publicado dia 9 de março de 2015
8 de março: Campanha reivindica cidades seguras para mulheres
Reportagem: Danilo Mekari
publicado dia 9 de março de 2015
Reportagem: Danilo Mekari
A adolescente Rayssa Costa voltava da escola em ruas mal iluminadas e com pouco movimento quando, em duas oportunidades, percebeu que homens dentro de um carro a seguiam lentamente. Em um dos casos, o motorista buzinou e falou desaforos. Desde então, o caminho do ponto de ônibus para a sua casa nunca mais foi o mesmo.
“Na primeira vez em que aconteceu, fiquei uma semana sem ir para a escola, com medo. Na segunda, foram dez dias”, relembra Rayssa, em depoimento para a campanha Cidades Seguras para as Mulheres. Lançado em agosto de 2014 no Brasil, o projeto, capitaneado pela Action Aid, exige o comprometimento de gestores públicos para a melhoria da oferta dos serviços nas cidades, de modo que elas se tornem mais seguras para as mulheres.
O caso relatado acima aconteceu em 2012, na cidade de Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco. A preocupação dos pais de Rayssa com a segurança de sua filha cresceu tanto que ela se viu obrigada a recusar uma oferta de estágio, pois teria que fazer o curso técnico de Segurança do Trabalho à noite e, consequentemente, voltar tarde para casa – provavelmente sozinha e no escuro.
“Infelizmente o roteiro é comum: a mulher que deixa de se qualificar e de estudar por conta de medo e insegurança. A não possibilidade de exercer a cidadania plena é também uma violência grosseira contra o gênero feminino”, aponta Ana Paula Ferreira, coordenadora do programa Direitos das Mulheres da Action Aid Brasil, responsável pelo Cidades Seguras para as Mulheres.
Cidade segura
Na visão de Ana Paula, quando se fala em violência contra as mulheres no Brasil, a referência automática para a população é a Lei Maria da Penha (LMP), sancionada em 2006, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. “Não a desvalorizamos – pelo contrário, trabalhamos muito com ela –, mas uma de nossas maiores preocupações é contribuir para que a sociedade entenda que, quando falamos de violência contra a mulher, não estamos falando apenas de LMP”, observa.
A verdade é que a violência de gênero extrapola as paredes domésticas e está espalhada nas entrelinhas e delicadezas da vida urbana. “É importante dizer que, no nosso entendimento, a palavra segura não se refere apenas à segurança pública e policiamento, mas sim à noção de direito à cidade. As mulheres não usufruem a cidade como um todo, especificamente quem vive em situação de pobreza”, ressalta a coordenadora.
Dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2013 revelaram a prática de 16,9 mil feminicídios (mortes de mulheres por conflito de gênero) no Brasil entre 2009 e 2011. Ainda, houve no país mais de 50 mil casos de estupro em 2013, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Não podemos naturalizar o que está acontecendo. Temos que dar evidência à isso e mostrar o quanto a discussão é relevante”, acredita Ana Paula.
Para embasar a campanha, foi realizada uma pesquisa com 306 mulheres de áreas periféricas em Pernambuco, Rio Grande do Norte, São Paulo e Rio de Janeiro. Os resultados evidenciam a vulnerabilidade das mulheres nos espaços públicos e mostra como elas alteram suas rotinas de trabalho, estudo e lazer por conta do medo da violência nas cidades.
Cerca de três quartos das mulheres, por exemplo, revelam que já desviaram seu trajeto por conta da escuridão da rua; 70% já deixou de sair de casa em determinado horário por receio de sofrer algum tipo de assédio. Becos, praças, paradas de ônibus e vias públicas são considerados lugares inseguros por mulheres de todas as localidades.
“Quando as mulheres não têm acesso a serviços públicos de qualidade, elas ficam em posição mais vulnerável a sofrerem violência nas suas várias facetas. E vai muito além da agressão física, que é cruel, mas também a violência de não serem tratadas como cidadãs, não viverem a plenitude de sua cidadania”, argumenta Ana Paula.
Lanternaço
Em parceria com as mulheres entrevistadas, a campanha construiu uma carta política com as demandas para melhorar a oferta de serviços públicos como iluminação, moradia, transporte, policiamento e educação. A carta foi entregue em secretarias municipais e estaduais, prefeituras e governos.
“Estamos em um momento de advocacy”, define a coordenadora. “A partir do conhecimento obtido, queremos incidir nas políticas públicas. É raro os planejamentos urbanos e Planos Diretores Estratégicos ouvirem as mulheres. Queremos que esses planos sejam feitos levando em consideração a real necessidade que essas mulheres têm.”
Entre as demandas da carta está universalizar a implantação e manutenção da iluminação pública por governos e concessionárias. A falta de luz em vias públicas, inclusive, foi tema de uma ação de sucesso do Cidades Seguras para as Mulheres: o lanternaço.
“Observamos que muitas mulheres carregavam lanternas dentro das bolsas por conta da falta de iluminação no caminho de casa”, conta Ana Paula. Se a escuridão dá medo, é na força que surge a partir da união destas mulheres que se dá a ação. Elas percorrem pontos críticos desses locais com as lanternas ligadas, denunciando espaços públicos com falhas na iluminação. No dia seguinte ao lanternaço, que ocorreu em Upanema (RN), a empresa de energia consertou alguns postes de rua.
Atendimento humanizado
No transporte, a carta pede campanhas educativas e medidas protetivas para dentro dos veículos públicos, como a capacitação de motoristas e cobradores para lidarem com casos de assédio, além da melhoria na qualidade e quantidade da frota, priorizando a oferta para as áreas de periferia.
A moradia também entra na pauta. “Garantir cidades seguras para as mulheres pressupõe políticas inclusivas de moradia”, diz Ana Paula. Segundo a campanha, além do acesso, as mulheres precisam ter segurança na propriedade dos seus lares.
O policiamento também é um ponto crucial para a campanha. Visto que menos de 10% dos municípios brasileiros possuem delegacia da mulher – e somente 8% têm unidade de acolhimento para mulheres vítimas de violência –, o documento entende que a capacitação de policiais para realizar um atendimento humanizado às vítimas de violência de gênero é fundamental. “A nossa polícia costuma jogar a culpa para quem sofre agressão. Sempre perguntam “porque você estava andando a essa hora? Nesse lugar? Com essa roupa?”, aponta. “A mulher tem que ser respeitada em qualquer situação.”
Por fim, a educação, que muitas vezes acaba reforçando padrões e comportamentos tanto na escola como dentro de casa. “Os pais têm que desnaturalizar esse costume de dar bola ao menino e boneca à menina, que fica numa posição fragilizada, brincando entre quatro paredes, enquanto o garoto está com a bola na rua”, ressalta Ana Paula. “Esses estereótipos limitam a vida das mulheres.”
A carta pede uma educação pública de qualidade, inclusiva, igualitária e não sexista nem homofóbica. Outra demanda é a melhoria na qualidade e quantidade de creches, que impacta diretamente no acesso das mulheres ao mercado de trabalho e à formação acadêmica.
Na última quarta-feira (4/3), o Ipea divulgou um estudo sobre a efetividade da Lei Maria da Penha na redução ou contenção do crescimento dos índices de homicídios cometidos contra as mulheres. Clique aqui para obter mais informações.
Pressão
Agora, o programa quer se expandir para outros estados – já existem diálogos com cidades da região nordeste. “Queremos que esse trabalho seja tocado a nível nacional, pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, para que esse debate tenha continuidade e não fique a reboque de casos pontuais de estupro e violência”, desabafa Ana Paula.
Ela sabe, porém, que as demandas não se restringem apenas à pasta referente às mulheres, mas sim a uma política intersetorial, dialogando com responsáveis por transporte, moradia e segurança pública, entre outros. “Estamos pressionando o poder público. O momento é de expansão da pauta, e exigir que os governos a levem em consideração”, finaliza.