publicado dia 9 de fevereiro de 2018
Rodas de samba compostas por mulheres ocupam e ressignificam o espaço público
Reportagem: Cecília Garcia
publicado dia 9 de fevereiro de 2018
Reportagem: Cecília Garcia
No terceiro domingo do mês, uma tenda branca com mesas cobertas por chitas floridas é montada na praça Elis Regina, no bairro do Butantã, em São Paulo. Nela, quem dá o tom do xequerê, surdo e agogô, instrumentos tradicionais do samba, são as mulheres. Há dois anos, as rodas de samba da ocupação Samba da Elis mostram, na potência das mãos espalmadas no pandeiro e nos braços que seguram o tambor, que o lugar da mulher é na rua e no samba.
E sempre foi, pois tanto o ritmo – cadência melódica e corporal que migrou de países africanos para o Brasil com as populações escravizadas e se ramificou em diferentes sotaques em cada território do país – quanto as mulheres têm em comum a capacidade de resistir e lutar contra apagamentos e silenciamentos históricos, afirma Kelly Adriano de Oliveira, doutora em Ciências Sociais e autora de pesquisas relacionadas ao samba, gênero e raça. “A sobrevivência do samba como hoje o conhecemos só foi possível graças à presença feminina”, diz.
Onde nasce o samba?
Segundo Kelly de Oliveira, pesquisadores divergem sobre as origens do samba: para alguns, ele nasce na Bahia e no Rio de Janeiro, rotas de populações escravizadas que traziam o semba, ritmo batucado das regiões de Angola e do Congo. Há outros pesquisadores, entretanto, que veem o ritmo se originar simultaneamente nos mais múltiplos sotaques nas diferentes regiões de presença das mesmas populações, e adotar nomes diferentes, como Maracatu no nordeste ou o jongo na região do sudeste.
Por muito tempo, o ritmo foi considerado uma produção cultural de baixa qualidade e sofreu, ao longo da história, perseguição por partes de movimentos sociais e políticos que também atuaram contra outras manifestações de matriz africana, como a capoeira. Se conseguiu algum espaço dentro das escolas de samba, nas ruas encarava sua face mais violenta: “As rodas de samba sempre foram relegadas à clandestinidade e ao submundo. Por meio dos autos policiais, se consegue traçar a memória do samba, em especial, a memória do samba negro, porque este foi vítima de prisões aleatórias, depredação de escolas de samba e violência contra as rodas que eram dispersas com brutalidade”, conta a pesquisadora
O apagamento só não foi maior pelo fundamental papel exercido pelas mulheres, em especial, pelas mulheres negras, a quem o espaço público sempre foi negado. “Quando a violência corria solta nas rodas de samba, era dentro das casas, comandadas em sua maioria por mulheres, que continuavam. É também imprescindível a importância dos terreiros de religiões afro-brasileiras, onde mães de santo mantinham a musicalidade viva”, conta Kelly.
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É também mérito de uma mulher negra o pioneirismo da visibilidade feminina no samba. Com seu vozeirão, Dona Ivone Lara se tornou a primeira mulher a compôr um samba enredo vencedor, em 1965, com o samba “Os Cinco Bailes da História do Rio de Janeiro”, na escola Império Serrano. Na época, ela dançava na ala das baianas e escrevia composições sob pseudônimos masculinos.
Apesar da coragem e iniciativa de sambistas como a própria Dona Ivone, Jovelina Pérola Negra e Clementina de Jesus, ainda hoje quando se espia dentro de uma roda de samba, salta aos olhos a predominância masculina entre os instrumentistas. À elas, são dados, geralmente, os papéis de dança, canto ou o de figurar em composições e enredos compostos por homens.
E é justamente para abrir mais possibilidades dentro do ritmo que mulheres têm se unido para criar rodas de samba. O Samba da Elis e outros grupos resistem não só ao machismo presente no universo do samba, como também à hostilidade de uma cidade pouco preparada para receber a cultura em seus espaços públicos.
“Quando uma roda de samba feita por mulheres ocupa o espaço público, ela o está ocupando com um corpo político que foi silenciado por muito tempo e reivindicando uma identidade criativa, protagonista, inserida no mercado e que, por fim, tem todo o direito de ocupar a rua”, arrebata Kelly.
Hostilidade nos primeiros passos dentro do samba
Quando a hoje percussionista Cíntia da Silva começou a frequentar rodas de samba, ela não se viu representada. “Me incomodava muito a dinâmica, porque parecia que todas as mulheres só podiam estar dançando, e nem por elas próprias, mas para e pelos homens sambistas. Eu me perguntava onde estavam as instrumentistas e as compositoras”, lembra.
Foi da indignação de não encontrar-se ali que ela resolveu unir-se a um grupo de mulheres para aprender a tocar. Desde as primeiras reuniões, percebeu que todas colecionavam histórias parecidas. “Para uma principiante, que quer começar a tocar samba, chegar em uma roda masculina e enfrentar o preconceito pode significar a desistência”.
A experiência de Cíntia ecoa em muitas outras. Dentro dos espaços tradicionais do ritmo, como as escolas de samba, onde muitos musicistas iniciam suas carreiras, o entendimento de gênero se revela binário, como conta a musicista Verônica Borges, que já foi ritmista de uma das mais tradicionais escolas de samba de São Paulo: “Em muitos espaços que frequentei, eu era a única tocando instrumentos pesados de batucada. Quando uma mulher quer aprender um instrumento, o homem pressupõe que ela não tem força e entrega um instrumento considerado leve (agogô, por exemplo, considerado o mais antigo instrumento de samba.). O carnaval é o momento onde essa ideia de ‘determinismo biológico’ vem com toda força! Isso é absurdo”.
Atitudes como estas evidenciam o machismo que ainda permeia o samba e contribuem para perpetuar papéis de gênero dentro do ritmo. “Em geral, observando as crianças na escola de samba, a gente vê o tamborim com um menino e uma saia na menina; pra criarmos outras narrativas possíveis, temos que começar a ampliar as possibilidades de participação nos espaços possíveis no samba, deixar de oferecer apenas o que já vem preestabelecido. Vejo mudanças nesse sentido, mas ainda tímidas”.
Esta desconstrução é uma das premissas do Samba da Elis, do qual Cíntia é idealizadora e onde Verônica já tocou. O primeiro momento da ocupação é sempre uma roda aberta: entram nela mulheres de todas as idades que querem aprender a tocar ou simplesmente juntar-se às sambistas mais experientes, que generosamente compartilham seu conhecimento: “Unimos então as duas pontas: mulheres de muitos anos de estrada encontram um espaço para divulgar seu trabalho e tocar ao lado de jovens que acabaram de descobrir-se potentes com o instrumento em mãos”, conta Cíntia.
Resistência: a mulher ocupa a cidade
A cantora Maria Fernanda de Barros Batalha já presenciou muitas cenas de machismo dentro do Sambadas, grupo de sambistas que há mais de dois anos ocupa regularmente o Largo da Batata, região Oeste de São Paulo: “Já vi homem falando ‘não é assim que se toca’, cara arrancando a baqueta da mão de uma mana, rapaz emburrado atrapalhando e cantando mais alto do que eu”. Por isso, no samba tocado pelo grupo, os homens participam de duas maneiras: dançando e prestigiando.
Também é simbólico que elas ocupem o Largo da Batata. Quando em 2013 o espaço foi entregue à cidade após um processo de revitalização, mais parecia um deserto árido de concreto. Foi a mobilização da comunidade e ações como OCUPE A BATATA que foram dando contornos mais humanos ao território. Apesar disso, o Sambadas tem dificuldade de dialogar com a Prefeitura e muitas vezes se vê acuado por outros eventos cuja programação não é compartilhada.
Ainda assim, persistem, criando uma ilha de resistência onde todos podem vivenciar o samba de forma igualitária – aspiração que muitas vezes ganha concretude com gestos sutis: “Quando tem Sambadas, os banheiros do bar, que geralmente são divididos entre homens e mulheres, ficam abertos para ambos os gêneros; já ouvimos de mulheres que criamos um espaço seguro dentro de uma cidade que quase não os tem”, conta Maria.
O samba é para todos
Foi também acreditando no poder democrático da roda de samba que nasceu o Moça Prosa, grupo carioca composto por sete integrantes feministas. Atualmente, o grupo se apresenta no Largo São Francisco da Prainha, mas sua origem está ligada a um dos espaços mais catárticos da história do samba na cidade do Rio de Janeiro: a Pedra do Sal, região antes portuária por onde muitos navios negreiros atracaram e que tornou-se símbolo da resistência afro-brasileira e palco de diversas rodas de samba.
“Você tem um população de rua que pode se aproximar e curtir do mesmo jeito que alguém de uma cobertura de uma região nobre. A roda de samba é a cultura em sua forma mais livre, e é importante que nós, mulheres, possamos quebrar estigmas e ocupá-la”, diz Ana.
Cada som dali ecoado é também um ato de coragem: “É sempre um risco tocar na rua. A prefeitura não dialoga e não apoia a ocupação, a polícia pode passar e considerar a aglomeração perigosa. O que fazemos então é resistir contra a burocracia, a violência, mostrando que esse é um espaço para todas e todos”.
Compondo um novo samba
O Samba da Elis continua a ocupar a praça, em simbiose com a comunidade ao seu redor: o grupo está em constante contato com os moradores para convidá-los a participar e também para diálogos sobre como continuar sem incomodar os horários de descanso, além de trabalhar com o Centro Cultural Butantã. Além da roda aberta, a ocupação abre horários para intervenções artísticas de outros gêneros e shows de grupos de samba, desde que formados majoritariamente por mulheres. Se antes eram colecionadas histórias de repressão, hoje as narrativas tecidas são outras:
“Os relatos agora são de mulheres que começaram a fazer música por meio do Samba da Elis e também de outras que, já tendo desistindo, resgataram sua paixão porque sentiram finalmente que encontraram seu lugar”, diz Cíntia. O grupo começa agora a realizar encontros para que compositoras e mulheres interessadas em escrever seus sambas possam se encontrar e unir experiências
No Largo do Batata, o Sambadas não só é símbolo de representatividade feminina no samba, como também um ponto de encontro para outras populações que sofrem repressão, como a comunidade de mulheres negras e LGBT: “Dentro de uma ilha de concreto, nós conseguimos criar uma ocupação para mulheres de todos os lugares da cidade”, finaliza Maria. “Amamos a pluralidade do Largo que tanto se tenta apagar: tem sertanejo, tem forró, tem evento acontecendo, e é nessa polifonia que gostamos e precisamos, enquanto musicistas, mas principalmente, enquanto mulheres”.
Onde vê-las?
Samba da Elis
Toda terceiro domingo do mês, começando às 15h com a roda de samba aberta e terminando por volta das 20h
Endereço: Rua Pereira do Lago, 100, Butantã – São Paulo
Sambadas
Toda sexta-feira, das 20h às 23h
Endereço: Rua Fernão Dias, 682, Pinheiros – São Paulo
Moça Prosa
Todo terceiro sábado do mês, às 18h
Endereço: Largo São Francisco da Prainha, 5 – Saúde, Rio de Janeiro