publicado dia 16 de julho de 2018
Contra invisibilidade da população indígena, educador Leno Vidal propõe ligação entre arte e território
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 16 de julho de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
Nos íngremes morros da comunidade Real Parque, na zona sul de São Paulo, moram os indígenas Pankararu. Essa etnia itinerante se divide entre a capital paulista e a região semi-árida do interior de Pernambuco. Indígenas de forte miscigenação, os Pankararu têm uma complexa cosmologia, baseada em figuras como os Encantados, e o uso de barro como matéria-prima para muitas de suas criações artísticas e artesanais.
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Por muito essa população em permanente movimento esteve invisibilizada. Crianças e jovens Pankararu que estudavam em escolas como a EMEF José de Alcântara Machado Filho não se reconheciam como pertencentes ao território ou à comunidade escolar, nem tinham oportunidades para reafirmar suas raízes e cultura.
A fim de reverter esse quadro, há quatros anos, o educador paraense Leno Vidal começou um trabalho contra a invisibilidade da população indígena. Ele é criador do projeto Eu Venho do Mundo: reafirmação das raízes Pankararu no contexto escolar, que usa arte e culturas tradicionais para transformar a relação da escola com o território.
São Paulo é a cidade com a quarta maior população indígena do Brasil, segundo dados divulgados pelo IBGE. Estima-se que vivam cerca de 37.000 indígenas em seu território.
Leno foi também um dos criadores do Memorial Indígena Pankararu, acervo aberto com artefatos e história não só dos indígenas do território, mas das muitas etnias que compõem a diversidade indígena do Brasil. O Memorial já foi reconhecido por prêmios como o Prêmio Arte na Escola Cidadã e Prêmio Territórios Educativos.
Militante LGBTQ+, pelos direitos indígenas e pela tolerância religiosa – ele é praticante do candomblé – Leno se denomina artevista, militando em performance e corpo político pelos direitos dessas populações. Em entrevista ao Portal Aprendiz, ele relatou como foi possível transformar o território por meio da arte e dos saberes tradicionais.
Portal Aprendiz: Como você começou a usar o potencial educativo da arte no reconhecimento do território indígena Pankararu e de seus estudantes na Escola EMEF José de Alcântara Machado Filho?
Leno Vidal: A relação estética da arte com a cultura pankararu não foi difícil de ser feita. Ela sempre esteve ali. Vou dar um exemplo:
Descobri que a região antes se chamava Favela da Mandioca. Pensei, se ela se chamava assim, é claro que existe uma ligação com a cultura indígena. Comecei a fazer pesquisas em acervos etnográfico, como o acervo Dr. Carlos Estevão, na Universidade Federal de Pernambuco, e descobri imagens de indígenas pankararu ralando e descascando mandioca. Comecei a trabalhar então as raízes do alimento nas aulas de arte. Comprava-as e as levava para a escola.
O projeto foi iniciado no EJA (Educação de Jovens e Adultos) e depois espalhado para outros ciclos. Os estudantes amaram. Tiramos as cadeiras do enfileiramento, colocamos esteiras, fizemos as aula em roda, e eu levava objetos indígenas. Os alunos se identificaram e começaram a levar os seus também, além de trazer suas próprias amostras de raiz. Vinham com quilos de mandioca, inhame, cará.
Os processos educativos que acontecem na EMEF José de Alcântara Machado ocorrem sob os preceitos da Lei 11.645/08, que regulamenta a obrigação de incluir no currículo da educação a temática da história e cultura afro-brasileira e indígena.
Eu trabalhava a questão pictórica dessa raiz. Como se sente essa raiz, como ela possibilita a relação com o universo indígena, que está intimamente ligado com a terra e nossas origens. A raiz também está conectada com a arte contemporânea, que trabalha com objetos não convencionais. Surgiram então as criações de seres da natureza ou seres raízes a partir desses materiais, e a criação do projeto Eu Venho do Mundo: reafirmação das raízes Pankararu no contexto escolar.
Portal Aprendiz: As raízes também têm um significado simbólico, não? Pensando um pouco sobre a etimologia da própria palavra, que fala de origem, de base.
LV: A raiz tem tanto essa profusão de se aprofundar na terra como também de se desdobrar para fora dela. Ela é metáfora da grande ramificação brasileira das nossas origens, dessa diversidade que temos enquanto povo e identidade.
A raiz tem tanto essa profusão de se aprofundar na terra como também de se desdobrar para fora dela. Ela é metáfora da grande ramificação brasileira
Foi interessante conceituar isso com os estudantes na época. E contextualizar com o espaço, com o lugar: trabalhar com a cultura indígena de um modo geral, no macro, e depois afunilar para o universo dos indígenas Pankararu no Real Parque.
O indígena do território começou a se perceber. “Minha representatividade importa. Minha história, minha memória, minha raiz importa”. Se identificando e se orgulhando de suas origens, os alunos trouxeram também objetos que compõe o Memorial Indígena Pankararu.
Portal Aprendiz: Como funciona o Memorial Indígena Pankararu? Ele é aberto a toda comunidade, ao território e também à cidade?
LV: O memorial foi constituído a partir de artefatos da cultura indígena Pankararu. Objetos ritualísticos, como os práia, que são vestimentas dos Encantados (importante figura da cosmologia Pankararu). Os campiô, que são cachimbos, maracás, pratos de barro. Posteriormente, objetos de outras etnias também vieram fazer parte do memorial.
Ele é aberto ao público em geral, tanto que esse ano recebemos cerca de 300 alunos de escolas diferentes. E é interessante apresentar o memorial com os indígenas, porque aí vem a força do território. Também estamos em uma parceria fortalecida com as organizações sociais do território, para que eles possam levar diferentes agentes dentro do Museu.
Portal Aprendiz: Retomando ainda esse conceito de rizoma, que parece tão caro tanto a você quanto ao território onde atua, você sente que o que é feito dentro das aulas de arte, ou resguardado no próprio Memorial Pankararu, consegue se converter em um saber interdisciplinar?
LV: Aconteceu uma identificação forte com as aulas de ciência. A professora Katia Aparecida, que era de ciências, se encantou com a questão das raízes, achando-a pertinente trabalhar dentro do seu laboratório. Então os estudantes passaram a ter arte e ciência de maneira concomitante.
A gestão também se apropriou, sentindo necessidade de valorizar o trabalho, de dar continuidade e desdobrá-lo para outras áreas. Tanto que, mesmo com a mudança de governo que houve no ano passado, a gestão ainda apoia o fortalecimento do território.
Portal Aprendiz: Como se dá essa relação com o território, pensando que ele se espraia para além das questões indígenas, como também para as questões de ser um território periférico?
LV: No território, pais de outros alunos que não são indígenas passaram a reconhecer o território enquanto território indígena. As organizações sociais, como o Projeto Casulo, tem um trabalho todo grandioso com os indígenas Pankararu e com os diversos alunos da periferia.
Porque não podemos esquecer que esse território é periférico, que é necessário compreender sua complexidade também na garantia de direitos da população LGBT e negra das comunidades atendidas. Também entender a complexidade do entorno, porque a escola está entre os considerados prédios nobres da região. Como fazer esses moradores reconhecerem o valor daquele território? Isso tem pautado muito a nova gestão, que abriu mais ainda o leque de território, numa gestão ativa e presente. A cada ano, precisamos reafirmar nosso trabalho para a comunidade nova que chega, seja de alunos ou de profissionais.
Gosto de usar a expressão do pesquisador Luiz Rufino, que é a Pedagogia das Encruzilhadas: um currículo que é uma encruzilhada das relações que se consolidam no território onde você está.
Portal Aprendiz: Leno, eu já vi você usar a expressão transkararu algumas vezes. Você pode explicar o que ela significa e como ela se relaciona com as suas diversas e complementares militâncias?
LV: O personagem Transkararu é um aglutinador da minha vida profissional. Foi uma construção a partir das minhas lutas pessoais e em defesas das comunidades que eu trabalho. Um personagem que eu desenvolvi nesse processo de fortalecimento. Quanto mais se tem a perda de direitos, mais se coloca para fora a necessidade de representatividade. As identidades LGBT, indígena e afro-brasileira formam meu personagem. Quando eu vou em um evento e quero levá-lo, vou de salto alto, batom, trajando roupas afro-religiosas do candomblé ou indígena. O corpo é sempre político, e esse foi um jeito que eu encontrei de falar sobre preconceito, mas também sobre resistência e valorização das raízes.