publicado dia 4 de agosto de 2016
Ocupar as eleições: movimentos buscam refazer a democracia e transformar a política
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 4 de agosto de 2016
Reportagem: Pedro Nogueira
“Temos a Bancada da Bala. Temos a Bancada do Boi. Temos a Bancada da Bíblia. Precisamos de uma Bancada Ativista”, diz o gif compartilhado pela página do Facebook do grupo – Bancada Ativista – que está atuando de maneira colaborativa, independente e suprapartidária para apoiar nove possíveis candidaturas em São Paulo. São pré-candidatas/os que caminham em direção aos princípios de transparência, participação social e inovação pública, compreendidos “transversalmente” a pautas como feminismo, meio ambiente, racismo e desigualdade social.
“A gente quer é transbordar as eleições e fortalecer a resistência popular”, afirma Áurea Carolina, uma das doze pré-candidatas que serão lançadas em Belo Horizonte pelo movimento “Muitxs pela cidade que queremos”, que há mais de um ano se reúne em praças, parques e espaços públicos da capital mineira para elaborar coletivamente os programas e a campanhas para Câmara de Vereadores. “Atuamos em vários espaços da cidade há anos contra a gestão mercantilizada do patrimônio público, pela igualdade racial, em prol da mobilidade, feminismo e dos movimentos LGBT. Agora precisamos romper a barreira institucional. Representatividade importa e faz diferença ter mulher, ter negra, ter mulher trans negra, ter um homem gay, ter um sem-teto.”
Princípios da Bancada Ativista
“Nós somos irredutíveis em relação à garantia e promoção dos direitos humanos, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais e os direitos civis e políticos.Nós acreditamos em uma cidade coletiva, humana, diversa, com os espaços públicos como protagonistas. Nós acreditamos que o combate às desigualdades sociais e econômicas deve orientar as políticas públicas nas cidades. Nós acreditamos na abertura, na transparência e na participação como mecanismos de transformação política e forma de enfrentamento à corrupção. Nós não toleramos práticas discriminatórias de nenhuma natureza. Nós acreditamos que não existe desenvolvimento sem a conservação e regeneração do meio ambiente. Nós acreditamos na defesa incondicional do Estado Democrático de Direito e do Estado Laico.”
Ambas as iniciativas surgem em um momento de descrédito e crise da política institucional. Mais do que fornecer bandeiras vazias e palavras de ordem amplas, apostam em novas formas de participação social, propondo a redução de salários e cargos comissionados, o compromisso com a transparência e o controle social, fazendo do processo eleitoral mais do que a escolha de representantes: um espaço real de aprendizado político.
Com candidatos respaldados por experiências de mobilização social e ativismo, mas pouco representados nas câmaras e parlamentos brasileiros, as eleições de 2016 podem expressar nas urnas as diferentes narrativas de cidade que o Brasil vem projetando nos últimos anos. “Eu só acredito na política que acontece na cidade, nesse sentido de um lugar no qual ela se torna real, as questões são reais, as pessoas são vizinhas, você as encontra na rua. Temos que sair do efeito maniqueísta, bipolarizado e congelado que não vai a lugar nenhum. Queremos ocupar a cidade e fazer mandatos diferentes com propostas reais”, aponta o jornalista Roberto Andrés, que participa do Muitxs.
Mal-estar
Após a votação do impeachment, analisa Georgia Nicolau, da Bancada Ativista, houve um grande mal-estar com o que é o Congresso Nacional. “Quem são essas pessoas? Esses homens brancos que se arvoram no nome de Deus, da família? Eu quero alguém que me represente. Que represente minha opinião”, avalia, acreditando que essas eleições podem ser marcadas por “votos de opinião”.
“A sociedade se move muito mais rápido que as instituições”, afirma Caio Tendolini Silva, da Bancada Ativista. Ele também integra o Update Politics, uma iniciativa que desde 2015 vem mapeando o ecossistema latino-americano de inovação politica, identificando experiências disruptivas e práticas emergentes na região. “É um laboratório de compreensão, difusão e promoção de trocas entre os atores dessa área, em busca de uma América Latina mais democrática, com práticas políticas renovadas e mais participativas, organizações e indivíduos mais atuantes, para a construção de sociedades menos desiguais, mais justas e mais inclusivas.”
Certos de que a inovação na política não está vinculada às novas tecnologias, nem tampouco a “digitalização dos status quo”, o Update Politics partiu pelo continente para entender o “que acontece na borda da política”. “Para além da crise de representação e da econômica, há uma crise de referências: a gente não sabe para onde olhar e ver um caminho, um tipo de organização. Resolvemos atuar sobre isso.”
Encontraram no México, na cidade de Jalisco, o mandato de Pedro Kumamoto, o primeiro parlamentar independente eleito no país, com mais de 50 mil votos conseguidos com um baixo orçamento e muito pé na rua e batida de porta. Acharam no Chile, Giorgio Jackson, um dos líderes das mobilizações estudantis de 2011. Na Argentina, o Partido La Red, que apesar de não ter ganho as eleições, prototipou o aplicativo Democracy OS, uma plataforma online de construção colaborativa de projetos de lei que já foi instalada em mais de 17 cidades no mundo. Além dessas, outras iniciativas que encurtam distâncias entre o Estado e a sociedade civil figuram na plataforma.
“Percebemos um ecossistema frágil, no qual as pessoas não se reconhecem coletivamente. Hoje, o impacto ainda é muito pequeno e localizado, mas nossa aposta está em potencializar esses campos, atualizar a democracia para uma democracia do século 21. Criar pontes, dar visibilidades e coletar aprendizados e possibilidades de atuação para construir uma democracia que reduza a distância entre a sociedade e o poder público. Saímos sem qualquer resposta, mas é um processo de aprendizado contínuo que queremos fomentar.”
A plataforma Avaaz, conhecida por seus abaixo-assinados, começou uma campanha para estimular a formação de novos líderes brasileiros. Quem se interessar pode indicar pessoas que confie e que gostaria de ver eleita para o parlamento. Nela, além de indicar, é possível apoiar candidaturas populares já estabelecidas. Confira a campanha “Candidaturas Improváveis – Entre na Política”.
O vislumbre da situação na América Latina, em conjunto a outros experimentos, como a pesquisa O Sonho Brasileiro da Política – que estudou a participação e os anseios da juventude no país, ajudaram a embasar a Bancada Ativista, que Caio qualifica como “uma construção e não um selo”. A ideia, assim como com o Muitxs, é criar comitês comuns, ateliês de construção de materiais e fornecer uma base de apoio não só para as eleições, mas também para os possíveis eleitos. “A gente sabe que as eleições, para nossas pautas, podem ser mais um sete a um. Mas queremos que nosso um seja um golaço”, brinca Tendolini.
Candidaturas rebeldes
Indo para sua segunda campanha – a primeira foi para deputada estadual, em 2014, Isa Penna, uma jovem pré-candidata feminista do PSOL, defende a importância dessas iniciativas para a construção de novas parcerias entre os setores progressistas, que ela considera sub-representados na política institucional. “Queremos uma candidatura que rompa distanciamentos entre pessoas e a cidade. É nesse campo que podemos agir e mudar a vida das mulheres”. A pré-candidata, que constrói a plataforma “SP pras Minas!” afirma que a decisão de sua candidatura parte justamente da necessidade de trazer cada vez mais mulheres para a construção de políticas públicas.
“Queremos descentralizar a construção de uma política feminista, que seja concreta e cause mudanças reais no cotidiano. Só uma mulher sabe o terror que é andar numa rua sem iluminação à noite”, analisa. “Estamos em um momento em que não nos dispomos mais a ser secundarizadas, a voltar para o lar. Mas isso acontece em meio a um avanço conservador temeroso, então, colocar-se coletivamente é essencial”, propõe.
Em Belo Horizonte, Cristal Lopez diz que há várias formas de se fazer política. “Eu sou bailarina, atriz e performer e, na minha opinião, nesses dezesseis anos de atuação artística eu sempre falava de política, daquilo que me afeta diretamente.” A ativista trans é uma das doze candidatas dos Muitxs, a primeira candidata transexual de Belo Horizonte. “Além de propor um mandato aberto, eu sou uma candidatura não heteronormativa. Isso quebra a tradição política falida que temos”, provoca.
Se não for eleita, Cristal diz que lidará “sem qualquer neura”. “Só de participar desse processo, além da experiência, pode ser um convite: uma mulher, trans, negra, participando, sabe? Quem sabe nas próximas mais mulheres e homens trans tenham coragem de entrar. Sempre alguém tem que começar a abrir portas para o futuro e se tem que ser alguém, que seja eu.” Além dela, outras candidaturas trans também pipocam pelo país, como por exemplo Indianara Siqueira, no Rio de Janeiro, e Amara Moira, em Campinas (SP).
Com 15 anos de história de ativismo, Áurea Carolina está no páreo para vencer. Atualmente, se dedica exclusivamente à campanha eleitoral, pelo PSOL de Belo Horizonte, com fôlego adquirido ao longo de sua trajetória na política: cantora de rap no início dos anos 2000, Áurea conta que acessou diferentes agendas – a feminista, a do movimento negro, a da juventude, dos grupos ligados à cultura, o direito à cidade – tudo através do Hip Hop. Com formação em Ciências Sociais e mestrado sobre a inclusão de mulheres jovens na política, diz ter uma trajetória híbrida entre as lutas e academia.
“Como educadora popular também fundei o Fórum das Juventudes da Grande Belo Horizonte, onde temos como pauta prioritária o fim do genocídio da juventude negra e periférica. E isso envolve toda vida social: segurança pública, educação democrática, orçamento público. Como feminista interseccional, vi que não se pode pensar gênero e raça sem atravessar milhares de lutas, são todas convergentes”, declara.
Para exemplificar seu ponto, cita o exemplo das ocupações de moradia urbanas. “Lá estão as mulheres discutindo educação, saúde, gênero, ou seja, a moradia agencia diversas lutas, por isso há que se pensar a política em sua integralidade”. Para desenvolver alguns deste temas, confira abaixo a conversa de Áurea com o Portal Aprendiz.
Portal Aprendiz: O que você – e o Muitxs – querem nessas eleições?
Áurea Carolina: Nossa intenção é ocupar a eleição com cidadania e ousadia, para construir mandatos coletivos radicalmente democráticos, que irão transformar a lógica da carreira e do benefício próprio. Queremos criar espaços de resistência e fazer a diferença em política públicas, dizendo que é possível conquistar direitos para os grupos subalternizados, construir projetos colaborativamente e denunciar violações nessa arena coletiva que iremos chamar de mandato. Esse espaço, essa construção permanente, para além do trabalho legislativo, pode ser educativo, de mobilização, ou seja, acreditamos que se você votar em uma candidata da Muitxs, você votou em todos. Estamos indo para ganhar e não estamos de brincadeira.
Portal Aprendiz: E como se dará a construção desse espaço coletivo?
Áurea: Estamos numa fase crítica de trabalho pesado de organização dessa campanha coletiva, mas cada candidatura terá sua especificidade. Ainda assim, há um esforço para se pensar conjuntamente a política. Nossa plataforma online, o muitas.org, é um repositório livre de ideias e qualquer pessoa pode apresentar propostas, opinar e votar naquela que mais gosta e isso se torna um referencial político para a gente.
“No contexto de golpe, é urgente termos representatividade nos espaços de poder”
Fora da plataforma, temos um acúmulo muito grande de lutas feministas, negras, juvenis, de Hip Hop, de moradia, LGBTT, mobilidade urbana e ambientalista. São pautas pulsantes e essas ênfases nos ajudam a costurar os laços comuns. Queremos entrar na institucionalidade para fazer diferente, com redução de salário, ter um mandato equilibrado sem cabide de emprego. No contexto de golpe, é urgente termos representatividade nos espaços de poder.
Portal Aprendiz: Você mencionou a potência educativa de um mandato aberto. Você poderia desenvolver isso?
Áurea: Isso é algo que estamos construindo, não há nada pronto, mas eu penso que um mandato se torna educativo na medida em que envolve a população na hora de pensar sobre as políticas públicas e os direitos. O que significa conquistar isso pelo Estado? E para além dele? Discutir gênero e sexualidade na educação é uma demanda de política pública, mas também uma demanda social. Para efetivar isso, precisamos convencer a população da importância deste debate, dos altos índices de violência machista e assassinato de mulheres e como isso tem a ver com uma educação machista. Também, para contrapor essa mídia antidemocrática e essa Escola Sem Partido, é preciso ter uma pegada pedagógica. Eu sou educadora popular e minha prática mostra que ninguém se engaja a nada se não entende o assunto com convicção. Então, entendo que um mandato pode ser um instrumento de debate, de investir em ações e fortalecer as resistências, criar acontecimentos de encontros, em oficinas com jovens nas quebradas e ocupações urbanas, da população poder conversar sobre isso com a gente e formar uma cultura de debate público no Brasil – que é inexistente. Um mandato pode ser uma ferramenta para promover uma educação emancipatória, que contrarie essa educação controlada que não tem nada a ver com cidadania. Nós mesmos, não temos nada pronto. Temos desejos e diretrizes básicas, mas queremos ouvir. E ouvir muito, porque a escuta é um processo educativo de encontro e convivência.
Portal Aprendiz: E de que maneira isso pode influenciar a política nacional?
Áurea: Olha, do ponto de vista da institucionalidade, o momento é de trevas, é desesperador. Temos perdas assustadoras com uma velocidade muito brutal, o desmantelamento de políticas de cultura, de mulheres, racial, tudo isso o governo golpista tratou de eliminar do mapa e isso tem um efeito muito devastador para a população. Acabou a verba para nós de baixo. No campo social, observamos com preocupação essa arrancada ultraconservadora que sai do armário e se apresenta sem o menor constrangimento, alicerçada pelo aumento de uma conduta antidemocrática e por uma ampla e conivente retaguarda institucional.
“Não lutar, agora, significa morrer”
Mas, no meio dessas trevas, há um processo bonito de reorganização popular, de ocupar as eleições, de coletivos independentes que não se acanham em lutar por direitos e por justiça e que não deposita todas suas fichas no Estado, afinal, ele é feito historicamente para oprimir. Mas a gente tem que ter nosso campo autônomo lá. Abrir mão de ocupar isso é vacilo, porque eles estão nadando de braçada e se a gente não criar flancos de contraponto, vamos amargar derrotas muito piores para a população mais vulnerável. Não lutar, agora, significa morrer, significa continuar fazendo parte das estatísticas macabras. A nossa responsabilidade é muito grande e eu assumo isso ao me candidatar. Não posso me omitir.