publicado dia 23 de fevereiro de 2015
Aos 80 anos, Dona Lurdes é a memória viva da zona sul paulistana
Reportagem: Pedro Nogueira
publicado dia 23 de fevereiro de 2015
Reportagem: Pedro Nogueira
“Ela merecia um filme. Ela, a Dona Maria do Jardim Ângela e tantas outras. Essas histórias não podem se perder”, disse Renato Rocha, do Coletivo Dedoverde, quando falei que iria, na manhã seguinte, entrevistar a Maria Cecília de Luna, ou simplesmente, a Dona Lurdes da Vila das Belezas. Renato falava das milhares de “donas”, de mulheres, lideranças, almas de bairro e alicerces de comunidades que, ao entrelaçarem suas vidas com a luta, com a solidariedade, com a necessidade de transformar, juntar e congregar suas vizinhanças nas periferias de São Paulo, tornaram-se imprescíndiveis.
Chego logo cedo numa casinha lilás, em uma transversal da Estrada de Itapecerica, e sou recebido com um sorriso pela Dona Lurdes. Sentamos na sala da casa que ela e seu marido construíram e pergunto sobre sua vida. “Eu fico procurando onde eu passei esses 80 anos e não acho. Parece uma pressa. Não sei como estou nesse mundo de meu Deus”, observa de forma melancólica e perdida entre memórias.
Dona Lurdes nasceu em um distrito rural na Paraíba, na cidade de Alagoa Nova. Vinda de uma família de pequenos agricultores, começou a se envolver politicamente com a igreja local, onde atuava como catequista. Formada em primeiros socorros, passou a trabalhar com alfabetização de adultos na escola do sindicato rural. Ela conta com detalhes sobre como fazia para participar das reuniões políticas em sua terra natal.
“Antes, a gente nem entendia o que era ditadura militar. Mas com as reuniões, fomos entendendo o que ela significava. Para ir num encontro, eu levava uma bolsa com troca de roupas e ia para cidade de ônibus, encontrar uma pessoa que eu sabia como tava vestida e íamos para um sítio sem levantar alarde.”
Dona Lurdes reconhece o tamanho dos aprendizados que teve no campo. Da consciência política adquirida até o seu “dedo verde” para as hortas. Hoje ela mantém, na laje de sua casa, diversas plantas medicinais e comestíveis. E trabalha, mesmo com dificuldade de andar, nas hortas comunitárias do CEU Casa Blanca, que fica a cerca de cem metros da soleira de sua porta.
Zona sul
“Eu fiquei um tempo sem participar de nada quando cheguei. São Paulo é fria e estranha”, relata ela sobre a chegada na capital paulista. Junto a seu marido Elias, falecido há quatro anos, percorreram na década de sessenta o caminho que multidões de nordestinos tomaram em busca de uma vida melhor.
Após esse hiato, Dona Lurdes se viu novamente imbricada na política local, ao participar da fundação de uma comunidade eclesial de base. “Tínhamos um prézinho para as crianças, que naquela época não tinha creche. Até minha filha, aos sete anos, dava aula de alfabetização.”
Também atuou em grupos de mulheres, como o Clube de Mães, e foi a fundadora – e até hoje presidente honorária – da associação de bairro Casa Blanca, onde começou a travar disputas por água, saneamento básico, luz elétrica, asfaltamento e moradia da região. Quando ela sai na rua para me mostrar o CEU fica evidente o quanto foi trilhado: Dona Lurdes é saudada por qualquer pessoa que passa naquela rua tranquila e asfaltada.
Educação e comunidade
A líder comunitária também foi uma das responsáveis pela construção do CEU Casa Blanca. Edificado em cima de um velho terreno baldio, que era usado como depósito “de todo tipo de coisa ruim”, a comunidade se organizou e passou a reivindicar que o local fosse utilizado para construção de equipamentos públicos. Inicialmente, queriam uma creche, uma escola, um centro para idosos e um posto de saúde. Depois de muitos abaixo-assinados e reuniões, conseguiram a aprovação da construção do Centro de Educação Unificado.
Dona Lurdes é uma das convidadas do Seminário Semeando a Cidade Educadora, da Associação Cidade Escola Aprendiz, que acontecerá no dia 6 de março, no Parque do Ibirapuera. Clique aqui para saber mais.
“A gente acompanhou cada passo da construção”, afirma enquanto caminhamos pelas instalações. As hortas – uma para trabalhos pedagógicos e outra para os idosos da comunidade – foram também uma conquista. Ela fez questão de garantir um espaço de sociabilidade para a terceira idade e recebeu, em nome da comunidade, o prédio das mãos da então prefeita, Marta Suplicy.
Apesar de algumas dificuldades motoras, a mão de Dona Lurdes toca tudo que é planta e terra enquanto me mostra o que conquistou. Fala sobre seus planos de produzir artesanato e vender com outras mulheres da região e lamenta a falta de participação das pessoas na vida política e educacional do bairro. Quando enfim termina a conversa, ela me presenteia com uma revista que traz personagens importantes da zona sul nos movimentos contra a ditadura. Nela, está uma frase de Dona Lourdes, do ano passado, que dá sentido à sua trajetória “nesse mundão de meu Deus”:
“Meus 80 anos que vou fazer agora, eu sei que eu fiz parte de uma história, nos meus passos pequeninhos, que eu tenho a cabecinha meio tapada, num sabe? Mas nos meus pequeninhos, eu fui pessoa que fiz parte dessa história, da criação, da formação e transformação dessa história, da conscientização do povo, da pessoa não querer dizer assim: ai eu vou ficar aqui, vou morrer aqui, de qualquer jeito, não”