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publicado dia 13 de junho de 2018

“O futebol expressa dilemas e contradições da sociedade”, diz pesquisador Flávio de Campos

Reportagem:

Há muito mais do que canelas torneadas, bola zanzando e gritos de gol no futebol. Essa dança dos deuses, com o escritor Hilário Franco Júnior denominou em livro homônimo, não está desassociada da história geral e da formação das identidades dos povos onde a modalidade esportiva tem forte apelo.

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O campo de futebol é um retângulo histórico de tensões políticas e sociais. Quando a modalidade esportiva chega ao Brasil, trazida com os fluxos migratórios europeus nas primeiras décadas do século XX, aporta em uma nação que acabava de dar fim aos 400 anos de escravidão. Os primeiros clubes brasileiros, contudo, não aceitavam jogadores negros, e os que o faziam jogavam em campeonatos separados.

Essa reportagem inaugura o Especial Copa do Mundo 2018 do  Portal Aprendiz – série de matérias sobre como o futebol constitui e questiona a identidade brasileira, relacionando a modalidade esportiva com a temática de direitos humanos, educação e direito à cidade.

Desde seus primórdios, o futebol reflete as profundas tensões sociais brasileiras. Seja nos anos 1930, quando começa a se popularizar e cria-se o mito do jeito malandro de jogar; seja na ditadura militar, com o governo de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), que usou os louros da Copa de 1970 para fortalecer o regime; ou no levante político da Democracia Corinthiana, movimento de autogestão do time paulistano que foi um marco ideológico na história do esporte.

Às vésperas da 21ª edição da Copa do Mundo 2018, o Portal Aprendiz conversou com Flávio de Campos, professor do curso de Pós-Graduação de História Sociocultural de Futebol da Universidade de São Paulo (USP). O coordenador do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) analisa como o futebol tensiona e dramatiza as profundas contradições sociais brasileiras em uma entrevista sobre apropriação de seus símbolos. Flávio fala também sobre como a resistência aparece nos campos, nas arquibancadas e nas ações políticas dos que jogam e acompanham o futebol.

Portal Aprendiz: É dito que o Brasil é o país do futebol. Essa premissa ainda cabe para explicar a paixão do povo brasileiro pelo esporte?

Flávio de Campos: O Brasil não é o país do futebol; ele é um dos países do futebol. Se consagrou, se constituiu no senso comum essa relação de identificação entre o futebol e a sociedade brasileira, como se fosse algo único. É importante atenuar isso. A sociedade argentina tem vínculos de cultura com o futebol diferentes do que o Brasil tem, mas com a mesma intensidade. Na Itália, é possível identificar também esses vínculos. Lá, a denominação futebol é o resgate de uma modalidade lúdica que existe no país desde a Idade Média que é o calcio, e isso está atrelado com a própria história dos povos que transformaram a península itálica. O mesmo vínculo pode ser enxergado na Turquia, na Inglaterra ou Espanha.

O Brasil é um dos países que tem no futebol sua principal modalidade desportiva e um dos elementos mais importantes do ponto de vista cultural. De tal sorte que o futebol adquire o papel de expressar determinados dilemas, contradições, paradoxos da sociedade. Recuperando um conceito do antropólogo Roberto DaMatta, por ser a modalidade esportiva mais importante da sociedade brasileira, dramatiza determinadas situações históricas. É uma dramatização coletiva e individual. Encena para nós mesmos e visibiliza questões que nós, enquanto povo, não conseguimos ver a olho nu. Ou as potencializa.

Portal Aprendiz: Quando você afirma que o futebol dramatiza determinadas situações, ou faz com que a sociedade consiga enxergá-las mais claramente, a que exatamente se refere?

FC: Comecemos então pelas jornadas de junho. As manifestações de junho de 2013 se iniciaram com o movimento puxado pelo Movimento Passe Livre (MPL), contra o aumento das tarifas. Imediatamente, as reivindicações cresceram e em dois aspectos se relacionaram com o futebol.

manifestantes protestam contra legado da copa
Em 2014, vários atos protestaram contra a Copa do Mundo. Crédito: Centro de Mídia Independente

Em primeiro, o parâmetro que se costumou falar nas ruas era o Padrão FIFA, padrão esse visto na constituição dos megaeventos, agenda no qual o país foi inserido com a Copa do Mundo de 2014. Essa agenda esportiva construiu um padrão FIFA de intervenção de política pública. Os manifestantes estabeleceram então como modular um elemento vinculado ao futebol como verificação da qualidade de políticas públicas na sociedade brasileira. O futebol serviu de referência, encenando e dramatizando as profundas contradições sociais.

Por ser a modalidade esportiva mais importante da sociedade brasileira, o futebol dramatiza determinadas situações históricas. É uma dramatização coletiva e individual. Encena para nós mesmos e visibiliza questões que nós, enquanto povo, não conseguimos ver a olho nu.

Em segundo, era possível identificar nas manifestações palavras de ordem retiradas das arquibancadas para as ruas. O canto enjoativo “Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, sempre foi proferido nas arquibancadas nos dias de jogos da seleção brasileira. O “Pula sai do chão, contra o aumento do busão!” é “Pula, sai do chão, vai ferver o caldeirão!”, um canto típico das torcidas do Rio de Janeiro, sobretudo, do Vasco.

Já o registro de cores significou determinadas posições de grupos que, no  limite, levaram a uma diferenciação ideológica. Lembremos que é deste 2013 que começa a aparecer uma palavra de ordem perigosíssima, que é a “sem partido“. “O Brasil não precisa de partido” ou “O Brasil é meu partido”. A partir daí se constrói uma significação atribuída a esse símbolo nacional – a camiseta verde e amarela – e também uma torcida verde e amarela.

Ela surge nas ruas de 2013, se diferenciando de outros grupos. Do grupo de preto, que era anarquista, autogestionário, libertário, questionador da Copa do Mundo 2014, que bradava pelo seu boicote. E também de um grupo incipiente e cauteloso, aparecendo com acanhadas bandeiras vermelhas. Eram diversos partidos de esquerda, cuja coloração socialista foi escorraçada em diversas manifestações.

Esse grupo verde e amarelo, à direita, bradava que o Brasil não precisa de partido, tinha uma vocação extremamente autoritária, posicionamento frontal contra as instituições, de desgaste e desânimo. Havia nele, também, o substrato de uma proposta fascistoide, que alimenta a ideia de que é melhor não ter democracia, não ter partido, e estabelecer um governo forte para resolver os problemas brasileiros.

Portal Aprendiz: Essa apropriação da simbologia futebolística volta a aparecer em outros momentos de tensão política. Por exemplo, nas eleições de 2014 e nas manifestações que culminaram, em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff.

FC: Em 2013, os índices de popularidade da presidenta Dilma Rousseff batiam recordes. Os 80% de aprovação eram avassaladores, nenhum outro presidente havia chegado a esses patamares. O prognóstico era de que as eleições de 2014 seriam uma barbada, ainda mais com a organização da Copa do Mundo. Entretanto, em 2013, as manifestações começaram a desidratar a candidatura da Dilma, afetando sua popularidade. E as eleições do ano seguinte acabaram com o menor percentual de diferença da história das eleições diretas.

O que há de interessante nessa apropriação de símbolos, dessa cromografia verde a amarelo, é quem de fato se apropriou dela. A Dilma não se favoreceu na organização da Copa. Ela foi xingada e vaiada na abertura por uma torcida verde e amarelo que era basicamente de classe média. Quem se aproveita, e perceba aí o paradoxo, do futebol como elemento encenador de contradições foi a oposição, que se aproveita de símbolos flutuantes como a camiseta. Os eleitores do Aécio Neves (PSDB) foram convocados a comparecer às urnas em 2014 trajando a camiseta da seleção brasileira.

Essa mesma torcida reaparece em 2015, nas manifestações querendo a derrubada da presidenta Dilma Rousseff. A massa verde e amarela ocupa as principais avenidas, clamando pelo impeachment, até conseguir. No dia em que é votado definitivamente no Senado Federal a destituições da presidenta, a esplanada está dividida com barreiras e esquema de policiamento de enfrentamento de jogos de clássico, entre uma torcida verde e amarela pedindo o impeachment e uma vermelha apoiando o mandato da Dilma. Nós a veremos novamente, no dia da prisão do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, em abril deste ano.

massa verde e amarelo
Manifestantes em São Paulo pedem pelo impeachment da então presidenta Dilma Rousseff / Crédito: Renato Stoclker (Jornalistas Livres)

E, por fim, nós a reencontramos poucos dias antes do início da Copa do Mundo de 2018, com a crise dos caminhoneiros. Essa trupe clama de joelhos por intervenção militar, beija a bandeira, aplaudindo os militares e destila ódio. Defende as maiores atrocidades, brutalidades, desprezíveis do ponto de vista humano, porque são pessoas que defendem abertamente a tortura, a censura, a eliminação do seus oponentes. Por sorte, houve um intervalo entre a crise dos caminheiros e o Mundial, senão a confusão iria ser maior.

Esse símbolo flutuante que é a camiseta verde e amarela tem uma polissemia de significados. Posso usar para torcer para a seleção brasileira, mas também posso carregar esse símbolo vinculado a esse grupo político que estabeleceu a derrubada da presidenta Dilma, que comemorou a prisão do Lula e que pede intervenção militar.

Portal Aprendiz: Essa apropriação também já aconteceu em outros períodos turbulentos da nossa história. Os governos autoritários da Ditadura Militar também se utilizavam de símbolos e da suposta harmonia social do futebol enquanto propaganda de seus regimes.

FC: Os anos 1970 foram os anos em que eu me alfabetizei no futebol. O que é se alfabetizar no futebol? É entender o jogo, o que são as 22 pessoas disputando uma bola, a dinâmica, o prazer de acompanhar por 90 minutos o que se passa no estádio. Para mim, o clique foi na Copa de 1970. Eu tinha sete anos e convicção de finalmente entender o que era futebol. Assistia a todas as partidas, tenho memórias afetivas de todas as campanhas brasileiras.

Na época da Copa do Mundo de 1970, o ditador Médici utilizou o futebol como um dos principais meios para solidificar seu regime. Ligava para os atletas para parabenizá-los após as vitórias e assistia aos amistosos antes da ida da seleção para o México. Essa proximidade não só criava uma imagem com a qual o povo brasileiro podia se relacionar, mas também uma relação entre o regime e a equipe brasileira, destacando o papel da disciplina e da hierarquia no sucesso obtido pela seleção.

Fonte: A importância da identidade nacional e o papel do futebol como elemento de sua construção, por Gustavo Giraldes.

Mas eu também tenho outra memória. Tenho a memória de toda propaganda ufanista que a ditadura militar estabeleceu em torno do futebol. Misturando e se apropriando dos símbolos nacionais em uma chave autoritária. De entrar na sala de aula e fazer ordem unida, que era uma fila de crianças ouvindo o hino nacional enquanto era hasteada a bandeira, e depois nós saíamos marchando. Crianças marchando. Havia, uma disciplina militar vinculada à apropriação de símbolos nacionais: a bandeira, o hino e a seleção brasileira.

O regime militar se apropria do futebol não só no Brasil, mas em vários países. Em 1978, a ditadura argentina se vale da conquista do título pela seleção de futebol na Copa do mesmo ano. A Itália de Benito Mussolini, na década de 1930, se beneficia do bicampeonato para reforçar politicamente seu regime.

Portal Aprendiz: Mas se o futebol é esse palco de encenação e dramatização dos eventos reais, nele também há amostras de uma força política e de contracultura? Isto é, também carrega identidades de resistência?

FC: A identidade é uma construção social. Nós não somos, nós construímos, é assim historicamente e sabemos que os elementos culturais podem se modificar. O que eu vejo de sensacional é quando o futebol sai do jogo em si para falar sobre questões raciais, de gênero, construindo outras identidades possíveis.

Quero lembrar expressões políticas muito bacanas. Em São Paulo, as torcidas organizadas, sobretudo, as do Corinthians e do Santos, fizeram um movimento interessante denunciando nas arquibancadas a máfia das merendas, mostrando o desvio dos recursos realizados pelo governo do PSDB, em 2016.

torcida carrega faixas
Faixas protestando contra a máfia das merendas / Crédito: Nelson Coelho

As mesmas torcidas têm atacado com veemência a Rede Globo, mas é claro é difícil ver porque a Globo não mostra em rede nacional. Têm também carregado mensagens importantes em suas faixas, como as colocadas nos estádio com os escritos de Marielle Vive!, referindo-se ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL). Não é à toa que está cada vez mais difícil entrar com faixas dentro dos jogos, porque há repressão e censura por parte da polícia e dos meios de comunicação.

Com relação às arquibancadas, presenças historicamente reprimidas começam a levantar questões de resistência. Coletivos feministas brigam pelo espaço mais que legítimo das mulheres nos estádios, combatendo o machismo e o sexismo.

Torcida feminista do Atlético Mineiro / Crédito: Divulgação Facebook
Torcida feminista do Atlético Mineiro / Crédito: Divulgação Facebook

A questão racial também transparece, como quando em 2014, o jogador Mário Lúcio Duarte Costa, conhecido como Aranha, interrompeu o jogo entre Grêmio e Santos quando uma torcedora o insultou. O racismo não é a novidade, ele é frequente na sociedade brasileira, mas sim as reações, que fazem um atleta, munido de um repertório antirracista, ter uma atitude tão necessária de se recusar a jogar frente uma situação de preconceito.

Ainda há, contudo, um longo caminho. O futebol é, sobretudo, um índice importante da construção de certa masculinidade no Brasil, e de afirmação desse homem violento, troglodita, que não chora, que dá porrada, que é violento com a mulher e com o homossexual. Mexer com a questão da homofobia dentro do futebol é uma tarefa difícil, por isso que as torcidas LGBT ainda têm tanta dificuldade, e se afirmam virtualmente, em redes sociais. Mas há sim, movimentos lutando contra a construção desse binarismo e heteronormatividade nas arquibancadas e nos campos.

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*Com colaboração do jornalista e cineasta Paulo Junior 

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