publicado dia 3 de janeiro de 2018
Presença de migrantes leva Cieja Perus a propor currículo intercultural
Reportagem: Nana Soares
publicado dia 3 de janeiro de 2018
Reportagem: Nana Soares
Das cerca de 10 milhões de pessoas que habitam o Haiti, um milhão e meio ficaram sem ter onde morar no dia 12 de janeiro de 2010. Nesse dia, o país caribenho foi atingido por um grande terremoto que mudou sua história, matando mais de 230 mil pessoas e deixando milhões de desabrigados. A destruição foi tamanha que causou um êxodo em massa do país, sendo o Brasil um dos destinos dos homens e mulheres em busca de um recomeço.
Uma vez no Brasil, as dificuldades são muitas, mas a barreira linguística se apresenta como o primeiro obstáculo com efeitos em cascata, que serão sentidos na educação, na empregabilidade, na autonomia para andar pela cidade, etc. Por isso, aprender o Português é fundamental para o processo de adaptação no novo país. Em Perus, zona noroeste de São Paulo, dos cerca de 700 cidadãos haitianos que vivem na região, 190 estão matriculados no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA) local, número que aumenta a cada ano.
“A demanda cresceu muito de 2016 para 2017 e os alunos haitianos constituíram-se uma turma própria com suas particularidades, destacando-se o desejo e a necessidade de se apropriar do português”, explica a educadora Cristiane Fialho que, a partir da chegada desses estudantes, percebeu que o currículo da escola precisava de mudanças.
Como explica a professora, as aulas regulares não faziam sentido para os migrantes já que eles não entendiam a Língua Portuguesa. Além disso, muitos dos estudantes já vinham escolarizados do Haiti. A equipe da escola uniu-se então para pensar formas de criar um diálogo intercultural, que ampliasse as interações entre os estudantes brasileiros e haitianos, convertendo a escola em um espaço de acolhimento para essa população. Foi o nascimento do projeto “O Haiti é aqui….em Perus!”
Um novo currículo
Para endereçar as demandas diagnosticadas pela escola, o português foi reforçado com aulas em todos os dias da semana e conteúdos sobre a cidade de São Paulo, Perus, história e geografia brasileira foram incluídos. Cristiane, que dá aulas de Português, reforça que esse processo foi pensado sem deixar de respeitar e absorver todo o conhecimento trazido do Haiti.
“A demanda era muito clara. Por isso, embora a adaptação seja complexa, ela também é, de certa maneira, fácil”, declara Cristiane, que tem permitido que os interesses, curiosidades e dúvidas dos estudantes norteiem os assuntos trabalhados em sala de aula. As músicas, por exemplo, entraram como ferramenta para ampliar o repertório de quem está aprendendo a língua portuguesa. E como muitos dos matriculados estão em níveis muito iniciantes da língua, uma saída foi utilizar canções em Francês ou Creole, para que eles possam traduzir com a ajuda dos colegas.
Nessa configuração, as aulas têm de ter começo, meio e fim no próprio dia. Isto é, o conteúdo não pode “continuar” até a aula seguinte, já que as faltas são frequentes, especialmente porque os estudantes precisam conciliar a escola com o trabalho. Entender esse fenômeno e aumentar o número de aulas de português foi essencial para o sucesso do projeto e fez com que imigrantes haitianos de diversos territórios de São Paulo se matriculassem no CIEJA Perus.
“Há outras escolas para esse público, mas o foco na língua é menor. Além disso, atendemos em dois horários, o que faz toda diferença para a rotina dos estudantes, que não podem recusar oportunidades de trabalho”, explica a professora.
Cultura como vetor
Executar um currículo específico ainda tinha como tarefa reverter o cenário de isolamento dos haitianos identificado pela escola. Para isso, a equipe criou uma Feira Cultural Haitiana, realizada em junho de 2017. O objetivo do evento era apresentar a cultura haitiana: culinária, música, vestimentas e a história do país. “Para que todos pudessem entender quem eles eram e de onde vinham.”
Todo o conteúdo foi desenvolvido pelos estudantes da unidade, que ministraram oficinas de música haitiana, cozinharam e convidaram os brasileiros a assistir as aulas. Além de alunos e professores, moradores da região também participaram e colaboraram com a festa.
O evento foi tão bem sucedido que fez crescer o número de migrantes matriculados na escola. Hoje eles se dividem em duas turmas, diferenciadas pela familiaridade dos alunos com o idioma. A Feira de cultura haitiana inspirou também uma sobre o Brasil, realizada meses depois, e a ideia é torná-las fixas no calendário escolar.
Educandos e educadores
Um dos resultados da integração entre alunos de diferentes nacionalidades foram as aulas de idiomas ministradas pelos haitianos. Frente às dificuldades do Português e de comunicar-se em uma nova língua, três estudantes se voluntariaram para ensinar Francês e Creole para a comunidade escolar. Estas aulas compõem as oficinas oferecidas pelas escola às sextas-feiras, que colocam os alunos como educadores, permitindo que compartilhem seus conhecimentos com os colegas.
Para Cristiane Fialho, as ações são importantes e já melhoraram a relação com o novo país, mas ainda há muito trabalho pela frente. “Eles estudam majoritariamente à noite, então o resultado ainda está restrito a esse período”, analisa. “Mas a estranheza entre as partes que observávamos antes já não existe mais.”
Integrar pessoas de diferentes culturas e repertórios exige da escola uma aproximação de mundos, exercício que envolve adaptação e abertura de ambas as partes e que, na opinião de Cristiane, traz resultados da mesma intensidade. “Todos do CIEJA estão aprendendo muito com esse intercâmbio cultural. É uma troca em que todo mundo ganha.”
Territórios Educativos
O projeto “O Haiti é aqui….em Perus!” foi um dos 10 contemplados pela 2ª edição do Prêmio Territórios Educativos, iniciativa do Instituto Tomie Ohtake em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e patrocínio da Estácio. O prêmio busca reconhecer e fortalecer experiências pedagógicas que exploram as oportunidades educativas do território onde a escola está inserida, integrando os saberes escolares e comunitários. Este ano, o programa recebeu 67 inscrições oriundas de todas as Diretorias Regionais de Ensino de São Paulo e de diversos tipos de unidades escolares.
Confira os outros projetos vencedores.