publicado dia 24 de maio de 2016
Autoria, liberdade e autonomia: o que podemos aprender com a educação da Finlândia
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 24 de maio de 2016
Reportagem: Pedro Nogueira
“Finlândia abole matérias de seu currículo escolar”, “Mesmo sem provas, país da Escandinávia tem melhores notas do mundo”, “Oito coisas que aprendi com a educação finlandesa”, “Porque o país com a melhor educação do mundo está mudando seu sistema educativo”. Não é raro abrir um site de notícias ou sua rede social e se deparar com uma manchete dessas, discutindo o sistema educativo de um país de 5 milhões de habitantes no norte da Europa, que alterna a liderança de avaliações internacionais, como o PISA, com países asiáticos como a China (Xangai) e Coreia do Sul, ambos com um sistema educativo muito mais tradicional, baseado na repetição e na pressão por resultados desde cedo.
Essa é a segunda de uma série de entrevistas com palestrantes do XIV Congresso Internacional de Cidades Educadoras. A primeira foi com o professor catalão Carles Feixa, sobre juventudes. Leia mais em Carles Feixa: Precisamos voltar a uma ideia de cultura juvenil associada à educação.
O país nórdico consegue atingir seus resultados com uma escolarização tardia (ela só é compulsória a partir dos sete), com abordagens lúdicas e não-convencionais e mirando o desenvolvimento integral dos sujeitos. O estudante – suas necessidades, aptidões e interesses – está no centro do processo de aprendizagem e, ao lado dele, o professor atua com liberdade e autonomia para desenvolver o currículo, sendo valorizado pelo Estado e pela sociedade. Autor no processo de educar, é somente após concluir o mestrado que os professores podem lecionar – a formação, no entanto, dura a vida inteira.
A educação é inclusiva e gratuita até o nível universitário. O estudante ganha livros e tem amplas bibliotecas à sua disposição e escolhe, ao longo do percurso acadêmico, o que mais lhe interessa para estudar – em diálogo com uma base nacional curricular pouco rígida. Junto à educação, a saúde do estudante é prioridade, assim como a garantia de todos seus direitos fundamentais – se uma escola está passando por dificuldades ou recebendo muitos alunos com necessidades especiais, há um fundo específico que pode ser mobilizado.
Também é enfatizada a igualdade de gênero e a não obrigatoriedade das provas – apesar de dispositivos para avaliação existirem. O que a Finlândia colhe, mesmo contrariando o que se espera de uma educação de resultados, também pode ser tributado ao excelente nível de desenvolvimento humano que o pequeno país alcançou, com todos os indicadores sociais no topo do ranking mundial. Mas há quem conte que essas duas histórias não costumam andar separadas.
Plantando liberdade e apostando na educação, não resta dúvidas de que essa é uma sociedade que investe no presente – e no futuro. Para desenvolver alguns desses temas, o Portal Aprendiz conversou por e-mail com Jari Lavonen, professor de Física e Química, doutor em Ciências da Educação e decano da Faculdade de Educação da Universidade de Helsinque, que estará presente em junho no XIV Congresso Internacional de Cidades Educadoras, em Rosário, na Argentina.
Portal Aprendiz: O que há de único na educação finlandesa e o que faz com que ela seja um dos exemplos mais admirados no mundo?
Jari Lavonen: De forma bastante genérica, podemos dizer que garantir a igualdade na educação é o assunto mais essencial nas políticas de educação da Finlândia. Assim, a educação é gratuita, fornecemos livros, refeições e cuidado de saúde integral para todos estudantes. Uma consequência importante desta política de igualdade é que conquistamos uma educação bastante efetiva, que visa prevenir a evasão escolar e apoia o aprendizado de todos os estudantes.
Nosso objetivo é que os professores não vejam os estudantes na sala de aula não como uma entidade única; ao contrário, eles devem lecionar em função das necessidades individuais de cada aluno. Nossa Lei de Educação Básica, inclusive, enfatiza a necessidade de diferentes níveis de apoio para diferentes tipos de indivíduo. Outra característica que reforçamos é a cultura de confiança. Autoridades educacionais e legisladores em nível nacional confiam nos professores que sabem, em conjunto com diretores, coordenadores e familiares, como prover a melhor educação para crianças e adolescentes de determinado território. Escolas e professores são responsáveis por escolher os materiais didáticos e os métodos de aprendizagem desde o início dos anos 1990. Os nossos educadores são valorizados enquanto profissionais formuladores de currículo, avaliação e didática em todos os níveis. A profissão de professor na Finlândia sempre granjeou muito respeito e apreciação da sociedade.
Por último – e talvez intimamente conectado com a questão da confiança – destaco a descentralização da educação. O nosso sistema de educação, em contraste com os sistemas verticais de diversos outros países, é caracterizado pela delegação da tomada de decisões para o nível local. Isso quer dizer que os professores são responsáveis por desenvolver o que será aprendido – baseado na Base Curricular Nacional; por avaliar os estudantes e por se auto-avaliar – não há qualquer tipo de teste ou inspeção obrigatórios na educação. Tanto a nossa lei de educação como nosso sistema educacional apoiam os professores em cumprir seu papel. Tal missão, em conjunto com o conhecimento e as habilidades e competências necessárias para a profissão de educação, são aprendidas através da formação docente. Tais habilidades ajudam os professores a agirem como acadêmicos, colaborar nas comunidades escolares e a aprimorarem suas competências continuamente.
Portal Aprendiz: Você valoriza a liberdade e confiança em relação ao que – e como – os professores ensinam. Por que isso é importante?
Jari: Liberdade faz com que os professores se apropriem do processo educativo. De acordo com nossas leis, são eles os principais atores no processo de aprendizagem, no controle de qualidade, na avaliação discente e, portanto, eles podem decidir como irão ensinar, como irão organizar os ambientes de aprendizagem e ajudar a construir a confiança dos estudantes em si. Algo que é central em nossa política de avaliação durante as últimas décadas e o fato de que evitamos ranquear escolas ou pupilos, nos afastando da ideia de punição. Este tipo de política, em longo prazo, tem sido importante para o desenvolvimento de uma atmosfera cooperativa e para o desenvolvimento da auto-eficácia. Isso é apenas um exemplo e existem tantos outros, do porque precisamos de paz na educação e de apoiar os professores para que eles se sintam pertencentes ao processo educativo.
Portal Aprendiz: No último ano, a Finlândia causou furor na mídia internacional e nas redes sociais após um artigo do “The Independent” afirmar que as matérias escolares seriam abolidas no país. A Junta de Educação Finlandesa, no entanto, esclareceu que “o foco são as competências transversais (genéricas) e trabalhos interdisciplinares” e também “práticas colaborativas em sala de aula, onde os pupilos podem trabalhar com diversos professores ao mesmo tempo durante períodos de Projetos Baseados em Fenômenos [Phenomenon Based Learning, ou PBL, no original em inglês]”. Segundo o comunicado, tal compreensão visa atender aos desafios do futuro. Que futuro é este?
Jari: Essa abordagem de projetos baseados em fenômenos (PBL) pertence a uma família de metodologias pedagógicas que incentiva o engajamento estudantil em aprendizados significativos. Tais metodologias reforçam que aprender é um processo interativo que consiste em diagnosticar o conhecimento que existe no presente e ativar um contexto significativo que guie um processo de aprendizagem direta; atravessar e facilitar as diversões questões que sublinham o novo conhecimento e seu entendimento; avaliar os ganhos de aprendizado e o conhecimento produzido em cima disso para engajar os participantes num processo de aprendizado expansivo e crítico.
Existem várias outras abordagens pedagógicas similares, como a aprendizagem por projetos, a Problem Based Learning [Aprendizagem Baseada em Problemas], pedagogia da pergunta e por aí vai. Todas elas têm em comum a centralidade estudantil nos processos de aprendizagem. No entanto, a nossa abordagem visa apoiar nossos estudantes no processo de atingir as metas principais desenhadas em nossa base curricular, que é centrada nas competências chaves para uma cidadania global desenhadas pela Organização das Nações Unidades para a Ciência, Educação e Cultura (UNESCO) e em outros movimentos de educação contemporânea.
A interpretação finlandesa destas competências – vistas em suas amplitude e em diálogo – foi feita para encontrar uma descrição que ajude os professores a melhorar a aprendizagem de maneira colaborativa nas várias áreas de conhecimento, visando as competências necessárias para o século 21. Isso passa pela redefinição dos objetivos da educação e as maneiras que usaremos para organizar o aprendizado e atingir as demandas dos novos tempos. Diversos projetos internacionais de educação, como os propostos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico ou Econômico (OCDE), pelo PISA, pela DeSeCo e pela TALIS descreveram as competências necessárias para que os indivíduos atinjam sucesso pessoal, social e econômico no novo século, que podem ser definidas como: formas de pensar (de maneira critica e criativa, aprender a aprender); formas de trabalhar (perguntando, resolvendo problemas, se comunicando e colaborando); ferramentas de trabalho (alfabetização e habilidades técnicas e tecnológicas); e agir no mundo (cidadania global e local, empatia cultural e responsabilidade social).
Portal Aprendiz: No Brasil, nós trabalhamos com o conceito de “Educação Integral”, uma perspectiva que põe em diálogo o ato de educar com o desenvolvimento integral de sujeitos. Nesse sentido, você disse em uma entrevista que enxerga a educação de maneira holística. O que isso quer dizer?
Jari: O currículo finlandês visa fornecer valor igual para todos conteúdos escolares, com um equilíbrio dinâmico entre as artes, as humanidades e as ciências exatas. O valor equivalente para todos assuntos redunda em uma aproximação holística em relação ao desenvolvimento humano. Todos os aspectos de uma pessoa devem ser apoiados, sejam eles morais, criativos, de habilidades ou conhecimentos.
Portal Aprendiz: Há um grande debate internacional sobre qual a pertinência dos testes do PISA e como isso impacta os países avaliados por ele. Qual é, na sua opinião, o papel da avaliação escolar?
Jari: Os testes do PISA provavelmente não são tão maus. Mas, como os países os interpretam os resultados e as recomendações dos organismos internacionais, isso pode ser danoso especialmente se os testes como o PISA foram seguidamente usados para avaliar os resultados da educação de um país ou a implementação de um novo currículo. O PISA não deveria servir para medir o quão bem os objetivos foram atingidos e tampouco é o único jeito de a garantir uma educação de qualidade, que pode ser conseguida de diversas maneiras e perspectivas.
Portal Aprendiz: Em Rosario, no Congresso Internacional de Cidades Educadoras, você irá falar sobre os desafios da igualdade nas cidades. Em sua opinião, o que isso tem a ver com educação?
Portal Aprendiz: Em mais de uma oportunidade, o senhor disse valorizar o papel do brincar no desenvolvimento de uma criança. Por que falar de brincar é cada vez mais importante na educação?
Jari: Muitos de meus colegas estão pesquisando este tema e é basilar na nossa educação para a primeira infância e na educação infantil. De acordo com nosso entendimento, um aprendizado lúdico transforma a educação e a torna capaz de atingir os princípios que descrevi acima. Quando construímos conhecimento sobre o brincar, sobre a criatividade e a alegria, nós podemos fomentar o engajamento na educação e aumentar as oportunidades de cada criança.
Portal Aprendiz: Como as Cidades Educadoras são entendidas e desenvolvidas em seu país?
Jari: Como eu escrevi antes, as cidades são as responsáveis por prover educação na Finlândia. Elas empurram as escolas e professores a se associarem em redes e aprender uns com os outros. Quando a rede dos professores e escolas atravessa as fronteiras de uma cidade, as escolas podem aprender com escolas de outras cidades. As redes servem para compartilhar ideias, opiniões e experiências. Além disso, são fundamentais na criação e adoção de inovações educativas. Formar redes e parcerias com outras entidades fora da escola, como organizações comunitárias, empresas e pais de alunos, é essencial. Tais organismos podem ser apoiados através do encorajamento de lideranças e de uma cultura escolar colaborativa. O seu contrário é uma cultura escolar competitiva, que é uma consequência de testes, inspeções e controle, minando assim a formação de redes colaborativos no campo da educação.
Portal Aprendiz: É óbvio que um sistema escolar não pode ser copiado, não importa quão bem-sucedido seja. Ainda assim, o sistema escolar da Finlândia tem chamado atenção em todas partes do mundo, ao atingir excelência acadêmica com uma aproximação não-ortodoxa da educação. Tudo isso foi feito promovendo igualdade e bem-estar por meio da educação. Nesse sentido, o que vocês têm a ensinar para o mundo?
Jari: Eu concordo que não é possível copiar um sistema educacional, no entanto, podemos aprender e adaptar ideias. Eu destacaria: igualdade e descentralização como pedras fundamentais; visão à longo prazo da educação; currículo participativo; formação docente de qualidade com ampla base teórica e competências e habilidades colaborativas e aprimoramento durante toda a vida; recrutar os candidatos mais promissores para a profissão e lhes garantir apoio em sua vida profissional; um ambiente escolar de apoio, que tenha liderança na comunidade e cultura de colaboração.