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publicado dia 17 de dezembro de 2015

Suspeito padrão, vítima padrão: jovens são principais atingidos por violência policial em SP

Reportagem:

“O que o estudo revelou, infelizmente, não é surpresa para quem trabalha e milita na área. Existe um uso desproporcional de força letal pelo Estado”, afirmou Giane Silvestre, do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (Gevac), da Universidade Federal de São Carlos (UFScar). A socióloga foi uma das coordenadoras do estudo “Juventude e violência no Município de São Paulo”, lançado na última sexta-feira (11/12), na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (USP), durante o III Festival de Direitos Humanos da Cidade. A pesquisa mostra que 84% das vítimas de violência policial na capital são jovens de até 29 anos e 64% são negros.

Foi a primeira vez que a prefeitura da cidade fez um estudo dessa natureza para analisar dados do município e seus distritos. Para isso, aplicou o índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ), usado para cidades com mais de 100 mil habitantes, nos distritos da capital paulista, o que revelou a distribuição desigual da letalidade policial por território.

45 jovens de 17 anos foram mortos em 2014.
45 jovens de 17 anos foram mortos em 2014.

Em 2014, dos 96 distritos da Capital, 71 tiveram mortes registradas por ação policial. No entanto, 14 desses distritos concentram 50% dos 341 assassinatos . São regiões periféricas como Sapopemba (zona leste) e Jardim São Luís (zona sul).

“As ruas estão vazias”, lamenta R., morador do Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo, em reportagem do Portal Aprendiz de abril deste ano, quando 18 pessoas foram assassinadas por grupos de extermínio na região. Quatro delas eram alunos do CIEJA Campo Limpo. “Fazia 20 dias que um deles tinha vindo se matricular. Morreu um menino quando saía para cortar o cabelo. E a família não quer que divulgue nada, porque não sabem com quem estão mexendo”, relatou na época Eda Luiz, coordenadora da escola. Leia a matéria: “Na Zona Sul, juventude tem direitos negados em território dominado pela violência”.

“No imaginário policial existe um perfil do suspeito padrão que tem cor, território, idade e classe social definida. E o policiamento acaba sendo ostensivo e focalizado nesse grupo, causando mais conflitos e mais mortes. Isso falando do resultado mais extremo, o homicídio, ou seja, não contamos os feridos, os encarcerados, os abordados constantemente”, analisa Giane.

As afirmações da pesquisadora sobre o perfil racial são reforçadas pelas estatísticas. Enquanto 61% dos paulistanos se declaram brancos e 37% negros, o perfil das vítimas da letalidade policial é constituído de 64% de negros (11 a cada 100 mil) e 36% de brancos (4 a cada 100 mil).

Vítima padrão

A letalidade policial é responsável por uma em cada cinco mortes violentas na cidade de São Paulo; 85% dos mortos são jovens de até 29 anos, sendo que a faixa etária onde há mais vítimas é de 17 a 19 anos. No ano passado, 45 adolescentes de 17 anos morreram em decorrência da ação policial.

Distribuição racial da violência policial.
Distribuição racial da violência policial.

Segundo Débora Silva Maria, do coletivo Mães de Maio, que reúne mães de vítimas da violência policial, o que existe em São Paulo é uma campanha de “justiça com as próprias mãos”, por parte dos policiais militares.

Entre 1980 e 2013, o número de jovens brasileiros entre 16 e 17 anos de idade assassinados passaram de 506 para 3.749, um aumento de 640,9 %. “Os homicídios, no caso de jovens de 16 e 17 anos de idade, representam, nos dias de hoje, quase a metade da mortalidade nessa faixa e, pelo que é possível observar a partir da sequência histórica, a tendência é aumentar mais ainda no futuro”, afirma o Mapa da Violência de 2015.

“O que eles [policiais] fazem, na cabeça deles, é o papel que o judiciário se nega a fazer quando cumpre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ao invés de aplicar educação de qualidade e práticas de ressocialização, o Estado pratica o ódio contra os jovens de periferia. A única oportunidade que eles têm é violência ou prisão. O genocídio não é simbólico”, alerta Débora.

Tamanha violência acaba por gerar um grande impacto nos habitantes da periferia, acredita Débora, para quem os jovens se sentem sitiados e sem o direito à liberdade. “A gente vive uma ditadura. Se você é negro e está voltando da faculdade tarde da noite, mesmo com a mochila nas costas, você tem medo de ser morto e muitas vezes acaba desistindo dos estudos. A sensação que temos, quando andamos nas ruas, é de que estamos sendo caçados”.

Para Giane Silvestre, a segurança pública é um direito negado nas periferias paulistanas. A população observa a prática sistemática da violência do Estado que, segundo à lei, deveria prezar pela segurança e garantir o direito à vida. Uma amostra dessa afirmação está no fato de que em 2014, a cada 5 vítimas de morte violenta na cidade, 1 foi morta nas mãos de policiais. Estudo citado pela publicação lembra que, nos EUA, mortes civis fruto da ação das forças repressivas representam 3,6% do total de homicídios dolosos registrados em todo o país.

Outra prova está no número de feridos (390) contra o total de pessoas mortas (591), entre 2013 e 2014, por ação policial. Os dados apontam para um abuso do uso da força. “Dada a alta proporção de mortos em decorrência de ação policial sobre o total de mortes violentas (aferido nas diversas fontes consultadas), seria esperado haver um número ainda maior de feridos. Mesmo subestimado, o número de lesões não letais contraria a expectativa indicada pelas normas da PMESP para o uso modulado da força”, afirma o estudo.

Além de impactar o aprendizado dos estudantes, a violência nos territórios é uma das razões para o abandono escolar. Segundo a Organização das Nações Unidas, no mundo todo, 42% das crianças que estão fora da escola vivem em países afetados por conflitos armados. No Rio de Janeiro, o processo de ocupação militar de algumas favelas, como forma de combate ao tráfico de drogas, não tem garantido direitos à população. “Na Maré, por exemplo, a gente sabe que é comum estudantes terem que ficar abaixados na sala de aula, esperando confrontos acabarem, o que vem junto com relatos de professores que dizem que os garotos e garotas chegam cansados por não conseguirem uma noite de sono tranquilo”, relatou Eduardo Ribeiro, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LAV/UERJ), ao Portal Aprendiz, em março deste ano.

“É importante destacar que essas mortes são pouco investigadas e isso legitima esse tipo de prática. O policial mata alguém, chega na delegacia e é a sua versão que conta. Existe toda uma gama de categorias jurídicas que respaldam esse tipo de ação”, afirma Giane.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo contestou os dados, em declaração ao jornal Estado de S. Paulo, e afirmou que a letalidade do município está abaixo da média considerada endêmica pela Organização das Nações Unidas (ONU). Argumentou ainda que uma resolução que obriga a Corregedoria e Comandantes a comparecerem em locais de crime diminuiu a letalidade policial em 30% em outubro deste ano.

+ Após um ano, ocupação militar da Maré segue violando direitos da comunidade

Débora, no entanto, acha que a solução para este tipo de violência passa necessariamente pela desmilitarização da polícia. “Essa ditadura tem que acabar, não dá pra conviver numa região tomada por um autoritarismo tão ferrenho. Isso que temos hoje é um trauma muito grande não só para quem é vítima, mas para as mães, os familiares, os amigos, que perdem os seus para a violência e vão morrendo aos poucos de tristeza”, finaliza, ao lembrar das duas Mães de Maio que vieram a falecer neste ano de câncer, “sem qualquer assistência psicológica ou reparação do Estado”.

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