publicado dia 20 de julho de 2016
7 livros infantis que retratam infâncias em situação de refúgio
Reportagem: Redação
publicado dia 20 de julho de 2016
Reportagem: Redação
Por Carolina Pezzoni, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
“Naquela noite de férias, antes de dormir, o único livro infantil que se sobressaía no criado-mudo, em meio à pilha de livros de adultos, era A Cruzada das Crianças, um poema narrativo do escritor alemão Bertold Brecht sobre a trágica jornada de uma trupe de crianças em meio aos horrores da Segunda Guerra – um tanto incomum para o repertório de uma menina de cinco, pensei, ressabiada. Mesmo assim, ofereci, e ela, intrigada com o desenho da silhueta rota de duas crianças de mãos dadas, contra um fundo branco infinito, quis conhecer essa história.
Primeira estrofe, fogo e sangue; segunda, criança órfã; quarta, fome e ruínas. ‘O que são ruínas?’ – ela interrompeu para perguntar. ‘O que ficou destruído, como uma cidade depois de uma guerra, por exemplo.’ ‘Sei…’, comentou, pensativa. Sigo lendo os versos, já quase sem fôlego, mais batalhas e dor, e uma nova interrupção: ‘Se essas crianças não têm família, nem casa e estão sozinhas, podemos dizer que também estão em ruínas, não é?’ Pela primeira vez em sua breve vida, ela perdia o sono com as brutalidades da guerra.”
Nomear para uma criança um mundo inscrito em violência, admitindo que não “era”, mas sim “é uma vez”, pode parecer uma tarefa inoportuna ou até estapafúrdia. Não fazê-lo, porém, pode ser uma forma de ignorar seus recursos internos para se sobrepor à dor, inventando e criando outras narrativas de vida. É do que trata, entre outras reflexões sobre o contato das crianças com a literatura, a escritora Yolanda Reyes, em seu artigo “Escrever para os jovens na Colômbia” (publicado no livro “Ler e brincar, tecer e cantar”, da editora Pulo do Gato).
“Se é bem verdade que as palavras não curam feridas físicas, nem podem devolver as páginas da história para inventar finais menos tristes, seus poderes simbólicos nos acolhem em tempos difíceis, para deixar passar a dor e fazê-la suportável”, escreve a autora. Em consonância com este olhar, a mediadora de leitura Luciana Gomes, responsável pela Sala de Leitura na Escola Estadual Governador Miguel Arraes, no bairro paulistano de Paraisópolis, não se furta ao risco de apresentar às crianças livros infantis com histórias difíceis das quais muitas vezes são protagonistas.
“Essa questão, se o livro é ou não para criança, para mim ainda é muito grande”, revela, afirmando, porém, que em seus critérios de escolha considera muito mais aspectos de gênero e qualidade do que faixa etária. Um dia, durante uma “roda de devolutiva” (quando os alunos devolvem os livros emprestados por uma semana e conversam em pequenos grupos sobre suas leituras), surpreendeu-se ao notar Edivan declamando Um outro país para Azzi, em meio aos colegas do 5º ano do Ensino Fundamental.
“Ele recitava na íntegra as primeiras páginas do livro”, relatou Luciana. “Perguntei como havia memorizado as falas e ele me contou que tinha lido o livro mais de 10 vezes, pois queria lembrar a história para narrá-la à avó, com quem tinha vivido uma história semelhante.”
A identificação do aluno de Luciana com a leitura de Um outro país para Azzi foi tão forte que ele quis um exemplar para si. “Quando o empréstimo chegou ao fim, Edivan me pediu para renovar. Disse que queria ter este livro por mais tempo, para guardar”, descreveu a mediadora. Após consultar a família, que dispunha de 20 reais para pagar, combinaram de escrever uma carta à editora. “Já havíamos conversado sobre o que era uma editora e suas relações com o autor, o ilustrador… Então, falei com ele sobre esta em particular, de quem já tínhamos lido outros livros: Mari e as coisas da vida, A mulher gigante da casa 88, e ele preparou uma cartinha. Orientei poucas coisas, principalmente para reescrever a caneta, se fosse possível. A editora mandou este e mais dois outros títulos para ele.”
No livro, Azzi é obrigada a sair do seu país para fugir da guerra, deixando para trás a avó, que quis ficar para cuidar da casa – “a pior coisa que podia acontecer”, segundo a menina. Edivan, que antes vivia com a avó na Bahia, veio para São Paulo morar com a mãe, mas sua avó não teve condições de vir junto. “Ela queria vir também, mas o dinheiro não dava”, explicou o menino.
Identificando-se, solidários, Edivan e seus colegas se aproximam pela leitura da atual situação de vida de mais de 32 milhões de crianças refugiadas no mundo, deslocadas de seus países por guerras e conflitos – um número sem precedentes estimado em 2016 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
Em jornadas cruelmente reais, muitas vezes elas seguem sozinhas, separadas de suas famílias, como retratou Brecht em seu poema de 1948. Levando em conta a delicadeza do gesto de exprimir essas tragédias de proporções globais diante dos universos infantis, o Promenino listou 7 livros que, a partir de um uso singular dos poderes simbólicos da palavra, aventuram-se com primor nesta missão, permitindo não apenas iniciar o diálogo mas, ainda além, ampliar uma capacidade que reluz na infância: criar novos sentidos para a experiência humana. Confira:
O barco das crianças, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara, 2016)
Enquanto se preparava para ir à escola, Fonchito via da janela um velhinho solitário, sentado em frente ao mar. Um dia, aproximou-se para saber da sua história. E a cada manhã, antes do ônibus chegar, ouvia um pouquinho sobre as desventuras de um grupo de crianças que, desde o século XII, navega pelos mares do mundo em busca da terra prometida. O livro, do jornalista e escritor peruano, com ilustrações de Zuzanna Celej, foi inspirado no relato do escritor francês Marcel Schwob (1867-1905), que diz: “Enchiam a estrada como um enxame de abelhas brancas. Não sei se onde vinham. Eram peregrinos muito pequeninos. Usavam cajados de aveleira e de bétula. Levavam uma cruz no ombro; e todas essas cruzes eram de várias cores
A Cruzada das Crianças, de Bertold Brecht (Pulo do Gato, 2014)
Publicado pela primeira vez no ano de 1948, este poema narrativo do escritor e dramaturgo alemão Bertold Brecht narra a árdua peregrinação de um grupo de crianças órfãs que, em meio a um implacável inverno na Polônia, foge dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Sem perder a esperança e a solidariedade, os pequenos peregrinos lutam contra a fome, o frio, a miséria e o desamparo em busca de descanso, em um lugar de paz. Com seus traços imprecisos, em preto e branco, a ilustração de Carme Solé Vendrell reflete a fragilidade das crianças diante da crueza da guerra.
Migrando, de Mariana Chiesa Mateos (Editora 34, 2015)
O desafio de quem migra – mudar de país, de paisagens, deixar para trás a língua conhecida, os rostos familiares – é a temática deste livro que, com duas capas e dois pontos de partida distintos, amplia as possibilidades de interpretação sobre o fenômeno. Mostra que a palavra migrante pode ser sinônimo de sofrimento e fragilidade, mas também de coragem e de futuro. Como descreveu o educador e mediador de leitura Magno Rodrigues Farias, na seleção Destaques Emília 2015, um livro em que não há uma palavra, mas que tanto diz.
A chegada, de Shaun Tan (Edições SM, 2011)
Sem fazer uso de palavras, este livro é como um álbum de família, que percorre a história de um migrante, que deixa a esposa e a filha em sua cidade natal para tentar a vida em um país estrangeiro. Após longa travessia, ele chega a uma terra estranha, onde as pessoas falam uma língua indecifrável, comem alimentos exóticos e convivem com objetos flutuantes e animais bizarros. Repleto de símbolos arquetípicos, como a cauda do dragão que aparece fortuitamente no caminho do protagonista, o livro ressalta aspectos comuns e particulares às histórias de estrangeiros em países distantes.
Um outro país para Azzi, de Sarah Garland (Pulo do Gato, 2012)
O livro retrata a jornada de Azzi, uma menina que se vê obrigada a fugir do seu país com a família para se proteger dos perigos da guerra. “Às vezes, o barulho das metralhadoras nos helicópteros era tão alto que as galinhas ficavam assustadas e paravam de botar ovos”, descreve a protagonista, revelando sua perspectiva de criança da aproximação do conflito. Além das dificuldades da travessia de barco, ela terá de lidar com a saudade da avó, que precisou ficar para cuidar da casa, e com os desafios de adaptação a uma nova cultura.
Migrar, de Jose Manuel Mateo (Editora Pallas, 2013)
Milhares de meninas e meninos migram para os Estados Unidos todos os anos, mas nem todos fazem o percurso com seus familiares: metade deles viaja desacompanhada. Nesta narrativa, seguimos a jornada de uma criança e sua família, que cruza a fronteira entre países em busca do pai, para deparar-se com um destino de trabalho precoce. Vencedor do prêmio Horizons, na Feira de Bolonha, o livro foi ilustrado por Javier Martinez Pedro, um mestre da iconografia mexicana, que utilizou as técnicas tradicionais das tribos Xalitla: o papel dobrado como um único biombo contendo toda a história desenhada em preto e branco.
Eloísa e os bichos, de Jairo Buitrago e Rafael Yockteng (Pulo do Gato, 2013)
“Eu não sou daqui. Chegamos numa tarde, quando eu era bem pequena.” Assim começa o relato da protagonista, uma menina que chega a uma cidade diferente com seu pai, em busca de uma vida melhor, talvez fugindo de um passado doloroso. Neste novo cenário, tudo o que ela encontra ao seu redor é um mundo estranho, de bichos e insetos gigantes, onde as coisas obedecem a regras que ela não conhece.