A segunda característica importante, e que confere à constituição uma extensão de mais de 200 páginas e 1,6 mil dispositivos, é a ênfase nos direitos humanos. “A Constituição de 88 está muito preocupada em orientar o legislador em como introduzir mudanças na sociedade. Se nas outras constituições existiam normas sobre direito à educação ou saúde, por exemplo, a de 1988 escreve páginas e páginas para guiar políticas públicas, oferecendo mecanismos para tirar do papel metas, direitos e objetivos”, relata o professor.
Para assegurar que o Estado é responsável pelos direitos que garantem o desenvolvimento integral do sujeito, um dos pontos mais importantes, segundo Dimitri, é sua vinculação orçamentária: “O documento determina a porcentagem do orçamento que vai para saúde, para educação e assim sucessivamente, garantindo e detalhando o quanto é necessário para que o direito de fato seja cumprido.”
Mais do que um documento magno, a Constituição como foi redigida reflete um projeto de país democrático, no qual o Estado tem o dever de garantir os direitos e a população de cobrá-los caso não cumpridos com o acionamento do Judiciário. “Os constituintes quiseram tematizar no documento problemas sociais que eram muito anteriores à ditadura. A Constituição não é somente uma reação ao que aconteceu nos anos ditatoriais, mas uma reflexão sobre a história do país”, explica Dimitri.
Mais do que um documento magno, a Constituição como foi redigida reflete um projeto de país democrático, no qual o Estado tem o dever de garantir direitos
Para exemplificar, o professor discorre sobre o racismo, previsto como crime na Constituição no artigo 5 e fruto da luta de movimentos sociais negros e anti-racistas. “Não é que houve racismo especificamente na Ditadura, e sim que a história do Brasil é escravocrata e era necessário um compromisso para combater o racismo e outros problemas sociais já existentes”, explica.
Nesta perspectiva, a Constituição foi uma aposta do povo brasileiro na democracia e no Estado, ao oferecer ferramentas possíveis para que futuros governantes, independentemente de suas matrizes ideológicas, encontrassem nela caminhos para sua efetivação.
Construir uma constituição que é referência em democracia e garantia de direitos não determina, contudo, que esses direitos serão concretizados. A própria construção da Constituição foi resultado de lutas de pactuação entre setores progressistas e conservadores, onde ambas as partes tiveram que ceder para tornar a materialização do documento possível.
“Em panorama geral, nos últimos 30 anos, temos avançando em relação à Constituição. Temos certa estabilidade econômica, institucional e política, apesar do recente impeachment de Dilma Rousseff em 2016, cuja legalidade ainda é questionada”, avalia Rafael.
No que concerne aos direitos humanos ainda se está longe do prescrito, principalmente quando o escopo são os direitos das populações histórica e socialmente prejudicadas
Se houve relativa manutenção dos princípios democráticos, permitindo o funcionamento do sistema político, também é possível apontar, na opinião dos dois especialistas, que no que concerne aos direitos humanos ainda se está longe do prescrito, principalmente quando o escopo são os direitos das populações histórica e socialmente prejudicadas, como as populações tradicionais, negras e LGBT.
Isso se dá, segundo Dimitri, por conta de “certa seletividade constitucional”. Ou seja, existem artigos dentro da Constituição que são menos disputados e mais aceitos. Enquanto partes mais liberais da Constituição são priorizadas, vemos aquilo que diz de mudanças sociais ser silenciado.
“A liberdade de expressão, os direitos clássicos como à propriedade privada e o funcionamento – ainda que questionável – do sistema político, com eleições a cada quatro anos, são mais aceitos. Já no que de fato é novidade nesta Constituição, se analisado artigo por artigo e por áreas como Educação e Saúde, se percebem avanços, mas também graves deficiências.”
A Constituição de 1988 e a própria democracia, no entanto, não são conquistas dadas e finitas. Sua manutenção é uma atividade perene: se foram os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil que influenciaram progressivamente sua feitura, incidindo nos direitos sociais ante interesses de setores mais conservadores, é também a participação social praticada nos dias de hoje a ferramenta para garantir que a Constituição seja reconhecida e respeitada para o combate às desigualdades.
“Entende-se que a Constituição Federal precisa ser efetivada diariamente. Se as instituições públicas e privadas deixam de fazê-lo, ela acaba se tornando só um papel. É preciso ressaltar que essa responsabilidade compartilhada se faz no dia a dia, logo, a contínua pressão para sua efetivação é muito importante”, explica Rafael.
Dimitri contrapõe. Para ele, a participação social enquanto um direito carece de ênfase no documento final constituinte. “Mesmo assim, a participação social ainda é um dos maiores aliados na efetivação da Constituição. Mandar um projeto de lei para o Senado, fazer protestos e manifestações, são alguns dos mecanismos de participação institucional do cidadão.”
A Constituição de 1988 e a própria democracia, no entanto, não são conquistas dadas e finitas. Sua manutenção é uma atividade perene
Entretanto, é consenso a necessidade de reconhecer a Constituição e lutar contra qualquer retrocesso que ameace o Brasil como Estado de Direito ante um momento de profunda crise econômica, social e institucional como a que o País vive e um cenário de eleições que promete uma forte polarização.
Para Rafael, o Brasil é um país relativamente novo, com pouca história constitucional e períodos curtos de estabilidade. São 30 anos sem nenhuma ruptura mais drástica, o que não torna, porém, o amadurecimento democrático garantindo.
“Uma crise como a que estamos vivendo pode ser uma abertura não para um processo de ruptura constitucional, mas para uma ferida que pode se abrir completamente nos próximos anos. A história não acontece de um dia para o outro, mas em processos espalhados pelo tempo. Por isso, é importante superar nossas diferenças para que pelo menos encontremos respeito à Constituição de 1988 e o que representa enquanto denominador comum”, conclui.
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