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publicado dia 16 de março de 2016

Em Goiás, projeto arrecada bicicletas para levar crianças quilombolas até suas escolas

Reportagem:

Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

No Vão de Almas, as almas andam a pé. Diminuem dedo por dedo, metidas na poeira das estradas de terra, as distâncias que existem entre as casas espaçadas da comunidade quilombola no município de Cavalcante, em Goiás. O tempo lá no Vão passa em outro tempo, mais lento, quase na velocidade dos animais do Cerrado. Quem mora em uma casa é vizinho de outra por uma lonjura grande como a saudade. Quem colhe maxixe, arrancou da raiz de seu quintal e, para levar a produção às cidades próximas, sobe em um caminhão sem freios, mas com especial aptidão para transitar por serras íngremes.

É possível falar que as casas são de adobe (terra-crua), mas a estrutura que as mantêm em pé, mais de quatrocentos anos depois de sua criação, vem da resistência herdada de quem teve a coragem de desbravar a Chapada dos Veadeiros. Os quilombolas kalungas são descendentes de pessoas escravizadas que se embrenharam em uma mata ondulada e de difícil acesso, no meio da Chapada. É o maior quilombo em território brasileiro, que se divide entre as comunidades Engenho II, Prata, Vão do Moleque e Vão de Almas.

Delas, Vão de Almas é a mais isolada, a 90 quilômetros da cidade de Cavalcante. A energia elétrica está sendo lentamente implantada, e muito de seu transporte ainda é feito a pé ou por animais de carga vagarosos.

No começo de 2016, as jovens Carla Marinho e Maria Lívia foram visitar a comunidade. Depois de uma chegada difícil, com direito a carro enguiçado no alto da serra, elas foram recebidas com uma hospitalidade bem interiorana: tinha milho cozido e maxixe no prato e músicas tocadas no violão.

Elas conheceram as escolas e distâncias grandes que as separam das crianças que nelas estudam. É uma comunidade de heróis cotidianos. Em salas multisseriadas e com recursos simples, professoras como Josina atravessam seus alunos à canoa quando o rio está muito alto. Os estudantes acordam muito antes de o sol raiar, às vezes não tomam café da manhã, e com a barriga vazia tomam o caminho que vai levá-los para estudar. “As crianças estão sempre na escola. Precisa chover semanas inteiras para impedir que elas estudem”, conta Carla Marinho, idealizadora do projeto De Bike pra Escola – iniciativa que pretende angariar 120 bicicletas para os estudantes.        

Ponto de partida

Vão de Almas é a mais isolada, a 90 quilômetros da cidade de Cavalcante. A energia elétrica está sendo lentamente implantada, e muito de seu transporte ainda é feito a pé ou por animais de carga vagarosos.
Vão de Almas é a mais isolada, a 90 quilômetros da cidade de Cavalcante. A energia elétrica está sendo lentamente implantada, e muito de seu transporte ainda é feito a pé ou por animais de carga vagarosos.

Carla conheceu os percalços de transporte escolar em Vão de Almas por conta da luta de sua tia, que é promotora da região. Em uma reportagem sobre as dificuldades do transporte escolar rural, exibida pelo programa Profissão Repórter, a tia denunciou a compra de um ônibus que nunca foi utilizado, e estava pensando em ações para juntar bicicletas para a locomoção das crianças. Carla ficou muito tocada pela iniciativa. Do dia para a noite, surgiu o nome do projeto.

Unindo-se às amigas Maria Lívia e Amanda Leticcia, todas com experiência em assistência social, elas começaram a esboçar a ideia de uma iniciativa que levaria 120 bicicletas para as escolas de Vão de Almas. A escolha do meio de transporte veio de experiências prévias de crianças da comunidade, que optavam pelo transporte pela sua praticidade e facilidade de locomoção em um terreno onde veículos derrapam e atolam.

Ainda que a ideia tenha surgido em um relâmpago de pensamento, transformá-la em realidade não foi tão simples. Carla comenta: “Pensamos assim ‘vamos receber bicicletas, tem muitas por aí, vamos levantar uma vaquinha, vai ser fácil”. Elas começaram uma campanha online, mas perceberam que o processo seria lento e que envolveria toda uma logística, desde guardar as bicicletas coletadas até arcar com os fretes para buscar doações em outros estados. No dia da entrevista para o Promenino, Carla e Maria Lívia tinham conseguido 25 bicicletas e R$ 13.230 dos R$ 35.000 que pedem para reformar as bicicletas usadas e comprar modelos novos.

“Vai funcionar como um comodato: Tal escola vai receber ‘X’ bicicletas e distribuí-las de acordo com as distâncias percorridas. E no próximo ano, se a criança não ficar lá ou se mudar, a bicicleta é passada para outro aluno”, explica Carla. Ela também avisa que não é uma doação passiva. O projeto se compromete a acompanhar de perto a repassagem das bicicletas e ter uma relação próxima com os articuladores – no caso, as Secretarias de Educação locais.

Destino: escolas da região

Levar as bicicletas não é uma solução pensada somente para a locomoção. “Começa com o transporte, mas o objetivo final é a educação. As crianças precisam chegar à aula sem cansaço, e se sentindo motivadas a ir.” A bicicleta encurta distâncias, não só as físicas, mas também as que separam a criança de se munir de conhecimento e alçar voo para lutar por sua comunidade e por sua individualidade. As garotas têm ciência de que a bicicleta não resolve todos os problemas; mas funciona como uma tesourada de duas rodas neles.

Devido às ações na internet e muitas matérias abordando o projeto, o “De Bike pra Escola” está ganhando força e recebendo doações de todos os cantos do país. Com os elogios, vêm também críticas, embora Carla garanta que elas são sempre construtivas. “’Por que vocês estão fazendo isso, isso não é obrigação do governo?’, é uma das criticas que costuma aparecer. É quase como se disséssemos: tudo é obrigação do governo, nunca temos responsabilidade em nada? Não pensamos assim”, esclarece Maria Lívia.

Quando a criança quilombola ajusta os freios e gira lentamente o pedal de metal, o barulho da correia se mistura aos dos pássaros: ela goza de uma sensação de independência que só o vento transpassando a grama e atingindo o rosto dá; o menino ou a menina tem controle sobre o seu trajeto e destino. E quem tem uma bicicleta, tem também responsabilidade: mais do que um brinquedo móvel, é dever da criança zelar pela bicicleta, para garantir que, quando não precise mais dela, a bike ainda possa rodar e levar outros estudantes pelos mesmos caminhos.

Carla está fazendo cursinho para prestar medicina, e Maria Lívia acaba de começar a cursar Direito. Talvez elas não percebam, mas o “De Bike pra Escola” é um movimento de empoderamento para elas próprias, de protagonismo juvenil. Ao detectar um problema, comprometeram-se a enfrentá-lo com o que tinham à sua disposição, em conjunto e respeitando as particularidades da comunidade quilombola.

Cada casa que se ergue e se mantém em um quilombo é herança construída para resistir ao sistema escravocrata. Cada criança carrega no sangue a fortaleza de uma história. Quando ela veste o uniforme, sobe na bicicleta e começa a pedalar em direção à escola, se junta aos antepassados combativos, utilizando a educação pelo direito de existir. Chegar à escola é hoje a luta, e as almas podem ir mais tranquilas e rasantes, porque agora andam de bicicleta.

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