publicado dia 29 de abril de 2016
“Casacadabra” assume desafio de falar de arquitetura, urbanismo e cidade para crianças
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 29 de abril de 2016
Reportagem: Pedro Nogueira
“Passamos pelo menos 70 anos construindo as cidades para os carros e esquecemos de que quem dá vida às cidades são as pessoas. Ou seja, precisamos começar a construir cidades para as pessoas – e uma cidade para as pessoas é também uma cidade para as crianças, é uma cidade em nossa escala humana”.
É com esse espírito que a jornalista Bianca Antunes, editora da revista AU – Arquitetura e Urbanismo, que, em conjunto com a arquiteta e jornalista Simone Sayegh e com a ilustradora Carolina Hernandes, lançou o Casacadabra, um livro que quer decodificar a língua das casas e da cidade para crianças.
Em fase de financiamento no Catarse, o livro traz as histórias, mistérios e segredos de nove casas icônicas (e um prédio, o Copan) pelo mundo – quatro são no Brasil, de Lina Bo Bardi, Oscar Niemeyer, de Eduardo Longo e do escritório FGMF. Apresentadas com jogos e brincadeiras, as casas são portas de entrada para se pensar o mundo e o espaço urbano no qual estão inseridas.
As autoras reforçam que ainda não existem no país publicações voltadas para o público infantil sobre o tema, apesar de cerca de 85% dos brasileiros e brasileiras viverem em cidades, segundo dados da ONU-Habitat. “Essa situação é uma das consequências da grande lacuna que existe entre os arquitetos/urbanistas e a sociedade, provocada, principalmente, porque a leitura do espaço urbano é ensinada apenas nos bancos das faculdades de arquitetura. Uma discussão que precisa ser estendida: se todos vivemos na cidade, é preciso começar a questioná-la, baseados em conceitos debatidos e testados pelo mundo”, afirma a autora, no artigo “Por que é importante dar ensino de arquitetura e urbanismo a crianças”, publicado no Outra Cidade.
Para aproximar os jovens deste tema, o livro busca a participação ativa da criança com ferramentas gráficas e espaços para desenhos e pinturas, além de um guia de atividades que podem ser feitas em casa ou na escola, como a construção de uma réplica da Casa Bola, obra do arquiteto Eduardo Longo. A campanha de financiamento coletivo também oferece a possibilidade de compra de uma maquete da “Casa de Vidro”, da Lina Bo Bardi, que pode ser montado por crianças e adultos.
O Portal Aprendiz entrevistou, por e-mail, as autoras Bianca Antunes e Simone Sayegh, para desenvolver alguns destes temas. A jornalista aposta em caminhos cada vez mais “lúdicos” para o urbano, partindo de uma escuta ativa dos habitantes, que ocupam o meio público e se afastam da ideia de que pensar o urbanismo é fazer viadutos e pontes. Confira:
Portal Aprendiz: Em nosso site, trabalhamos com o tema das Cidades Educadoras, um conceito que aposta que o meio urbano é uma sala de aula e que a cidade é uma escola. No entanto, ainda esbarramos em muitas dificuldades para falar a língua da cidade. Como um livro que traz a história de dez casas pode ajudar nessa “alfabetização”?
Bianca Antunes e Simone Sayegh: O Casacadabra instiga o olhar da criança a perceber as diferentes maneiras de morar e de habitar, e é essa que a gente pode chamar de nossa contribuição para a “alfabetização” do urbano: fazer com que as crianças se aproximem de alguma maneira do meio urbano, o observe, o compare e até o questione, relacionando-o com o que leu no Casacadabra.
Um dos projetos publicados, por exemplo, é o Copan – o único edifício do livro – e falamos muito de seu térreo aberto com comércio, restaurantes, galerias, sempre cheio de gente, com vida. O Copan, nesse sentido, é diferente de 99% dos edifícios da cidade, com muros e grades. E se houvesse mais edifícios como o Copan pela cidade? É esse o questionamento que queremos provocar.
Aprendiz: Recentemente, diversas iniciativas, como o Criança Fala na Comunidade – Escuta Glicério, no centro de São Paulo, têm chamado atenção para a questão da participação infantil no planejamento urbano. Segundo eles, é necessário ouvir a voz das crianças para se ter uma escala de todos no ordenamento urbano. Como você vê a questão da participação social infantil na cidade?
Bianca e Simone: É fundamental. Essas iniciativas estimulam as crianças a pensar a cidade, o que talvez, sozinhas, elas nunca tenham feito por uma tradição de um urbanismo entregue de maneira “top-down”, que é como alguns estudiosos da cidade chamam as decisões tomadas de cima para baixo, sem consulta.
Elas passam a entender que o que sempre viram como padrão pode mudar – e que elas têm um papel importante nessa mudança. O que lhe foi dado de uma maneira rígida pode ser mudado de forma “bottom-up”, ou seja, com decisões que começam pela comunidade. Uma boa consequência disso é o sentimento de pertencimento à cidade: ao entender seu lugar, ao pensar sobre ele, as crianças veem o espaço como seu – e se pertencemos a ele, cuidamos dele.
“As pessoas precisam começar a ocupar as ruas seja para se divertir, seja para ir ao trabalho, e é preciso construir um urbanismo que faça esse convite ao pertencimento”, afirma Antunes.
Aprendiz: O que o espaço urbano tem a ganhar com crianças que falem sua língua? Como isso pode impactar nosso futuro?
Bianca e Simone: Pessoas que têm consciência do espaço que habitam podem transformá-lo, ocupá-lo, brigar por ele. Podem propor projetos, sejam pequenas ou grandes intervenções, e participar da construção de uma cidade mais humana. Hoje a arquitetura e o urbanismo são ensinados apenas nas salas de aula das universidades. Isso precisa mudar, se quisermos cidades melhores.
Vivemos em um mundo cada vez mais urbano, e ter um olhar apurado para as formas com que construímos nossas cidades é imperativo para termos cidades mais humanas e justas. É importante que essa discussão comece desde cedo e esteja no cotidiano de todas as pessoas, independentemente de sua profissão.
Aprendiz: Em sua visão, o que é uma cidade para crianças? Ela é possível?
Bianca e Simone: Passamos pelo menos 70 anos construindo as cidades para os carros e esquecemos de que quem dá vida às cidades são as pessoas. Ou seja, precisamos começar a construir cidades para as pessoas – e uma cidade para as pessoas é também uma cidade para as crianças, é uma cidade em nossa escala humana.
Calçadas maiores, mais espaços de encontro, ruas que te convidam a caminhar em vez de pegar o carro. O urbanismo se torna lúdico até, de alguma forma, porque nos integramos a ele, nos divertimos com ele. Não precisamos ir longe: uma Paulista aberta aos domingos é lúdica, cheia de artistas, bicicletas, cachorros, crianças com mil brinquedos, assim como outras ruas que abrem para o pedestre aos finais de semana.
Mas ainda é pouco. Enquanto nosso urbanismo for pensado apenas como construção de grandes pontes, viadutos e túneis de concreto sem o cuidado urbano e apenas com o objetivo prático de cortar caminhos, não haverá espaço para o lúdico – você passa pela cidade apenas como um caminho que deve percorrer entre a casa e o trabalho. As pessoas precisam começar a ocupar as ruas seja para se divertir, seja para ir ao trabalho, e é preciso construir um urbanismo que faça esse convite ao pertencimento. Esse, aliás, deve ser o tema de nosso próximo livro: os espaços públicos.