publicado dia 26 de janeiro de 2016
Vera Santana: Cultura local deve entrar na escola e ajudar a transformá-la
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 26 de janeiro de 2016
Reportagem: Pedro Nogueira
A jornada como educadora começou bem cedo para Vera Santana. Aos 14 anos, enquanto estudava no Colégio Estadual do Atheneu Norte Rio Grandense, em Natal (RN), ela começou a dar seus primeiros passos, entrando para um curso de alfabetização de jovens e adultos. Ao terminar o ciclo básico, Vera já tinha passado como professora por diversas turmas.
Em sua trajetória, Vera seguiu por escolas da rede pública brasileira, desobedecendo currículos, secretarias de educação e, muitas vezes, desagradando gestores e professores. Durante a ditadura, mudou-se para o Rio de Janeiro e lá ficou até completar 43 anos, trabalhando nas secretarias municipais e estaduais de Educação.
Quando voltou para terras potiguares, se desentendeu com o cargo que ocupava no departamento de Cultura do município – o gabinete nunca foi seu forte – até que, em 2002, após dois anos de conversa com os mestres da cultura da comunidade de Felipe Camarão, Vera resolve fundar a ONG Terra Mar e o projeto Conexão Felipe Camarão.
Vera relata que buscava uma área de Natal que tivesse grande representatividade cultural. Lá, viviam o Mestre Manoel Marinheiro, que ensinava e mantinha a cultura do Auto do Boi de Reis, o teatro de bonecos João Redondo do Mestre Chico de Daniel, o Mestre Cícero da Rabeca e a capoeira do Mestre Marcos.
Articulando os ensinamentos destes mestres com a escolas locais e a comunidade, as oficinas foram ganhando cada vez mais uma agenda fixa com o território, além de uma sede – a Escola de Saberes Conexão Felipe Camarão. Um polo cultural reconhecido, que está sempre de portas abertas para qualquer criança ou adulto da comunidade. É só chegar.
Há nove anos, Felipe Camarão recebe o Conexão Brasil, evento realizado pela Associação Terramar, com apoio do Ministério da Cultura e patrocínio da Petrobrás. São quatro dias de programação que reúnem as oficinas permanentes – Auto de boi de reis, musicalização de rabeca, percussão, flauta doce, capoeira e matrizes africanas, diversidade cultural brasileira, comunicação e cultura digital, adereços e figurinos, luthieria de rabeca, metais, berimbaus e qualificação do grupo Orquestrim Felipe Camarão – com mostras, apresentações, rodas de prosa e convidados especiais que se somam para integrar e convergir os patrimônios imateriais da comunidade. Em 2015, o tema foi “Cultura e Território”. Em 2016, pretende-se trabalhar a herança de Mário de Andrade.
Para entender melhor como o resgate da cultura pode fortalecer o território, aproximando a escola dos saberes locais e projetando nas novas gerações a continuidade – e, por que não, a transformação – das diferentes identidades ali constituídas, o Portal Aprendiz conversou, na última semana, com a educadora Vera Santana, durante sua passagem por São Paulo.
Portal Aprendiz: Como começou seu trabalho no bairro de Felipe Camarão?
Vera Santana: Depois de muitos anos desenvolvendo projetos no Rio de Janeiro, eu estava de volta à Natal mas não tinha me adaptado ao trabalho na Secretaria de Cultura. Aí fui atrás de um lugar que guardasse a cultura nordestina, que concentrasse diversas expressões, e encontrei o bairro de Felipe Camarão. Natal morre de medo de Felipe Camarão. É uma área muito vulnerável. Lá morava o mestre Manoel Marinheiro, guardião da cultura do Auto de Boi de Reis. Na vida dele, ele já era um educador. Ele ensinava as crianças, ele trabalhava com a comunidade, ele só não tinha um lugar fixo e um sustento para fazer isso. Mas ele já estava lá. Aí juntamos ele, o Chico de Daniel, que fazia tetro de João Redondo, o mestre Cícero da Rabeca e o mestre Marcos da capoeira e começamos a conversar.
Foram dois anos de conversa até a gente conseguir um patrocínio. A ideia era realmente que os mestres pudessem continuar fazendo o que fazem, que tivessem suas culturas mantidas e preservadas como parte importante daquela comunidade.
Portal Aprendiz: E como foi isso?
Vera: O Auto do Boi de Reis se apresentava, mas de maneira invisível. A gente vai buscar uma articulação e ganhamos um edital do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES). Inscrevemos um projeto de oficinas e falamos para o Mestre Manoel Marinheiro e os demais mestres continuarem fazendo o que faziam. Começamos também um diálogo com os escolas e levamos os mestres para dentro delas, com oficinas e um trabalho com os arte-educadores, que logo se aproximaram. Quiseram até trocar a letra da canção, para aproximar do português atual, mas isso seria praticamente matar aquela expressão cultural, que guarda um tesouro oral de séculos. Mas só isso, por exemplo, já deu muita discussão para dentro e fora da escola.
É até engraçado falar em preservação de uma cultura oral que se transmite há séculos entre gerações e ver como o mestre consegue carregar isso, é muito forte. O Auto do Boi de Reis, que é um auto dramático, como diria o Mário de Andrade, envolve diversas artes e tem mais de 300 cantos, tem dança, tem confecção de roupas e bonecos, enfim, isso tudo estava apropriado no sentimento dessas pessoas pelo afeto. E isso é cultura: esse cotidiano rico do nordeste, historicamente negado pelo nosso sistema político e educacional, que sempre achou melhor copiar o de fora do que valorizar o daqui.
esse cotidiano rico do nordeste foi historicamente negado pelo nosso sistema político e educacional
Por que negar isso que vem do prazer da vida, do cotidiano, das pessoas, da alma, da cultura, aquilo de mais humano que se tem?
Então quando a gente pensa a palavra educação, estamos olhando acima de tudo para essa afetividade, para um educador que veja a história riquíssima da criança e não corte isso de maneira alguma.
Portal Aprendiz: Muitas vezes isso é cortado no processo educativo?
Vera: Olha, pega o exemplo do arte-educador, que a gente via tentando fazer um trabalho bom. Muitas vezes ele ia lá na escola, fazia um grupo de música, um coral. Mas aquilo estava completamente dissociado daquele território e das disciplinas trabalhadas em sala. A gente busca o contrário: se vai ter uma oficina de flauta, ela tem que estar ligada ao contexto daquela cultura, ao repertório daquelas pessoas. Eu acho que isso está mudando e começa no trabalho que diversos movimentos vêm fazendo.
Portal Aprendiz: As políticas públicas podem ajudar a dar conta disso?
Vera: As políticas públicas não dão conta, quem dá conta são os movimentos, que fazem essas inserções, essa necessária transformação. São os movimentos sociais em contato com a escola. É esse movimento de pensamentos que vai mudando o processo todo. É nisso que eu acredito.
O governo não vai fazer acontecer por decreto, porque existe imaginário social, história local, maneira de pensar daquela região e suas histórias específicas, seus agentes administrativos, o porteiro, a criança, o professor. Para fazer política é preciso entender a história dos professores, como a secretaria lida com isso. Sabe como a escola se sente? Apartada da vida: a secretária e o ministério ditam e a escola obedece. Mas hoje, a gente vê cada vez mais possibilidade de que a escola se coloque junto aos movimentos sociais, junto à comunidade. Eu acredito que isso possa mudar a maneira com que a gente enxerga a educação, mas só se for junto com uma história que não começou nem ontem nem hoje.
O que as políticas públicas poderiam fazer seria tapar o esgoto a céu aberto, seria transformar aquele lugar que um dia foi um lixão e hoje é um bairro em um lugar digno, com escola para todo mundo. Essa ausência de tudo é uma violência, é o que faz a gente estar lá trabalhando junto com essa riqueza humana e cultural.
Portal Aprendiz: Você muitas vezes mistura em sua fala comunidade, arte e educação. Como se dá essa articulação no trabalho em Felipe Camarão?
Vera: Isso tudo tem a ver com o prazer da vida, do cotidiano, das pessoas. Se a gente bobear, o sistema vai tirando a alma, a cultura, aquilo que há de mais humano. Assim, quando pensamos em educação, estamos pensando sobretudo nessa afetividade, nessa humanidade, nesse olhar para o outro. É para isso que serve educar. O papel do educador é também dar conta dessa história riquíssima que toda criança traz consigo, essa fertilidade cultural.
Lá na ONG Terramar, a gente tem um articulador comunitário, que seria o que a escola chama de coordenador pedagógico. É ele que vai fazer essa costura que a gente chama de educação: a comunidade conversando, se colocando e se articulando. Hoje nós temos uma Rede de Educadores em Felipe Camarão, com professores, ONGs, líderes comunitários. É uma conquista enorme o que nós fizemos. E tudo isso é educação e cultura, esse entendimento largo da vida.
Portal Aprendiz: Um entendimento largo de educação?
Vera: A tarefa de educar é muito complexa. Se você prestar atenção, ninguém educa ninguém. O que a gente chama de educação é um sistema que tem que atender a um sistema econômico maior ainda que rege as nossas vidas. Se você olhar com cuidado em nossa ancestralidade você vai encontrar isso que eu estou chamando de educação.
ninguém educa ninguém. O que a gente chama de educação é um sistema que tem que atender a um sistema econômico maior ainda que rege as nossas vidas
Por exemplo, um menino que entra na escola, a primeira coisa que o professor faz é torná-lo mais um em uma sala de cinquenta crianças, com aquela disposição seriada, onde inexiste o círculo. Na vida dele, no entanto, tudo é roda: o espaço de sentar no chão, o alimento no campo, o sentar na mesa. Seja da classe social que for, os espaços são outros.
Então eu entendo que falta esse respeito ao que há de mais interno, mais sagrado, mais essencial no ser humano. A criança entra na escola para ser alfabetizada, para ter esse sistema internalizado, numa educação que sempre irá atender a critérios quantitativos, dados, indicadores. Isso sempre me incomodou, sempre me perseguiu. Educação não é uma razão que se quantifique.
E isso acontece numa fase em que a liberdade teria que ser tudo, teria que permitir a ele se colocar no mundo com sua própria voz. As crianças de Felipe Camarão têm essa altivez, essa apropriação de suas vidas, de seu território, e você vê isso com tanta firmeza que até espanta.
Portal Aprendiz: E como pode se dar essa outra educação?
Vera: Olha, são muitas coisas. Lá em Felipe Camarão, muitas escolas ainda são alugadas, instaladas em uns barracões precários. E arte, essa parte da cultura que deveria estar diluída no currículo, ainda não está. Está só “ó, aqui o Português, que não tem nada a ver com meu afeto, aqui é a Matemática, que não tem nada a ver com a minha vida prática, aqui está a História – que não diz nada da minha história -, aqui a Geografia, que não se conecta com meu território”. Como vai sair algo disso? É tudo desconectado.
A arquitetura da escola é feita para todo mundo, menos para as crianças. Ela não reflete o desenho da vida, esse quadrado fechado, centralizado, não livre. E isso vai acompanhar todo o currículo, esses quadrados, essas caixinhas. Temos que estar na contramão disso tudo.
Também é preciso considerar que hoje, com um computador ou um telefone, as crianças têm acesso a um arsenal enorme de pesquisa, ou seja, o professor não é mais o “detentor da sabedoria do mundo”. Isso era um peso enorme para o docente. Agora, se o professor abrir o ouvido para as crianças, ele vai ouvir tanta vida. A cultura é a vida, né? E na vida cabe tudo.