publicado dia 28 de junho de 2017
Territorializar a educação é chave para o combate às desigualdades sociais
Reportagem: Nana Soares
publicado dia 28 de junho de 2017
Reportagem: Nana Soares
Para entender a educação nas periferias, suas limitações e possibilidades, é preciso olhar para além dos números e perceber que os indicadores são fortemente influenciados pelos territórios. Desse modo, as políticas públicas educacionais também precisam levar em consideração as diferenças socioespaciais. Esse parece ser o consenso de quem está atua, vive e estuda (n)as periferias.
Quando foi divulgado em 2015, o estudo “Educação em territórios de alta vulnerabilidade” apontou que o aspecto socioespacial influenciava diretamente a educação. Quanto mais periféricas as escolas, maior a rotatividade dos professores, ficando os mais despreparados nos territórios mais afastados. A pesquisa demonstrou que essa configuração centro-periferia opera na cidade como um todo, mas também dentro de cada região.
Realizado no distrito de São Miguel Paulista, território onde a Fundação Tide Setubal atua desde 2006, o estudo do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) identificou que ali, 21,5% dos moradores viviam em áreas de vulnerabilidade social alta ou muito alta, impactando diretamente a qualidade da educação pública da região.
Embora essa lógica, em particular, possa ser aplicada em outras periferias, as políticas públicas de enfrentamento à desigualdade social e educacional não podem ser as mesmas, como enfatizou Neca Setúbal, presidente do Conselho da Fundação Tide Setúbal. A socióloga reafirmou que os dados, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), mostram apenas uma média que, se vista de perto, revelam realidades distintas.
“Muitas vezes a média do resultado da educação nas periferias não é tão diferente do da cidade, o que acontece é que as diferenças se dão dentro das próprias periferias. Em São Miguel Paulista, Campo Limpo ou outras regiões de São Paulo, se reproduz a lógica da cidade de ter um centro melhor e mais bem equipado, com maior urbanização, acesso a transporte, etc. E quanto mais distante do centro da região, mais vulnerável. Isso mostra que o território importa – e muito – quando pensamos educação”, explica.
De acordo com o professor da Faculdade de Educação da Unicamp, Maurício Érnica, as cidades criam seus circuitos de socialização e de escolarização. Em outras palavras: as oportunidades educacionais mais restritas estão nos bairros mais pobres e as melhores escolas privadas estão concentradas em um outro pedaço da cidade. Há ainda indícios de que alunos com atributos sociais semelhantes (recursos econômicos, escolaridades dos pais, etc) têm desempenhos escolares diferentes de acordo com a região em que estudam.
Ou seja, as oportunidades de formação estão ligadas ao desenvolvimento sociocultural e econômico do território. Nas palavras do professor, o Brasil precisa adotar políticas de discriminação positiva para corrigir essa situação, porque uma oferta universal continuaria reproduzindo a mesma desigualdade regional. “É necessário uma oferta específica e de alta qualidade para grupos que precisam e que têm seu potencial de desenvolvimento bloqueado. Para reproduzir a desigualdade, basta garantir a oferta igual para todos em um contexto em que as realidades são diferentes”, defendeu.
Na opinião de Neca Setúbal, atingir os territórios de maneiras específicas e particulares também é o que garante a universalização dos direitos. “É necessário pensar políticas que levem em conta as histórias, valores e saberes de cada localidade, quais são seus problemas e potenciais.”
É por isso que Tony Marlon, jornalista e criador da Escola de Notícias, acredita na importância de se evidenciar a pluralidade das periferias, já que cada território tem uma dinâmica muito diferente do outro. “Quando falamos de periferias, precisamos ter em mente que nunca vamos conseguir dar conta de sua complexidade. Só o Campo Limpo, em São Paulo, tem mais de 600 mil pessoas”. É lá que Tony cresceu, vendo os conhecimentos gerados serem ignorados pelo centro, e é lá também seu local de atuação com a Escola de Notícias.
“Os gestores públicos precisam descer do pedestal, porque embora o conhecimento técnico seja muito importante, as pessoas não são números”, ressaltou. “É preciso se ‘desapaixonar’ pelo processo e constantemente checar se eles fazem sentido para quem está participando deles – e não para quem os idealizou.”
Políticas públicas
Não basta instalar equipamentos públicos nas periferias de maneira vertical e autoritária. As modificações nos territórios não podem ser fachada e o caminho para isso é pensá-las em conjunto com a comunidade. Neca Setúbal usou o exemplo de São Miguel Paulista, onde o Fórum de Moradores se articulou e, a partir disso, a região recebeu duas novas creches e uma escola. “Isso não surge do ‘Olimpo’, de meia dúzia de pessoas que acharam bacana, mas de um projeto de anos do fórum de moradores”, relatou ela. Agora os moradores estão construindo um Plano de Bairro participativo para propor decisões urbanísticas nas áreas de iluminação, segurança, resíduos sólidos, pavimentação, transporte, dentre outros.
A Fundação Tide Setúbal tem como princípio a escuta e o trabalho em conjunto com a comunidade para poder enfrentar as desigualdades dos territórios. Por isso, Neca sustenta que a escuta é muito mais do que marcar uma audiência e perguntar quem tem ideias para aquele lugar, mas refere-se a ir até os moradores, conhecer de fato seus ambientes e condições de vida.
“Estamos ainda muito longe da garantia de direito para todos. Embora algumas periferias, principalmente de São Paulo, tenham equipamentos públicos de saúde e educação, eles não têm qualidade. Se os professores não ficam, há abstenções, demitem os coordenadores pedagógicos e não há programas e políticas específicas, não tem como garantir educação de qualidade.”
Diante desse cenário, Tony Marlon faz um alerta para que não se romantize as inventividades desses territórios, já que nem só de “faltas” em relação ao centro vivem as periferias. Na opinião do jornalista, boa parte dessa inventividade se dá justamente por causa da falta de equipamentos e políticas públicas nas regiões e, portanto, não deveriam sequer ter sido necessárias.
“É incrível que as pessoas deem um jeito, mas seria mais incrível ainda se o Estado cumprisse sua obrigação. Nós não temos tantos equipamentos assim, boa parte deles são na verdade equipamentos inventados pelo próprio território e que acabam sendo legitimados anos depois”, avalia Marlon. “É aquele terreno que virou um campinho e que alguém fala que vai transformar oficialmente num campo de futebol.”
Como ficam os estudantes?
Em um contexto de políticas insuficientes e pouco diálogo, as ocupações de escolas pelos estudantes secundaristas, que espalharam-se pelo Brasil em 2015 e 2016, reivindicando uma educação de qualidade (através de pautas como o fim da reorganização das turma, contra o fechamento de unidades e pela transparência no uso da verba das merendas), exemplificam bem como se dá a integração entre território e escola.
“Essa foi a melhor reforma de ensino que eu vi. Os espaços de jeito nenhum foram esvaziados fisicamente, pelo contrário: as escolas foram protegidas, receberam oficinas das mais diversas áreas. Eu presenciei uma doceira do bairro indo até uma escola ensinar os alunos a fazer doces. É o aprendizado do mundo real, o que faz sentido para eles”, disse Marlon, numa visão compartilhada por Neca Setúbal de que as ocupações deram visibilidade aos interesses dos estudantes, até então raramente levados em conta.
“Os secundaristas mostraram que querem escola sim, que é fundamental, só que precisa ser uma escola que faça sentido”, disse a socióloga. Neca ponderou, entretanto, sobre como esse processo se complexifica à medida que as decisões políticas são tomadas a cada quatro anos.
Página 22
Neca Setúbal, Tony Marlon e Maurício Érnica estiveram presentes, na manhã do dia 26 de julho, no seminário ‘Periferias urbanas: territórios de desafios e possibilidades no enfrentamento das desigualdades’, que abordou os desafios para a criação e implementação de políticas públicas nas periferias urbanas. Realizado pela Fundação Tide Setúbal, em parceria com o Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces) da FGV, o evento marcou o lançamento de uma edição especial da Revista Página 22, dedicada ao tema Periferias. A edição revisita os conceitos de centro-periferia e mostra a importância de olhar também para a potência dos territórios de alta vulnerabilidade.